sexta-feira, 12 de junho de 2020

O maior pecado é o esquecimento.

Levantam-se os espíritos incultos e censura-se - censura-se! - novamente, queimemos livros, apedrejemos estátuas - acto inconsequente - inceneremos as bobines de filmes antigos, proibamos - proibamos - as crianças de ler o Padre António Vieira só porque sim. Nem sabem porque combatem, perdoai-lhes muito, muito. Combatem para o lado errado. Combatam para que nunca mais se elejam ditadores baratos e incultos como Trump e Bolsonaro. Combatam para que os salários sejam para lá da identidade de género ou raça ou ideologia. Combatam por injustiças e mortes e fomes e guerras. Não promovam uma. Sobretudo não promovam uma guerra inconsequente pelos motivos errados. Deitem abaixo outras estátuas, desadorem outros deuses. Eduquem os vossos filhos, seja qual for a sua cor. O essencial é mesmo invisível para os olhos. O essencial é o respeito e esse está, por estes dias, esquecido. A História não se apaga, estuda-se!

terça-feira, 2 de junho de 2020

D'outras escritas.

"Be patient toward all that is unsolved in your heart and try to love the questions themselves, like locked rooms and like books that are now written in a very foreign tongue." Rainer Maria Rilke

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Na Cidade, das Serras.

Vinda de fim-de-semana de campo para a cidade, regresso do canto dos pássaros e dos cheiros da terra para uma cápsula de segurança chamada Lisboa e Vale do Tejo em que os números de contágio teimam em subir e a segurança é sempre pouca. Da descontração e do brincar, dos cães e gatos e pavões e árvores e chão amarelo de terra, dos passeios e da paz, do calor e das melgas, de tudo o que o campo tem. Para uma asséptica casa de cidade cheia de livros e sabedorias e estatísticas e preocupações e prazos. Junho não será um mês fácil. Hoje é dia da Criança e porém choramos ainda um adulto. As políticas que desamparem os homens, deixem-nos ser quem somos. E porém, quem votou? Estados Unidos, Brasil... quem votou? De regresso à cidade, cheia de malícias e, no dia da Criança, a insistir em crescer devagar, só o suficiente para me defender a mim e aos meus. O mundo não é a Terra do Nunca e mesmo aí havia piratas...

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Pontos de exclamação!

Durante estes dias dormentes e assustadores, pessoas se manifestaram de formas diversas, partilhando os seus dons e a sua afectividade. Deles destaco Brian May, astrofísico e guitarrista dos Queen e Massimo Bottura, chef estrelado da Osteria Franciscana, em Modena, considerados os melhores dos melhores das suas áreas. Com tanta simplicidade nos abriram as suas casas e ensinaram respectivamente como tocar e como cozinhar, diariamente, durante todo o confinamento. Com paciência, com calma, sem superioridades, com a humildade de quem está a passar pelo mesmo receio, pelos mesmos problemas, com a dignidade de quem faz parte daquela parcela da humanidade que nos faz sentir orgulhosos.
A eles, o meu obrigado. Não que tenha tido muito tempo para ver os directos muitas vezes, mas as que vi fizeram-me sentir em casa de amigos. Pessoas generosas em tempos de crise. 
Como dois sobrinhos meus que partilharam os seus dotes a tocar piano. Como o meu filho que tocou violoncelo, piano e cantou para a mãe nos dias em que lhe pedi, para além daqueles em que ele sentiu disso necessidade emocional. 
A arte, meus amigos, é mesmo um alimento e faz de nós melhores pessoas e melhores humanos. É partilha, é generosidade, é dádiva. Aos artistas que nos ajudaram a sentir melhor durante estes tempos que ainda não acabaram, o meu muito obrigada.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Caderno e lápis

À espera da aula, frente ao computador, auscultadores atentos aos sinais dos outros, microfone atento aos meus sinais, câmara com a luz acesa como num estúdio caseiro de produções alienadas. Caderno e lápis porque gosto de tirar apontamentos à mão, a relação do corpo com a escrita é diversa e a minha mantém-se tradicional, embora utilize muito o computador para trabalhar, 90% da minha informação está em formato digital, mantenho o gosto pela escrita à mão. Noto que perco a capacidade de manter uma letra legível, noto que as minhas mãos perderam a coreografia dos tempos de escola, dos tempos de secundário, dos tempos de faculdade, mesmo, porque só aí se deu a transição de meios. 
Em tempos de distancamento, a aprendizagem e a renovação de conhecimentos não pode, não deve, parar. Por isso daqui a menos de 20 minutos terei a minha aula de duas aulas semanais. Uma formação em cartografia histórica que muito me interessa e muito me é útil para um projecto que estou a iniciar.
Depois, a semana começou... contabilidades, arquivo, digitalizações, arquivo de periódicos do início do século XX, três livros teóricos por acabar de ler. Muitas coisas que não cabem num dia mas que felizmente cabem numa casa com boa vontade para continuar a trabalhar e a estudar (indissociáveis) em segurança. 
Boa semana, fiquem em casa, saúde!

