sábado, 31 de março de 2007

Contos de fadas


E não é que existem mesmo? Existe o amor, existe a faculdade de construir, existe a generosidade, existe a partilha. Existe a felicidade construída e sólida. Existe a partir de hoje um casal de amigos a começar uma vida nova cheia de desafios, eles, cheios de coragem para os resolver. Os sorrisos são a melhor prova, a cumplicidade e a ternura também.
O que não existe são muitas pessoas assim, como a Susana e o Rodrigo, amigos de verdade, hoje e sempre a transbordar amor. Por isso ainda hoje, talvez já a caminho da sua nova casa, lhes escrevo a dar ainda mais um abraço forte, daqueles de irmãos, e lhes agradeço a faculdade de acreditar que os sonhos existem, à medida de cada um de nós. Mais perto que se possa pensar. À distância de uma vontade.
Parabéns, meus queridos. Toda a felicidade do mundo a quem por ela luta!

sexta-feira, 30 de março de 2007

Beijos por dar



"Memories of you are sometimes almost overpowering."

Vincent Van Gogh, letter to Theo, 3 de Outubro de 1876.

Há beijos de parabéns que ficam por dar,
Vincent nasceu a 30 de Março de 1853,
obrigado pelos lírios e pelas estrelas...

segunda-feira, 26 de março de 2007

Engenho e Arte

Hiroshi Sugimoto, Roam Gear, 2004
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Ingenuidades pela Fundação Calouste Gulbenkian?
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Engenho e Arte do senhor dos horizontes perdidos, entre outros tesouros.
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Gostei. Bom para começar a semana de trabalho...

sexta-feira, 23 de março de 2007

Café?


Fundamental nos nossos dias, histórica bebida, integrou a linguagem corrente de forma divertida. "Ir tomar café" não significa necessariamente virar os pés ou o volante para uma esplanada e subir alegremente a tensão arterial ou pela quantidade de vezes que usamos esta expressão teríamos alegres potenciais doentes de Parkinson a tremer pelas ruas. Basicamente café passou a ser sinónimo de estar com. E estar com é são, faz bem à saúde, não tem efeitos vaso-constritores nem provoca arritmias (depende obviamente de com quem se esteja).
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Estar com é um hábito fantástico que descomprime os nossos dias mais conventuais que desejaríamos, mas orwellianos que assumimos. Ritmos bastante impostos, horários, os meus, os teus e os nossos, que desgraça, que mundo e que tempo nos sobram. Vamos tomar café?
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As casas afastaram-se ou afastaram-nas, é tão rápido o percurso até às nossas aulas, aos nossos trabalhos, às escolas dos nossos filhos, porque não o será até à casa de quem morremos de saudade e com quem nos penduramos ao telefone durante mais tempo que o caminho exigia para abraçar?
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Restam-nos os cafés para tomar realmente ou não. Devem estar todos a meio caminho das vontades e dos afectos. Parece-me bem, visto que gosto cheio e sem acúcar, os sabores da vida são para apreciar em pleno e não adulterados. Sempre, em boa companhia. Temos tempo para dormir quando estivermos mortos...

segunda-feira, 19 de março de 2007

O meu pai

Chama-se Francisco e tem 92 anos. Estudou Matemática, mas gosta muito mais de Estrelas e Nuvens, sabe mesmo o nome de todas elas, coisa que nunca serei capaz de aprender. Também sabe tirar espinhos de ouriço e picos de madeira dos dedos e fazer cabaninhas de juncos onde cabem os nossos segredos. O meu Pai tem cinco filhos, todos únicos, e eu sou a mais nova. Por isso sempre o conheci como uma pessoa crescida, mas não igual às pessoas crescidas complicadas. O meu Pai é alto como os sábios são altos, e tem uma mãos que conduzem e um colo onde cabe o mundo. Tem um sorriso nos olhos verde-água e é um homem justo, de ideias abertas e muita lealdade. É inteligente e paciente e doce e apaixonado e todas as coisas bonitas que um pai deve ser.
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O meu Pai ensinou-me a ler e ensinou-me a tabuada, ensinou-me a guiar e a gostar de história, mostrou-me o mundo e mostrou-me como somos pequeninos. Limpou as minhas lágrimas muitas vezes e segurou os meus sorrisos, ensinou-me a tentar racionalizar e relativizar os problemas (juro que tento, Pai...). Ensinou-me a respeitar e aprender com todas as pessoas.
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Quando o for ver à tarde sei que o encontrarei de sorriso no lago dos olhos verde-água, sentado no seu sofá rodeado de livros e de netos, talvez apoiado numa bengala, julgo que pelo peso do amor que foi juntando, que os pais não envelhecem, certamente que não, julgo mesmo que são eternos. Afinal, não seria justo que não fossem eternos, não consigo imaginar o mundo sem ele, gosto demais de ouvir as suas histórias e os seus conselhos, amo demais a lucidez e a experiência das suas palavras, trocadas em silêncio e de mãos dadas, numa cabana de juncos ou a caminho da toca da raposinha mais nova, aquela que não se sabe esconder do mundo e continua a precisar muito de si, Pai.
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domingo, 18 de março de 2007

Os vivos, os mortos e os assim-assim...


