terça-feira, 28 de março de 2006

O alívio de escrever com vogais!


Nos últimos dias fui devorada pela escrita: formulários de candidaturas a bolsa de estudos (so help me God), catálogos, relatórios, assinar testes do meu filho (bom trabalho, por sinal, João), escrever em português, em inglês, em braille, traduzir de umas para outras línguas, para descontrair responder a uns mails (de) amigos, escrever no msn em trabalho, participar e moderar foruns de discussão e blogs mais sérios que o presente. Acrescente-se a escrita que falta: duas cartas, alinhar um curriculum de equipa para um projecto, acabar este post - já que aqui estamos - enquanto se come um iogurte. Imprimir uns materiais para uma acção de formação numa escola. Uma carta final, porque me tocou a administração do condomínio.

Numa das traduções em que estava a trabalhar hoje, surgiu-me uma referência assustadora. Graças à ajuda de um amigo calmo (característica com que não fui abençoada), passei do pânico ao sorriso. E como não é da minha especialidade, passo a explicar, citando a Wikipedia:
"The Kabardian language is closely related to the Adyghe language, both members of the Northwest Caucasian language family, mainly spoken in Jordan, Turkey, and the Kabardino-Balkar Republic of Russia. It has 48 consonant phonemes (of which an amazing 22 are fricatives), but just two phonemic vowels. It is one of very few languages to possess a clear phonemic distinction between ejective affricates and ejective fricatives. The Kabardian language has two major dialects, Besleney and Terek (the latter being the literary standard). Some argue that Kabardian is only a dialect of an overarching Circassian language that also includes the various Adyghe dialects. Kabardian is written in a form of the Cyrillic alphabet, and like all Northwest Caucasian languages, has an extremely complex verbal system."

Escrever, sim, mas com vogais, por misericórdia. No contexto destes dias, imaginem o susto que apanhei!

sexta-feira, 24 de março de 2006

Alguma coisa

Alguma coisa onde tu parada
fosses depois das lágrimas uma ilha,
e eu chegasse para dizer-te adeus
de repente na curva duma estrada

alguma coisa onde a tua mão
escrevesse cartas para chover
e eu partisse a fumar
e o fumo fosse para se ler

alguma coisa onde tu ao norte
beijasses nos olhos os navios
e eu rasgasse o teu retrato
para vê-lo passar na direcção dos rios

alguma coisa onde tu corresses
numa rua com portas para o mar
e eu morresse
para ouvir-te sonhar.

António José Forte, Uma Faca nos Dentes

terça-feira, 21 de março de 2006

Dr. Assis Milton - in memoriam

"Qual é o meu posicionamento, nesta fase da minha vida, sobre esta matéria? Dê-me a vossa mão e eu levar-vos-ei num passeio pelas ruas e ruelas dos meus sentimentos e observações. Não levem muito a sério o que irei revelando pelo caminho. Não convém esquecer que se trata apenas da minha visão. Uma ideia, que na fase inicial, não podia ser tocada, cheirada ou pesada, é agora algo que pode ser observado objectivamente por qualquer pessoa. A ideia materializou-se. Daqui a minha conclusão de que, qualquer ideia, desde que ela arraste consigo um desejo forte de realização, uma determinação inabalável, contagie unidades de vidas pertinentes, seja compatível com a viabilidade, o Universo submete-se a ela, veste-a indiferente à bondade ou maldade da mesma."
Assis Milton

O Dr. Assis Milton foi o fundador da Associação Promotora do Emprego de Deficientes Visuais (http://www.apedv.rcts.pt/index.htm), instituição com 25 anos de formação e integração de pessoas numa vida profissional autónoma em Portugal. Escreveu recentemente um livro Estrelas no meu Céu Escuro, em que relata casos de sucesso de integração e de luta, presta o seu testemunho de vida e revela testemunhos de igual relevo dos seus filhos, alguns tendo tomado como opção de vida a continuidade do seu trabalho. Foi ainda fundador e era presidente da Electrosertec, Visão e Mobilidade, Lda. (http://www.electrosertec.pt/)

Aqui presto a possível e humilde homenagem à pessoa grande, humana e dinâmica que era, ao trabalho que realizou em Portugal, ao carisma que imprimia em todos os seus projectos, e deixo aos seus filhos um enorme abraço de amizade, numa hora de tão grande tristeza. O escuro do luto cai hoje sobre o brilho de uma vida. Cabe-nos manter acesa a sua memória e continuar a luta pelos seus ideais.

segunda-feira, 20 de março de 2006

Quero uma vida

Quero uma vida em forma de espinha
Num prato azul
Quero uma vida em forma de coisa
No fundo de um sítio sozinho
Quero uma vida em forma de areia nas minhas mãos
Em forma de pão verde ou de cântara
Em forma de sapata mole
Em forma de tanglomanglo
De limpa-chaminés ou de lilás
De terra cheia de calhaus
De cabeleireiro selvagem ou de édredon louco
Quero uma vida em forma de ti
E tenho-a mas ainda não é bastante
Eu nunca estou contente.