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Dificuldades.

É difícil manter rotinas, é difícil ser consistente nas dificuldades, disciplinarmo-nos quando a vida lá fora parece tão impossível de disciplinar, tão imprevisível, mesmo quando se lembra de deixar de ser vida. 
O sono desregrado, levanto-me cedo e começo a rotinar a minha vida possível, organizo trabalho, terei uma aula dentro em pouco, logo terei Tai Chi, o dia passará a correr, estas semanas têm passado a correr, o contacto pouco, só com as pessoas da casa, entregas, lojas de primeira necessidade, pouco mais.
Três projectos de investigação são agora a minha linha de trabalho: um ainda muito de início, outro destinado a publicação e o terceiro de longo termo. Para além disso três seminários que são projectos de conjunto e que continuam, indiferentes às paredes que os contêm. 
Farei anos um pouco mais tarde neste mês de Maria. Confinada, confinados, aguardando a subida de contágios de Maio, não quero que o meu mês seja mais um mês de luto, no dia dos meus anos fará um mês da morte do Brian. Pôr as caras nas estatísticas, humanizar, talvez seja a única forma de consciencializar tudo isto que nos rodeia, tudo o que nos isola e sufoca, por muito privilegiados que sejamos nas condições em que o estamos a passar em Portugal. Alguns disparates à parte, de forma geral tudo tem sido relativamente bem orientado. No total,  poucas vítimas - poucas? - desta pandemia que nos retorna a tempos medievais de isolamento e silêncio. 
Falamos sempre baixo quando não queremos que a vida nos oiça.

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Eficiência.

Tornamo-nos eficientes. Levantar cedo, compras, lavar embalagens, guardar, lavar sacos de compras, mudar de roupa, desinfectar, fazer almoço, lavar a casa, mudar as camas, almoçar e de repente já estamos ao computador a trabalhar. Não há distrações. Eficientes, sobrevivemos ao isolamento. Duas encomendas entregues hoje, recorremos mais a entregas do exterior. Cada cumprimento de um estranho é uma alegria, como se fosse tudo mentira, como se estivéssemos num mundo dito normal, se alguma vez terá sido normal o nosso mundo ou talvez - talvez - vivêssemos todos uma enorme mentira, um gigantesco conto de fadas em que, benevolentes, acreditássemos só para sobreviver mentalmente ao mundo injusto e terrível em que a poluição, a pobreza, as tiranias, os maus-tratos, invadem casas, países. E agora? Parece que tudo em suspenso mas certamente não. Podemos sem dúvida rezar para que tudo passe e para que tudo melhore, para que todos melhoremos. Mas para sobreviver vamos ter que partir do princípio que o mundo não é cor-de-rosa, nunca foi e talvez, depois desta experiência, nunca mais o seja aos nossos olhos que já viram, de longe, demais.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

As músicas da quarentena.

Dou por mim a procurar músicas extremamente emocionais, sejam pela sua beleza própria sejam pelas recordações específicas que cada uma delas me traz ao coração, eu que me comovo tão pouco. Mas em tempos de sacrifício e de perda de entes queridos e de receios diversos as músicas que ouço fazem-me sentir mais pessoa, menos fria para encarar estes dias em que temos que ser fortes. Podemos, com a música certa, ser mais doces. Seja clássica, seja coral, talvez procure mais vozes neste momento, por uma questão de empatia. Muitas do grupo do meu falecido amigo Brian, os Alexandria Harmonizers. E algumas dele mesmo. Mas sim, vozes, de forma geral. 
Sou filha dos anos 60 afinal.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Mais uma semana...