Que isto de nos metermos nos caminhos da história - não chegasse termos que a viver - tem algo de masoquista. Ou estarei porventura muito cansada. Filas de nomes que pouco rasto deixaram, seguir pistas (nem sempre elementares, meu caro Watson), olhar de todos os ângulos plantas de escolas onde se perdiam meninos ansiosos por sobreviver mais que por aprender. Negociar acesso a arquivos, fotocopiar com o dinheiro do peixe que passa a congelado, que as modas não andam para bolsas de estudo, antes para bolsas vazias...
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A história faz parte de nós, constrói o nosso presente, vale a pena ler a crónica de António Manuel Hespanha (juro que não sou accionista da revista História) intitulada "It's History, Stupid!". Claro que é história, já está na história, quais grandes portugueses, grandes tolos que repetimos erros e não aprendemos nada de nada com o que se fez de mal e de bem, nada mudou afinal.
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Sorrio depois de um quase passado fim-de-semana de escrita dorida, de leituras agradáveis e outras menos (não se recomenda a introdução do Vigiar e Punir de Michel Foucault para espíritos sensíveis...). Depois de carregar toneladas de nomes e datas e cargos em bases de dados, de cruzar elementos, de procurar legislação, de consultar dicionários de português, de pedagogia, de história de portugal, de filosofia, de medicina.
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Fumariam, os promotores, nas suas reuniões? Ouviriam Rodrigo Leão? Anacronismos, pode-se brincar, não se leva menos a sério um projecto por isso. Escrever é passar ao estádio de seriedade o nosso pensamento, a nossa procura de uma resposta a uma questão, a nossa contribuição com uma peça do puzzle que fica desactualizado assim que voltamos as costas.
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É mais fácil estudar mortos que vivos, é mais fácil ter distanciamento das questões e mesmo assim o nosso envolvimento já é grande ou não adoptaríamos um tema e uma procura. Ficamos pois os assim-assim, esforçados e na penúria, os aprendizes de feiticeiros da Academia, os que adoptam com reverência as palavras de quem já escreveu mais, os que aprendem, à custa de dias de sol passados em casa, o que é ser disciplinado sem estar a fazer teses sobre Esparta.
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Assim estou eu, assim-assim, nem viva nem morta, antes pelo contrário, entre o dever e o gosto, grandemente dividida, que cai agora o sol sobre o horizonte da minha janela e deve estar bonito lá fora, chamam-me os meus mortos ("o thesoureiro, Augusto Celestino"). Não lhe posso dar esse desgosto, de o abandonar numa fotocópia ao lado de um objecto do demo com letras e luzes e sons estranhos que deita para fora uma música de violoncelo, não posso trair Augusto Celestino e ir passear, tenho que o puxar túmulo fora. "Se faz favor, Sr. Augusto Celestino, parece-lhe que o relatório de 1895 foi emitido com exactidão?". Julgo que me responderá educadamente. Afinal, os homens dos números são polidos por natureza. Poderei até, se tiver sorte, fazer um amigo, coisa que vale milhões.

sexta-feira, 16 de março de 2007

Social?