Boris Vian (1920-1959), Canções e Poemas

Mário Quintana, por ele próprio:

"Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Há ! mas o que querem são detalhes, cruezas, fofocas... Aí vai ! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas : ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a eternidade.
Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que nunca acho que escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso ! sou é caladão, instrospectivo. Não sei por que sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros ?
Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de fármacia durante 5 anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Erico Veríssimo – que bem sabem ( ou souberam) , o que é a luta amorosa com as palavras."

sábado, 18 de março de 2006

Histórias infantis

Foi com gosto, mas com alguma fatiga, que a minha equipa de trabalho acabou agora de tratar, imprimir, separar, encadernar (ainda só parte) de 150 histórias infantis em braille. O Ursinho Lóló e o Rio Poluído será distribuído gratuitamente a escolas da zona de Óbidos, em versão tradicional e em versão Braille. Foi uma corrida que fizémos com gosto. Por isso me apeteceu contar...
Também porque é bom trabalhar com grandes e bons amigos, com muita empatia de ideais e muitos anos de trabalho em comum. Os três que partilharam este serão - incluíndo quem escreve - fazem 40 anos este ano. Conhecemo-nos desde os 18. Amizades assim são raras, pela longevidade, pela fidelidade, pela comunhão de projectos e ideias.
O Ursinho Lóló será certamente bem recebido, é uma história simples e engraçada, acessível a várias circunstâncias de acesso à informação, de tema ecológico, com desenhos ternurentos. Ainda bem que os Homens continuam a criar tecnologias que permitam saltar diferenças. As crianças que não podem ver as imagens irão usar o seu tacto para as conhecer, graças a impressões gráficas relevadas.
Trabalho com paixão, com sentido, entre amigos. Sinto-me agradecida pelo que posso fazer e aprender no meu trabalho. Mesmo com corridas à chuva com caixotes de folhas e horas de linha de montagem e revisão de textos. Quando passarem as dores nas costas certamente que será mais uma boa recordação de grupo a juntar a tantas outras, tão boas, nestes anos! Obrigado António, João e Rui!

domingo, 12 de março de 2006

Cor


Vincent van Gogh, 1886.

Primavera?

Está quente em Lisboa. Céu azul, nuvens brancas rasgadas, bom para fotografar. Muitas crianças, muitas pessoas a lembrar um ano de sol intenso cortado pelo frio dos últimos meses. O Tejo brilha e é bom tomar café numa esplanada com amigos, tirar camisolas, andar ao ar livre. As cores estão brilhantes e o voo dos pássaros, na sua diversidade, parece um bailado. Os campos de minigolfe abriram em Algés, o Estádio Nacional já se enche de atletas amadores de convívio. As praias atraem os leitores de areia de meia estação.
Já em casa, sabe bem olhar pela janela e ver o verde muito verde, o azul muito azul, coelhinhos a sorrirem a espaços pelo campo fora e os meus velhos moinhos enferrujados a descansar do vento e da chuva, pás mortas. A casinha da quinta está vestida de branco sujo e tem o telhado amachucado. Ao longe são construídas casas para alguém habitar um dia. Miúdinhas flores amarelas estão por todo o lado. Os carros ficam fora das garagens, ao sol, à espera de mais uma saída de fim de tarde, talvez para trocar o rio pelo mar.
As canas abanam agora pachorrentamente a lembrar que devo voltar ao meu livro e parar de sonhar com papoilas e malqueres. Uma andorinha só ainda. Talvez a primavera chegue para a semana.

quinta-feira, 9 de março de 2006

Não há pensamento fora da escrita...

...nem escrita fora do tempo.

Passei hoje parte do meu dia na Biblioteca Nacional, onde, entre outros trabalhos, analisei estruturas de algumas teses de mestrado. Com curiosidade, por necessidade de orientação e de referência. Consultei teses na minha área de estudo e fora da minha área de estudo, consultei teses de pessoas por quem tenho grande consideração.

Muitíssimo bem impressionada pelo que lia, mesmo que em diagonal - preocupava-me apenas registar opções de estrutura - usei a varanda dos fumadores desesperados para dar um abraço a dois dos contemplados na escolha. Em Portugal, duas teses de Mestrado magnificas não foram editadas. Dois profissionais inteligentes, trabalhadores, sistemáticos, não estão a ser, como certamente tantos outros, reconhecidos. Têm sempre a generosidade e grandeza de alma de ajudar e participar em movimentos activos de intervenção e integração social. São pessoas grandes, no anonimato, quando se diz mal à boca cheia do nosso meio académico e da sua soberba. Quando se abrirão as portas de forma justa para quem quer desempenhar as suas funções, seguir a sua vocação e partilhar o seu saber através de escritas pessoais, diversas, trabalhadas?