Será a última semana de confinamento? Será a última de estado de emergência? Não me parece. Não estamos seguros. Aliás, a única coisa certa em nosso torno é a insegurança. 
Rotinamos a nossa nova vida em torno das pessoas possíveis e das tarefas exequíveis, as tecnologias abençoam o restante. Todos nos adaptamos, quase todos, alguns negam, recusam, fogem, criticam.
Mas a verdade é que as estatísticas têm cara, para todos nós, para alguns, para mim, as estatísticas têm cara e as possibilidades têm muito mais caras a começar pela minha. 
Em casa estou segura (?). Estou infantilmente convencida que sim. Desejo que tudo passe, desejo que todos regressem (nem todos regressarão).
Céu azul com nuvens brancas, dia escuro. Já tive uma aula, já almocei, já estou a começar a trabalhar. Ainda não se sabem os números de hoje em Portugal. 
Que todos tenhamos forças para sobreviver com saúde física e mental a este - ainda longo - caminho.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Mais uma semana.

Mais uma semana em casa. Vou ter uma aula dentro de minutos. Está nublado, o tempo da minha janela. Hoje faz uma semana que morreu o Brian. Tomei o meu pequeno almoço sem vontade, mas soube-me bem o café. Lembro-me do café em quantidade que o Brian gostava de tomar de manhã e sorrio. 
Ontem falei ao telefone com muitos amigos. Há que manter as pessoas preciosas ao nosso lado, mesmo que à distância. E recomeçar, todos os dias, com persistência. 
Também, hoje de manhã, encomendei duas máscaras de pano. Vamos ver como me entendo com elas.
Que manhã tão longa e ainda a começar. Boa semana a todos, com saúde!

domingo, 19 de abril de 2020

Quando o sol aquece na varanda.

Como hoje, por entre nuvens, algumas escuras, o sol aqueceu mesmo forte na minha varanda e na minha sala, inundadas de algum optimismo e de alguma esperança, sobretudo depois de ter perdido um amigo há menos de uma semana. 
O sol volta sempre, a História faz-se de altos e baixos, estamos num baixo. Haja bom senso e poucos festejos despropositados. A sensatez e a humildade perante as famílias enlutadas por todo o mundo deviam fazer ponderar certas atitudes. Uma coisa é um discurso ou uma memória, outra é uma celebração.
O sol volta sempre. Sempre haverá pessoas ponderadas e outras que nem por isso, faz parte do género humano, essa diversidade de características, atitudes e opções. Quem sou eu para dizer quem tem razão? Mas tenho a liberdade e o meu bocadinho de sol para ter uma opinião.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Brian Miller, my friend...

Oh , Danny Boy the pipes, the pipes are calling
From glen to glen, and down the mountain side
The summer's gone, and all the roses falling
It's you, it's you must go and I must bide.

But come ye back when summer's in the meadow
Or when the valley's hushed and white with snow
It's I'll be here in sunshine or in shadow
[Live version:] And I'll be here in sunshine or in shadow
Oh Danny boy, oh Danny boy, I love you so.

But when ye come, and all the flow'rs are dying
If I am dead, as dead I well may be
You'll come and find the place where I am lying
And kneel and say an ave there for me.

And I shall hear, though soft you tread above me
And all my grave will warmer, sweeter be
For you will bend and tell me that you love me
And I shall sleep in peace until you come to me.


segunda-feira, 13 de abril de 2020

Dúvidas e rotinas

Em tempos de crise, dúvidas cercam-nos acerca de tudo. Da saúde, do tempo, do futuro, da nossa própria segurança. Do outro lado do muro estão as rotinas que nos seguram. Levantar, arranjar, rotinas de ginástica, trabalhar. São as rotinas que nos seguram, na realidade, porque com elas inventamos um mundo nosso dentro do mundo que até funciona, que até é normal. 

Nesse mundo não temos amigos doentes nem temos medo de ter a nossa família doente, nem aquela pequena tosse de ontem nos afecta porque obviamente que nos engasgámos e todas as compras chegam limpas e desinfectadas do supermercado. 

Nesse mundo não há sombras nem medos porque tudo é como era ou tudo é como seria se fosse como o queremos. Como o sonhamos. Como o fazemos em futuro próximo. Como o imaginamos e tornamos - esperançosos - em real.

sábado, 11 de abril de 2020

À espera.