Andamos mal informados... Com as novas correntes de informação on line, qual o papel da imprensa escrita? O mesmo de sempre, poder-se-ia responder. Mas seríamos talvez cínicos de mais. Todas as manifestações de liberdade de expressão seriam fantásticas se as deixassem ser. O dinheiro continua a fazer o mundo andar à volta e as pressões de poderes desconhecidos agitam as cabeças que nasceram sem pontos de interrogação. Reparem: não discrimino aqui quem não tem preparação para separar o correcto ou o verdadeiro nalguns casos. Eu não saberia distinguir a precisão de um artigo sobre economia ou medicina. Mas há o chamado bom senso, que passa por questionar. Por pensar, em suma, sobre tudo o que está impresso nas folhas que nos gastam o olhar e a paciência e que acabam por forrar o caixote do lixo, eventualmente sobrando um ou outro recorte.
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Gosto de ler. Gosto medianamente de estar actualizada. Não tenho paciência nem tolerância para que me actualizem. Nesta corrida de fundo que são os nossos dias, não somos receptáculos de informação, também os computadores não saltam de contentes se lhes instalarmos o Windows Vista e continua-me a parecer que o frigorífico cá de casa não fica mais eficiente a conservar uma alface ou um bife.
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Nem tudo passa pelos conteúdos, então, mas pela forma crítica como os devemos receber, para isso temos algo dentro da caixa craniana. E cada vez mais me desgosta a forma como a informação é dada, com certezas, com estatísticas, com assinaturas de renome e a retalho.
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Leio poucos jornais. Não comprei o Sol no fim de semana passado, não me interessa a infância de José Sócrates, talvez lesse uma biografia de Mozart e me entusiasmasse mais. Por vezes questiono-me se o defeito é meu e dou pouca importância ao que chamamos "actualidade". Não me parece. Simplesmente filtro informação. Nem tudo o que é escrito é verdade. Nem falo aqui de outras fontes de informação actuais, mais mediáticas. Mas do poder da palavra escrita. Porque está fixa. Pode ser medida, pesada, analisada. O problema é que não o fazemos. E só criando rupturas se pode avançar sem andar em círculos.
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Comunicação social? Pois, pois.

Nothing but a dreamer

Entre sol e estrelas, crepúsculo e amanhecer, aldebarans que caem em colos verdes fora de horas, sem espaços nem passos que os que não se deram, perfeitos, silenciosos. Sonhar com olhos abertos ou fechados, como quem faz amor à luz do dia com o sol pudicamente apagado. Sonhar que cabemos no colo de uma mão que protege, num acolher desejado e procurado. Caminhos que se cruzam como estrelas cadentes, o mar bate e os moínhos giram loucos, os livros voam das memórias e passam as palavras por nós, no espaço que não há mais, sem sufocar. Apertar pode ser bom no abraço certo, ler-nos em conjunto e silenciar o pensamento, pensar dói, loucos os que não pensam, mas sempre é melhor beijar, que tem sabor. O sal que escorre pelos olhares cai em cansaço na noite sem memória que não vê já nada a não ser o que está além do outro e quer a infância de volta para ser embalado sem idade e sem prazo. Poemas do fantástico dos nossos dias que correm demais e esperam nas alturas certas por heróis inesperados que estão ao lado e de tão perto assustam as crianças que nunca deixamos de ser. Cores múltiplas de um mundo cinzento, assombrado consigo mesmo, estrelado na noite dos sonos perdidos, alvoraçado em quem se não reconhece, perdido como um menino de sua mãe nos desvelos da música de sonho que nos sopra em brisa delicada que vale a pena esperar pelo sonho seguinte, por nada mais que o sonho seguinte. Não há outra profissão nem outro rumo que não o sonhar muito, trabalho de risco, as emoções partem as certezas do nós em tanta gente que temos cá dentro e que só quer adormecer na estrada das papoilas doces, ser regada pelo mar e levada pelo vento até ao último suspiro, de cansaço, de entrega, de rendição à cor da noite que levanta o olhar no colo do sonho, única verdade.

quarta-feira, 14 de março de 2007

=dade





"É preciso que se ofereçam a todas as pessoas, independentemente do sexo, idade, origem racial ou étnica, religião ou crença, deficiência ou orientação sexual, as mesmas oportunidades."

segunda-feira, 12 de março de 2007

Em busca do tempo perdido

Maravilhosa obra. Maravilhoso homem, Proust. Por inspiração de Ed, a quem agradeço, descobri e entrei no jogo. Entrem também. Pensar é bom, nunca demais.

Passo a contar a história: Marcel Proust respondeu a um questionário com 13 anos e mais tarde, com 20. Aqui estão as suas respostas...
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  1. What do you regard as the lowest depth of misery?
    To be separated from Mama
  2. Where would you like to live?
    In the country of the Ideal, or, rather, of my ideal
  3. What is your idea of earthly happiness?
    To live in contact with those I love, with the beauties of nature, with a quantity of books and music, and to have, within easy distance, a French theater
  4. To what faults do you feel most indulgent?
    To a life deprived of the works of genius
  5. Who are your favorite heroes of fiction?
    Those of romance and poetry, those who are the expression of an ideal rather than an imitation of the real
  6. Who are your favorite characters in history?
    A mixture of Socrates, Pericles, Mahomet, Pliny the Younger and Augustin Thierry
  7. Who are your favorite heroines in real life?
    A woman of genius leading an ordinary life
  8. Who are your favorite heroines of fiction?
    Those who are more than women without ceasing to be womanly; everything that is tender, poetic, pure and in every way beautiful
  9. Your favorite painter?
    Meissonier
  10. Your favorite musician?
    Mozart
  11. The quality you most admire in a man?
    Intelligence, moral sense
  12. The quality you most admire in a woman?
    Gentleness, naturalness, intelligence
  13. Your favorite virtue?
    All virtues that are not limited to a sect: the universal virtues
  14. Your favorite occupation?
    Reading, dreaming, and writing verse
  15. Who would you have liked to be?
    Since the question does not arise, I prefer not to answer it. All the same, I should very much have liked to be Pliny the Younger.

