segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

A dimensão da poesia

Era ele que erguia casas

Onde antes só havia chão.

Como um pássaro sem asas

Ele subia com as asas


Que lhe brotavam da mão.


Mas tudo desconhecia


De sua grande missão:


Nao sabia por exemplo


Que a casa de um homem é um templo


Um templo sem religião


Como tampouco sabia


Que a casa que ele fazia


Sendo a sua liberdade


Era a sua escravidão.


De fato como podia

Um operário em construção


Compreender que um tijolo


Valia mais do que um pão?


Tijolos ele empilhava


Com pá, cimento e esquadria


Quanto ao pão, ele o comia


Mas fosse comer tijolo!


E assim o operário ia


Com suor e com cimento


Erguendo uma casa aqui


Adiante um apartamento



Além uma igreja, à frente


Um quartel e uma prisão:


Prisão de que sofreria


Não fosse eventualmente


Um operário em construção.


Mas ele desconhecia


Esse facto extraordinário:


Que o operário faz a coisa


E a coisa faz o operário.


De forma que, certo dia


À mesa, ao cortar o pao


O operário foi tomado


De uma subita emoção


Ao constatar assombrado


Que tudo naquela mesa


- Garrafa, prato, facão


Era ele quem fazia


Ele, um humilde operário


Um operário em construção.


Olhou em torno: gamela


Banco, enxerga, cadeirão


Vidro, parede, janela


Casa, cidade, nação!


Tudo, tudo o que existia


Era ele quem fazia


Ele, um humilde operário


Um operário que sabia


Exercer a profissão.



Ah, homens de pensamento


Não sabereis nunca o quanto


Aquele humilde operário


Soube naquele momento


Naquela casa vazia


Que ele mesmo levantara


Um mundo novo nascia


De que sequer suspeitava.


O operário emocionado


Olhou sua própria mão


Sua rude mão de operário


De operário em construção


E olhando bem para ela


Teve um segundo a impressão


De que não havia no mundo


Coisa que fosse mais bela.



Foi dentro dessa compreensão


Desse instante solitário


Que, tal sua construção


Cresceu tambem o operário


Cresceu em alto e profundo


Em largo e no coração


E como tudo que cresce


Ele não cresceu em vão


Pois além do que sabia


- Excercer a profissão -


O operário adquiriu


Uma nova dimensão:


A dimensão da poesia.



E um fato novo se viu


Que a todos admirava:


O que o operário dizia


Outro operário escutava.


E foi assim que o operário


Do edificio em construção


Que sempre dizia "sim"


Comecou a dizer "não"


E aprendeu a notar coisas


A que não dava atencao:


Notou que sua marmita


Era o prato do patrão


Que sua cerveja preta


Era o uisque do patrão


Que seu macacão de zuarte


Era o terno do patrão


Que o casebre onde morava


Era a mansão do patrão


Que seus dois pás andarilhos


Eram as rodas do patrão


Que a dureza do seu dia


Era a noite do patrão


Que sua imensa fadiga


Era amiga do patrão.


E o operário disse: Não!


E o operário fez-se forte


Na sua resolução



Como era de se esperar

As bocas da delação


Começaram a dizer coisas


Aos ouvidos do patrão


Mas o patrão não queria


Nenhuma preocupação.


- "Convençam-no" do contrário


Disse ele sobre o operário


E ao dizer isto sorria.



Dia seguinte o operário


Ao sair da construção


Viu-se subito cercado


Dos homens da delação


E sofreu por destinado


Sua primeira agressão


Teve seu rosto cuspido


Teve seu braço quebrado


Mas quando foi perguntado


O operário disse: Não!



Em vão sofrera o operário


Sua primeira agressão


Muitas outras se seguiram


Muitas outras seguirão


Porém, por imprescindivel


Ao edificio em construção


Seu trabalho prosseguia


E todo o seu sofrimento


Misturava-se ao cimento


Da construção que crescia.



Sentindo que a violência


Nao dobraria o operário


Um dia tentou o patrão


Dobrá-lo de modo contrário


De sorte que o foi levando


Ao alto da construção


E num momento de tempo


Mostrou-lhe toda a região


E apontando-a ao operário


Fez-lhe esta declaração:


- Dar-te-ei todo esse poder


E a sua satisfação


Porque a mim me foi entregue


E dou-o a quem quiser.


Dou-te tempo de lazer


Dou-te tempo de mulher


Portanto, tudo o que vês


Será teu se me adorares


E, ainda mais, se abandonares


O que te faz dizer não.



Disse e fitou o operário


Que olhava e reflectia


Mas o que via o operário


O patrão nunca veria


O operário via casas


E dentro das estruturas


Via coisas, objectos


Produtos, manufacturas.


Via tudo o que fazia


O lucro do seu patrão


E em cada coisa que via


Misteriosamente havia


A marca de sua mão.


E o operário disse: Não!



- Loucura! - gritou o patrão


Nao vês o que te dou eu?


- Mentira! - disse o operário


Nao podes dar-me o que é meu.


E um grande silêncio fez-se

Dentro do seu coração


Um silêncio de martirios


Um silêncio de prisão.


Um silêncio povoado


De pedidos de perdão


Um silêncio apavorado


Com o medo em solidão


Um silêncio de torturas


E gritos de maldição


Um silêncio de fracturas


A se arrastarem no chão


E o operário ouviu a voz


De todos os seus irmãos


Os seus irmãos que morreram


Por outros que viverão


Uma esperança sincera


Cresceu no seu coração


E dentro da tarde mansa


Agigantou-se a razão


De um homem pobre e esquecido


Razão porem que fizera


Em operário construído


O operário em construção


Vinícius de Moraes

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