Sábado de Aleluia e nós todos à espera do Milagre. De todos os Milagres. De um Deus que nos salve, de um mundo que se redima, de pessoas mais compassivas. De doentes que recuperem. De mortos que deixem nas famílias boas memórias e uma dor que vá passando... 
Todos à espera que o ano de 2020 seja uma Páscoa. Que haja, no fim de tudo, sorrisos. Porque as lutas que se travam honestas e frontais contra os inimigos imprevisíveis têm direito a finais felizes. A História não é uma reta. Há momentos duros mas há momentos felizes, oh, claro que há e vai voltar a haver momentos de riso. 
Não somos inconscientes. Escrevo enquanto tenho um amigo a lutar pela vida num ventilador que não sei se lhe vai ser útil para ficar aqui neste mundo. Mas acredito que pode ficar, sim, mais um tempo junto dos seus amigos. E que no fim haverá abraços cansados mas abraços apesar de tudo.
Um ano de Páscoa. Como ontem no Vaticano em que os heróis foram médicos, enfermeiros, voluntários, em que os testemunhos foram todos ligados à realidade prisional. Não somos presos a tantas coisas, aos nossos defeitos, aos nossos egoísmos, não os gostaríamos de mudar para qualidades? Não somos tantas vezes apressados a julgar, mesmo agora quando vemos os telejornais e julgamos e criticamos com tanta fluidez quem está em cargos de responsabilidade e certamente dor que nem de perto imaginamos?
Uma longa Páscoa. Talvez a mais significativa das nossas vidas.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

O que nos faz sorrir.

Pensar nesta chuva de cidade também no campo, fechar os olhos e ver as árvores húmidas, o chão cheio de gotas com reflexos, arco-íris por todo o lado e os cães a cheirar a molhado e a brincar, felizes. 
Fazer um bolo ou uma refeição mais apurada para partilhar com os mais próximos, os próximos, os que agora dividem os dias sem partição connosco, os dias inteiros e um bolo de mel, os dias interinhos e um bacalhau com natas, os dias todos do mundo e uns bifes. Que sorte temos em poder cuidar uns dos outros!
Meditar nas coisas boas das nossas vidas, acreditar - saber - que tudo o que é pesadelo passa um dia quando acordarmos e podermos voltar à rua e abraçar de novo família e amigos. Claro que os problemas do mundo - os ódios, a fome, as guerras, a poluição - continuarão por cá, mas talvez, talvez, estejamos todos mais alertas para os valores verdadeiros e mais dispostos a lutar com vontade por eles.
Acreditar muito que cada dia é uma dádiva num momento em que tantas pessoas estão doentes, em que tantas pessoas morrem, em que tantas famílias choram os seus. Acreditar que no nosso pequenino mundo das casas em que nos encontramos confinados, o importante é mesmo saber que as pessoas que amamos estão bem e que estamos a contribuir para o seu bem estar e segurança. Estamos a ser parte da solução. E há solução, provavelmente não a dos homens, mas alguma maior que o nosso entendimento que virá a seu tempo como tudo o que é grande e bom e digno de ser acreditado.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Em tons de cinza

Em tons de cinza estes dias que correm ágeis por entre novas rotinas e novos (des)caminhos. Em meios tons, paleta desbotada, uma tristeza mendicante, uma ânsia de ficar aqui, quente e seguro, no canto da casa. Lá fora todas as ameaças e todas as tormentas, como numa intempéride inesperada e arrebatadora. De um estado a outro se passa num segundo. O medo é poderoso e a infância regressa toda de repente por cima de cinquenta anos, desbaratando o vivido pelo viver discreto e calado dos nossos dias de hoje. É cedo. Dia de compras. Logo mais chegarão "os números". Poderemos ver com algum tom de habituação quantos compatriotas nossos morreram de ontem para hoje. Poderemos até achar que foi um bom resultado. Em que nos estamos a tornar? Que vírus é este que nos atinge no coração, mesmo que cheios de intenções e orações mas afinal "um bom resultado 6%". É péssimo, é cruel, estão famílias num luto que nem lhes é permitido. E se fosse a nossa? Tenho um amigo ventilado nos Estados Unidos. Cada dia uma luta. Cada dia mais um dia de sobrevivência. Como uma peregrinação quaresmal em busca de paz. Porque me parece que no fim de tudo isto será apenas o que quereremos, caídos do cansaço da nossa impotência.

terça-feira, 7 de abril de 2020

A liberdade, sim, a liberdade!


A liberdade, sim, a liberdade!
A verdadeira liberdade!
Pensar sem desejos nem convicções.
Ser dono de si mesmo sem influência de romances!
Existir sem Freud nem aeroplanos,
Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço!
A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais
A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida!
Como o luar quando as nuvens abrem
A grande liberdade cristã da minha infância que rezava
Estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de prata para mim...
A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente,
A noção jurídica da alma dos outros como humana,
A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez
Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma
E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo!
Passos todos passinhos de criança...
Sorriso da velha bondosa...
Apertar da mão do amigo [sério?]...
Que vida que tem sido a minha!
Quanto tempo de espera no apeadeiro!
Quanto viver pintado em impresso da vida!
Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade,
Dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote
Da casa do campo da minha velha infância...
Eu bebia e ele chiava,
Eu era fresco e ele era fresco,
E como eu não tinha nada que me ralasse, era livre.
Que é do púcaro e da inocência?
Que é de quem eu deveria ter sido?
E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?