Sete anos depois...

  1. Your most marked characteristic?
    A craving to be loved, or, to be more precise, to be caressed and spoiled rather than to be admired
  2. The quality you most like in a man?
    Feminine charm
  3. The quality you most like in a woman?
    A man's virtues, and frankness in friendship
  4. What do you most value in your friends?
    Tenderness - provided they possess a physical charm which makes their tenderness worth having
  5. What is your principle defect?
    Lack of understanding; weakness of will
  6. What is your favorite occupation?
    Loving
  7. What is your dream of happiness?
    Not, I fear, a very elevated one. I really haven't the courage to say what it is, and if I did I should probably destroy it by the mere fact of putting it into words.
  8. What to your mind would be the greatest of misfortunes?
    Never to have known my mother or my grandmother
  9. What would you like to be?
    Myself - as those whom I admire would like me to be
  10. In what country would you like to live?
    One where certain things that I want would be realized - and where feelings of tenderness would always be reciprocated.
  11. What is your favorite color?
    Beauty lies not in colors but in thier harmony
  12. What is your favorite flower?
    Hers - but apart from that, all
  13. What is your favorite bird?
    The swallow
  14. Who are your favorite prose writers?
    At the moment, Anatole France and Pierre Loti
  15. Who are your favorite poets?
    Baudelaire and Alfred de Vigny
  16. Who is your favorite hero of fiction?
    Hamlet
  17. Who are your favorite heroines of fiction?
    Phedre (crossed out) Berenice
  18. Who are your favorite composers?
    Beethoven, Wagner, Schumann
  19. Who are your favorite painters?
    Leonardo da Vinci, Rembrandt
  20. Who are your heroes in real life?
    Monsieur Darlu, Monsieur Boutroux (professors)
  21. Who are your favorite heroines of history?
    Cleopatra
  22. What are your favorite names?
    I only have one at a time
  23. What is it you most dislike?
    My own worst qualities
  24. What historical figures do you most despise?
    I am not sufficiently educated to say
  25. What event in military history do you most admire?
    My own enlistment as a volunteer!
  26. What reform do you most admire?
    (no response)
  27. What natural gift would you most like to possess?
    Will power and irresistible charm
  28. How would you like to die?
    A better man than I am, and much beloved
  29. What is your present state of mind?
    Annoyance at having to think about myself in order to answer these questions
  30. To what faults do you feel most indulgent?
    Those that I understand
  31. What is your motto?
    I prefer not to say, for fear it might bring me bad luck.

Vale a pena consultar as respostas do Ed no SemiÓtica. As minhas são estas:

1. Qual é a sua maior qualidade? A teimosia

2. E seu maior defeito? A teimosia também…

3. A característica mais importante em um homem? Intensidade

4. E em uma mulher? Sentido de humor (precisamos…)

5. O que você mais aprecia nos seus amigos? Um bom abraço!

6. Sua atividade favorita é… Ler.

7. Qual a sua idéia de felicidade? Estar apaixonado. Por tudo.

8. E o que seria a maior das tragédias? A solidão.

9. Quem você gostaria de ser, se não fosse você mesmo? Guilhermina Suggia.

10. E onde gostaria de viver? Paris.

11. Qual sua cor favorita? Branco

12. Uma flor? Papoila (mesmo, só que em versão portuguesa…)

13. Um pássaro? Andorinha-do-mar.

14. Seus autores preferidos? Proust, Poe, Kafka, Umberto Eco, Fernando Pessoa, Eça de Queirós, Mário de Sá-Carneiro, tantos, que me construíram.

