terça-feira, 7 de fevereiro de 2006

Do Livro do Desassossego

"Viver do sonho e para o sonho, desmanchando o Universo e recompondo-o distraidamente conforme mais apraza ao nosso momento de sonhar. Fazer isto consciente, muito consciente, da inutilidade de o fazer. Ignorar a vida com todo o corpo, perder-se da realidade com todos os sentidos, abdicar do amor com toda a alma. Encher de areia vã os cântaros da nossa ida à fonte e despejá-los para os tornar a encher e despejar, futilissimamente.
Tecer grinaldas para que, logo que acabadas, as desmanchar, totalmente e minuciosamente.
Pegar em tintas e misturá-las na paleta sem tela ante nós onde pintar. Mandar vir pedra para burilar sem ter buril nem ser escultor. Fazer de tudo um absurdo e requintar para fúteis todas as nossas estéreis horas. Jogar às escondidas com a nossa consciência de viver.
Ouvir as horas dizer-nos que existimos com um sorriso deliciado e incrédulo. Ver o Tempo pintar o mundo e achar o quadro não só falso mas vão."

Bernardo Soares

Sem comentários:

Enviar um comentário