Álvaro de Campos

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Silêncios

É hora do meu chá e páro um pouco. O verde rodeia a minha casa e ao fundo, o mar. Não sei quando irei ver o mar mais de perto. Nas minhas mãos, o mundo sob a forma de telemóvel, contendo sorrisos e palavras de todos os meus amigos e família. Temos falado bastante nestas semanas de separação (de facto o isolamento significa separaçã dos outros). Temos necessidade de comunicar.
O dia não está apetecível para passeios e mesmo assim gostaria de dar uma voltinha. Páscoa estranha esta, ainda há pouco contactava com um amigo que me dizia sentir-se num filme, assim eu me sinto.
Acordar, organizar o dia de trabalho, fazer o chá das 10h., regressar à escrita, ao final da manhã preparar a refeição da família, depois arrumar tudo com as suas ajudas. Da parte da tarde, livros para ler ou recensear, ou mais trabalho de escrita. Para me distrair uma série enquanto faço bicicleta.
Claro que nem todos os dias correm assim tão disciplinados, há dias em que me sinto desmotivada, há dias em que estou preocupada e não caibo na pele...
O serão implica o jantar em família e um filme ou série depois das notícias. Deito-me cedo, adormeço tarde. 
Pelo meio, silêncios, como agora em que os meus dedos escrevem e eu em  silêncio sem dizer nada, a deixá-los falarem sózinhos, e eu tão quieta, no meu canto, a olhar.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Cabelos sem vento.

Hoje cortei o cabelo em casa. Uma amiga também já o fez. Os filhos dela raparam o cabelo para crescer durante a querentena. Cá em casa hesita-se, cresce a barba, corta-se a barba? Encomenda-se uma máquina de cortar cabelo?
São pequenos detalhes do dia-a-dia que nos fazem perceber que tudo está mal. Tudo está ao contrário. Não é um País das Maravilhas onde caímos, mas um poço fundo com muita dor e muita tristeza, com muito risco, de onde muitas famílias irão sair enlutadas e muitos serviços e negócios arruinados. Nunca tínhamos pensado que os barbeiros/cabeleireiros pudessem estar todos fechados em Portugal. Nunca tínhamos pensado viver uma pandemia. Nunca tínhamos pensado na ausência da escola física. Nunca tínhamos pensado ficar tantos dias todo o dia com a nossa família nuclear, algo que de nos queixávamos - o pouco tempo, as crianças educadas pelos outrso - e que agora nos cai como uma bomba no colo. Encarar os muito próximos, em pijama, de longos cabelos desacertados, ar aborrecido, corpo inerte pela falta de andar.
Só com muito amor poderemos passear de mãos dadas com os cabelos ao vento num dia do futuro. Não sabemos ainda quando. Mas poderemos. Essa vontade é enorme, impaciente e consome-nos. Mas voltaremos a abraçar família e amigos. Por agora só os muito próximos, os mesmo-ao-lado. Se formos fortes encontraremos de longe todos os abraços nesses abraços de perto. E o caminhar livre na rua com os cabelos (cortados) ao vento chegará também, a seu tempo, com segurança, na direcção de um mar acolhedor, de um campo de flores, de uma esplanada cheia de amigos, de um mundo retomado devagarinho como uma criança assustada que teremos, ainda, que levar ao colo durante algum tempo.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Mergulhar num novo mês...

Tudo muda hoje, mudou a hora, vai mudar a quarentena, vai chegar a Páscoa, vamos continuar a mudar de vida todos os dias. Todos os dias acordamos e não saímos para o trabalho, desinfectamos tudo, como num filme ouvimos as mensagens das câmaras sobre a necessidade de ficar em casa, como num filme, vemos os nossos cabelos crescer, os nossos trabalhos atrasar, a nossa paciência para gráficos e estatísticas esgotar, saturados, cansados. Porém gratos por estarmos bem.
Lá fora chove - também isso mudou, o tempo, não o da nossa espera, o tempo do mundo, a natureza que chora por toda esta loucura - e chega-me uma luz límpida por meio das nuvens. Faço nova lista de compras de mercearia e farmácia, as únicas saídas de casa, os únicos contactos com o mundo exterior, as novidades que chegam para mudar uma casa cada vez mais imóvel com a passagem dos dias. Como se nunca tivéssemos vivido outra vida. E isso é o mais assustador de tudo, a potência de adaptação do homem à condição do medo.