15. O os poetas que mais gosta? Os surrealistas, em geral.

16. Quem são seus heróis de ficção? Peter Pan

17. E as heroínas? Alice, mesmo quando não no país das maravilhas.

18. Seu compositor favorito é… Mozart

19. E os pintores que você mais curte? Rembrandt

20. Quem são suas heroínas na vida real? Grandes amigas, grandes lutadoras, sim, também a minha mãe.

21. E quem são seus heróis? Os meus companheiros de trabalho e de lutas. Muito, mas mesmo muito, o meu filho.

22. Qual sua palavra favorita? Son(h)o.

23. O que você mais detesta? Preconceitos, prepotências e estupidez (associadas, então!)

24. Quais são os personagens históricos que você mais despreza? Hitler.

25. Quais dons naturais você gostaria de possuir? Bom senso.

26. Como você gostaria de morrer? No colo do meu amor.

27. Qual seu atual estado de espírito? Apaixonada.

28. Que defeito é mais fácil perdoar? Ingenuidade.

29. Qual é o lema da sua vida? “Marcar os meus pés na areia inexplorada. O mais que faço não vale nada” (José Régio)

Aceitam-se mais respostas, em público ou privado. É sempre bom pensar em conjunto. Proust tinha razão. Não se perde tempo, procura-se, em nós e nos outros.

Papagueno, Ludovicus Rex, Link, Nélio, Nicleskaput... e mais cinco que venham, aceitam responder?

sábado, 10 de março de 2007

Nós e os contras


Na minha Alma há um balouço
Que está sempre a balouçar
Balouço à beira dum poço,
Bem difícil de montar...
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E um menino de bibe
Sobre ele sempre a brincar...
Se a corda se parte um dia
(E já vai estando esgarçada),
-
Era uma vez a folia:
Morre a criança afogada...
Cá por mim não mudo a corda,
Seria grande estopada...
-
Se o indez morre, deixá-lo...
Mais vale morrer de bibe
Que de casaca... Deixá-lo
Balouçar-se enquanto vive...
-
Mudar a corda era fácil...
Tal ideia nunca tive...
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Mário de Sá-Carneiro

sexta-feira, 9 de março de 2007

Toada

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"Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Morei numa casa velha,
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela...
Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem fôr,
Na tal casa tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela,
Tinha, então,
Por única diversão,
Uma pequena varanda
Diante de uma janela
Toda aberta ao sol que abrasa,
Ao frio que tosse e gela
E ao vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda
Derredor da minha casa,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos e sobreiros
Era uma bela varanda,
Naquela bela janela!
Serras deitadas nas nuvens,
Vagas e azuis da distância,
Azuis, cinzentas, lilases,
Já roxas quando mais perto,
Campos verdes e amarelos,
Salpicados de Oliveiras,
E que o frio, ao vir, despia, rasava, unia
Num mesmo ar de deserto
Ou de longínquas geleiras,
Céus que lá em cima, estrelados,
Boiando em lua, ou fechados
Nos seus turbilhões de trevas,
Pareciam engolir-me
Quando, fitando-os suspenso
Daquele silêncio imenso,
Sentia o chão a fugir-me."
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José Régio, Toada de Portalegre (para ler e visitar consoante os estados de espírito, perdendo-nos nas ruas mais fechadas e frias ou largando o olhar nos campos abertos, "como se escrevessemos um poema ou se um filho nos nascera"...)

quinta-feira, 8 de março de 2007

Dia de quem?

8 de Março
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Informações relativas às celebrações nacionais e internacionais.

terça-feira, 6 de março de 2007

Tudo

" (...) por além entra a tristeza, por aquela entra a saudade, e o desejo, e a humildade, e o silêncio, e a surpresa, e o amor dos homens, e o tédio, e o medo, e a melancolia, e essa fome sem remédio a que se chama poesia, e a inocência, e a bondade, e a dor própria, e a dor alheia, e a paixão que se incendeia, e a viuvez, e a piedade, e o grande pássaro branco, e o grande pássaro negro que se olham obliquamente, arrepiados de medo, todos os risos e choros, todas as fomes e sedes, tudo alonga a sua sombra nas minhas quatro paredes." ANTÓNIO GEDEÃO

segunda-feira, 5 de março de 2007

Fracções

"Sim, foi ali.
Tanto quanto é possível localizar-se uma fracção
mais que secreta de vida, foi naquele lugar
e naquele instante que eu,
frente a frente com a minha imagem no espelho
mas já desligado dela,
me transferi para um Outro sem nome e sem memória
e por consequência incapaz da menor relação passado-presente,
de imagem-objecto, do eu com outro alguém
ou do real com a visão que o abstracto contém.
Ele."
José Cardoso Pires, De Profundis, Valsa Lenta.