As dedicatórias. Das três teses que consultei, nenhuma escapava ao tempo e às mudanças que ele exerce nas nossas vidas. A dedicatória de um dia não é a de outro. Pessoas entram e saiem das nossas vidas por várias razões, até pelas naturais (nascimentos e mortes). Tudo muda e tudo permanece. O tempo esculpe mesmo, não só as peças artísticas, mas todo o ser humano, e o caminho que julgamos ser a direito tem tantas irregularidades que muitas vezes voltamos ao ponto de partida, mudado o sítio e o tempo, mudados nós.

Todos nós, seres humanos, temos marcas, rugas, cabelos brancos, cicatrizes, lesões, feridas de guerra no corpo e na alma. Pelo nosso enquadramento, pelo nosso percurso, pelo nosso caminho com ou sem idealismos de areia inexplorada, com mais ou menos sobressaltos.

Tudo o que somos vem também dos nossos amigos, das pessoas que amamos e de quem nos orgulhamos. Gostei de ler um pouco das suas almas no ano 2000. Não mudaram assim tanto. Sobretudo continuam pessoas lindas e já fizeram o favor ao mundo de transmitir os genes a uma nova geração de amiguinhos. Esperemos para ver, com as rugas e dores que o tempo nos trouxer, os seus percursos. São uma esperança só por continuarem a existir na possibilidade de criar.

terça-feira, 7 de março de 2006

A hora do post

Em jet-leg absoluto nos últimos tempos, andava a desleixar bastante o que para mim é importante. Mudei assim, a sagrada hora do Post. Os meus dias são como os de toda a minha geração: rápidos. Saio de casa cedo, trabalho, vou buscar o meu filho à escola. Dou-lhe - agora já menos - assistência nos seus trabalhos escolares. Dou-lhe - sempre cada vez mais - mimos, conversa, beijos. Falamos de tudo e de nada, vemos filmes, navegamos internet fora com ímpetos que fariam inveja aos navegadores portugueses de outros tempos. Consumo a sede dele de aprender e louvo a persistência e o amor com que continua próximo de mim por amizade e não pelo facto de a gestora prática da sua existência com 11 anos.
Neste bocadinho de chegada a casa consigo com alguma calma falar sobre o que gosto e ter o meu tempo de reflexão e de escrita pessoal. Contactar também com alguns amigos, responder a mails, conversar um pouco no msn, sobretudo com quem não pode comunicar de outra forma.
Depois há um espaço de paz aproveitado entre fazer o jantar e dar de jantar ao João, ligarmos um pouco a televisão "para ver se o mundo já explodiu, mãe". Não somos fanáticos e a programação já viu melhores dias, mesmo a de cabo.
A hora do Post, que é portanto esta, relaxa-me quando aterro em casa. Prepara-me para um serão pacífico.
O serão de trabalho começa depois do serão de Maria e do serão de mãe. Aí agarro nos meus trabalhos, nos meus estudos, no que for prioritário, organizo materiais para o dia seguinte, reúno com colegas de trabalho ou de grupos de discussão/intervenção.
Por más influências certamente, o meu filho tem mais blogs que a mãe. Como eu não tenho trabalhos de casa, a hora do Post dele é mais por alturas do fim-de-semana. Mas acho graça à evolução dos interesses pessoais: começou com um de cinema (só quem não o conheça...), criou um de cartoons (obviamente...) e agora tem um de actualidades sociais e ecológicas. 11 anos, tempo de mudança.
Precioso, o tempo de pensarmos no que está na alma no final do dia, reflexão não tem hora, a hora do Post é precisa, mesmo sem internet, mesmo num bloco, mesmo dentro de nós.
Gosto dos meus dias, considero-me privilegiada por ter um tecto, um trabalho que adoro (também adoro o tecto, mas mais o trabalho), um filho que amo de paixão, amigos preciosíssimos, livros que idolatro mais que D. Quixote (a minha alcunha junto de alguns amigos e amigas muito próximos, não sei bem porquê). As palavras são importantes. "Será que por acaso a flor sabe que é flor?" Vinícius cantado por Maria Bethânia, ouvido da escola para casa.
Carlos Seixas ouve-se numa casa em paz. É hora de partilha.


domingo, 5 de março de 2006

O bom tio Óscar










(Munique, Spielberg, 2006)

É hoje, portanto. Não vi todos. Como todas as cerimónias ligadas a grandes centros de produção e lucro, os óscares têm a sua parte de brilho artificial que me desagrada. De qualquer forma, mostram a capacidade de incorporação ou a rejeição de opções de vários técnicos e técnicas ligadas à sétima arte.

Vi Munique.

Marcou-me pela forma inteligente como Spielberg assume o desprezo pela violência gratuita e a contrasta com os valores que cada homem pode ter como indivíduo, independentemente de que lado do muro se encontra. Não vai receber o Óscar de melhor filme do ano. Não sei se é o melhor filme do ano.

Verei brevemente Brokeback Mountain.