A velha ceifeira. Atemoriza-nos e é tão próxima. Falei no post anterior da violência nos desenhos animados e na construção de imaginários. O nosso medo da violência tem sempre um medo da morte. Como todos os medos, ultrapassa-se naturalizando o conceito. A morte só é um mistério para quem nunca lhe deu a mão. Quem já passou por experiências como a de Cardoso Pires percebe. Que não cabe em nós, é maior que nós. Uma espécie de paixão descontrolada que nos leva a viver sem medida, que o horizonte não é nosso, só a pressa.
Quem já a viu de perto, mas noutros, entende ainda melhor a inevitabilidade e a fragilidade dos corpos. Entende que as almas são grandes e existem, as memórias, as persistências, as experiências, o sufoco de assuntos incómodos (melhor os desenhos animados, e no entanto...). Quem já viu a morte de perto. Quem já deu a mão à morte. Quem não soube agarrar uma mão tão firme que ficasse sem ser o pó que nos espera. Quem não teve força. Quem acabou por perceber que por muito que se aperte nada resta. A morte é pessoal e intransmissível. Resta-nos o conforto e o desconforto de o saber. Também, a paz de ter essa noção. Nada podemos fazer pela morte, façamos pela vida. Não mais se é agressivo conscientemente. Não mais se desvaloriza ninguém seja de que idade for. Não mais se vê dor sem a sentir na pele. O arrepio da memória. O medo de se repetir, não se quer perder mais ninguém, nem desconhecidos. E sabemos, no entanto, que todos seremos ceifados.
Labirinto recursivo, ninguém sai desta sala, estar é privilégio, vê-se melhor a vida depois de ter visto o escuro ao fundo do túnel. Não se contam as pessoas que vamos perdendo, as nossas baixas de guerra. Filhos, amigos, amores. Não há idade nem estatuto. Se está hoje, pode partir. É uma liberdade dispensável e dura. Talvez devessemos ter mais a noção disso. Não por experiência directa, por favor, é demasiado intensa. Pode não se sair do mergulho.
Mas convém ficar. Não vá o mundo acabar amanhã e perdermos o último nascer do sol. Nós, ou os outros.

domingo, 4 de março de 2007

Inocentes até prova em contrário?

Um bom tema de debate encontrado noutra galáxia. Há mais violência nos desenhos animados da geração born in the 60ths ou nos da geração born in the 90ths? Falo destas faixas etárias porque são a minha e a do meu filho, ficando assim a jogar em casa. Eu via, obviamente, os Looney Tunes. Claro, passava todo o discurso do Vasco Granja à espera de cinco minutos de perseguições, pancadaria e algum cinismo dos anti-heróis que nos seduziam o dark side infantil num estado novo em ruptura. Ria-me, de facto, com gosto, e não me parece que tenha levado mais pancada dos meus irmãos por isso. Também lia Hergé e Goscinny que me dispunham melhor que contos de fadas.

Chegou depois a fase da grande depressão: entraram pelos écrans a Heidi, o Marco e os seus acompanhantes. Supostamente desenhos mais construtivos e humanos, para mim altamente depressivos. Simplesmente não via. Começaram a circular colecções de cromos com as montanhas e o avô e a mãe e o macaquinho e a paciência esgotou. Recusa do real? Não sei. Fase do armário a coincidir com mudanças de discurso para a infância? A verdade é que me centrei ainda mais em quadradinhos como o Fantasma e outros heróis longínquos, em livros de aventuras mais apelativas ou mais fiáveis, e me mantive fiel até hoje à BD franco-belga. O Bip-bip passou em definitivo a herói estável, o coiote a perdedor ridículo. Que influência tiveram no meu crescimento?

Na verdade, podemos fazer uma bela análise de crueldade só neste trecho que apanhei no youtube: é do mais completo. O discurso, a música, os efeitos, as passagens, a sobrevivência eterna no eterno prepotente/perdedor, o cinismo do teóricamente fraco, de discurso compungente, acompanhado de solos de violino, saboreando uma vitória eficaz e seguramente antecipada, arrebatando a raiva dispersa e inútil e os louros. "I hate rabbits" por "I hate lions"? Nada de confusões por aqui.

Partilhei o meu imaginário de infância com o meu filho. Temos estruturas parecidas, por capricho dos genes ou da empatia. Não vê desenhos animados em directo, não gosta, mas gosta de cinema, sempre gostou e haverá figuras mais preversas que os porquinhos escapando da cadeia alimentar e festejando o lobo a cair num caldeirão de água a ferver? Se levarmos os argumentos à letra, ninguém se salva, ou será pacífico ver filmes como o Star Wars, onde Darth Vader é um puto doce e lourinho? Afinal onde páram o bem e o mal? E como explicar, se é numa galáxia distante que se passa a história, que afinal é tudo tão próximo?

Como se constroem os imaginários que nos afectam e nos mobilizam sentimentos? Educar é um mistério. Significa demasiado formatar. Não vale alegar o complexo de Peter Pan, todos estamos neste bolo. Faz diferença o filme que se escolhe a seguir? Faz. Não deve ser engolido, deve ser visto. E conversado. Não se passeia pela vida. Acho que vale a pena tentar passar a mensagem. Nada é inocente. Em nenhuma época. Nem nós próprios.

sexta-feira, 2 de março de 2007

Maria José, em pessoa

Elmer Bischoff, Woman Looking Through Window, c. 1960.

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Maria José, Metáfora de Uma Alma à Janela*

ou

A CARTA DA CORCUNDA PARA O SERRALHEIRO


Maria José

"Senhor António: O senhor nunca há de ver esta carta, nem eu a hei de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo.

O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto à janela quando o senhor passa para a oficina e eu olho para si, porque o espero a chegar, e sei a hora que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem importância na corcunda do primeiro andar da casa amarela, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquela rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja dela mas não tenho ciúmes de si porque não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir à rua e falar consigo ainda que o senhor me não desse razão de nada, mas eu estimava conhecê-lo de falar.

O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguém que gostasse de mim como se gostasse das pessoas que têm o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, e também tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguém.

Eu gostava de morrer depois de lhe falar a primeira vez mas nunca terei coragem nem maneiras de lhe falar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de si, mas tenho medo que se o senhor soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo antes de saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber.

Eu sou corcunda desde a nascença e sempre riram de mim. Dizem que todas as corcundas são más, mas eu nunca quis mal a ninguém. Além disso sou doente, e nunca tive alma, por causa da doença, para ter grandes raivas. Tenho dezanove anos e nunca sei para que é que cheguei a ter tanta idade, e doente, e sem ninguém que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que é o menos, porque é a alma que me dói, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor. Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida que eu nunca posso ter — e agora menos que nem vida tenho — gostava de saber tudo.

Desculpe escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas o senhor não vai ler isso, e mesmo que lesse nem sabia que era consigo e não ligava importância em qualquer caso, mas gostaria que pensasse que é triste ser marreca e viver sempre só à janela, e ter mãe e irmãs que gostam da gente mas sem ninguém que goste de nós, porque tudo isso é natural e é a família, e o que faltava é que nem isso houvesse para uma boneca com os ossos às avessas como eu sou, como eu já ouvi dizer.

Houve um dia que o senhor vinha para a oficina e um gato se pegou à pancada com um cão aqui defronte da janela, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, ao pé do Manuel das Barbas, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim, para a janela, e viu-me a rir e riu também para mim, e essa foi a única vez que o senhor esteve a sós comigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu esperar.

Eu gostava de morrer depois de lhe falar a primeira vez mas nunca terei coragem nem maneiras de lhe falar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de si, mas tenho medo que se o senhor soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo antes de saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber.

Eu sou corcunda desde a nascença e sempre riram de mim. Dizem que todas as corcundas são más, mas eu nunca quis mal a ninguém. Além disso sou doente, e nunca tive alma, por causa da doença, para ter grandes raivas. Tenho dezanove anos e nunca sei para que é que cheguei a ter tanta idade, e doente, e sem ninguém que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que é o menos, porque é a alma que me dói, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor. Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida que eu nunca posso ter — e agora menos que nem vida tenho — gostava de saber tudo.

Desculpe escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas o senhor não vai ler isso, e mesmo que lesse nem sabia que era consigo e não ligava importância em qualquer caso, mas gostaria que pensasse que é triste ser marreca e viver sempre só à janela, e ter mãe e irmãs que gostam da gente mas sem ninguém que goste de nós, porque tudo isso é natural e é a família, e o que faltava é que nem isso houvesse para uma boneca com os ossos às avessas como eu sou, como eu já ouvi dizer.

Houve um dia que o senhor vinha para a oficina e um gato se pegou à pancada com um cão aqui defronte da janela, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, ao pé do Manuel das Barbas, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim, para a janela, e viu-me a rir e riu também para mim, e essa foi a única vez que o senhor esteve a sós comigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu esperar.

Tantas vezes, o senhor não imagina, andei à espera que houvesse outra coisa qualquer na rua quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim e eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos a direito para os meus. Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima de um estrado para poder estar à altura da janela. Passo todo o dia a ver ilustrações e revistas de modas que emprestam à minha mãe, e estou sempre a pensar noutra coisa, tanto que quando me perguntam como era aquela saia ou quem é que estava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, eu às vezes me envergonho de não saber, porque estive a ver coisas que não podem ser e que eu não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu depois ainda por cima ter vontade de chorar. Depois todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque ninguém julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não tenho que explicar porque é que estive distraída.

Ainda me lembro daquele dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que costuma ser. O senhor ia que parecia o próprio dia que estava lindo e eu nunca tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ela mas com outra qualquer, porque eu não pensei senão em si, e foi por isso que invejei toda a gente, o que não percebo mas o certo é que é verdade.

Não é por ser corcunda que estou aqui sempre à janela, mas é que ainda por cima tenho uma espécie de reumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse paralítica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me aceitar que o senhor não imagina. Eu às vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas à vela e a corcunda a sair pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é e não como tinha vontade de ser.

Tantas vezes, o senhor não imagina, andei à espera que houvesse outra coisa qualquer na rua quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim e eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos a direito para os meus.

Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima de um estrado para poder estar à altura da janela. Passo todo o dia a ver ilustrações e revistas de modas que emprestam à minha mãe, e estou sempre a pensar noutra coisa, tanto que quando me perguntam como era aquela saia ou quem é que estava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, eu às vezes me envergonho de não saber, porque estive a ver coisas que não podem ser e que eu não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu depois ainda por cima ter vontade de chorar.

Depois todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque ninguém julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não tenho que explicar porque é que estive distraída.

Ainda me lembro daquele dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que costuma ser. O senhor ia que parecia o próprio dia que estava lindo e eu nunca tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ela mas com outra qualquer, porque eu não pensei senão em si, e foi por isso que invejei toda a gente, o que não percebo mas o certo é que é verdade.

Não é por ser corcunda que estou aqui sempre à janela, mas é que ainda por cima tenho uma espécie de reumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse paralítica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me aceitar que o senhor não imagina. Eu às vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas à vela e a corcunda a sair pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é e não como tinha vontade de ser.
(...)


- e enfim porque lhe estou eu a escrever se lhe não vou mandar esta carta? O senhor que anda de um lado para o outro não sabe qual é o peso de a gente não ser ninguém. Eu estou à janela todo o dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter um modo de vida e gozar e falar a esta e àquela, e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui à janela por tirar de lá.

O senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saúde o que é a gente ter nascido e não ser gente, e ver nos jornais o que as pessoas fazem, e uns são ministros e andam de um lado para o outro a visitar todas as terras, e outros estão na vida da sociedade e casam e têm batizados e estão doentes e fazem-lhe operações os mesmos médicos, e outros partem para as suas casas aqui e ali, e outros roubam e outros queixam-se, e uns fazem grandes crimes e há artigos assinados por outros e retratos e anúncios com os nomes dos homens que vão comprar as modas ao estrangeiro, e tudo isto o senhor não imagina o que é para quem é um trapo como eu que ficou no parapeito da janela de limpar o sinal redondo dos vasos quando a pintura é fresca por causa da água.

Se o senhor soubesse isto tudo era capaz de vez em quando me dizer adeus da rua, e eu gostava de se lhe poder pedir isso, porque o senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais, que pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais feliz lá para onde se vai se soubesse que o senhor me dava os bons dias por acaso.

A Margarida costureira diz que lhe falou uma vez, que lhe falou torto porque o senhor se meteu com ela na rua aqui ao lado, e essa vez é que eu senti inveja a valer, eu confesso porque não lhe quero mentir, senti inveja porque meter-se alguém conosco é a gente ser mulher, e eu não mulher nem homem, porque ninguém acha que eu sou nada a não ser uma espécie de gente que está para aqui a encher o vão da janela e a aborrecer tudo que me vêm, valha me Deus.

O António (é o mesmo nome que o seu, mas que diferença!) o António da oficina de automóveis disse uma vez a meu pai que toda a gente deve produzir qualquer coisa, que sem isso não há direito a viver, que quem não trabalha não come e não há direito a haver quem não trabalhe. E eu pensei que faço eu no mundo, que não faço nada senão estar à janela com toda a gente a mexer-se de um lado para o outro, sem ser paralítica, e tendo maneira de encontrar as pessoas de quem gosta, e depois poderia produzir à vontade o que fosse preciso porque tinha gosto para isso. Adeus senhor António, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para não rir porque eu sei que não posso esperar mais.

Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida.

Aí tem e estou a chorar."
-
Maria José foi o único heterónimo feminino de Fernando Pessoa. Escreveu um único texto, esta carta, um pedido de amor de uma deficiente para alguém que passa na sua janela para o mundo, devendo o texto e as suas expressões ser lidas pensando em situações temporais e sociais específicas. Não sei porque a escreveu, mas parte dos seus problemas são consistentes e dignos de reflexão. Pessoas discriminadas, pessoas sós, pessoas diferentes, pessoas sem amor. Pessoas. Tantos heterónimos de nós. E aí têm e estou a chorar..