sexta-feira, 18 de junho de 2010

Ensaio sobre a Cegueira

São só meninos como os outros e estão sentados em torno a uma tavola rectangular mas em que se não identificam cabeceiras, pois a luz está dentro e não fora dos seus olhos, e o essencial é omnipresente. "Ciao, Maria", enquanto o trabalho já começou, uma semana de formação para voltarem para casa com mais umas dicas tiflológicas para o seu ambiente, para a coordenação com os outros, com os pais, com os colegas, com o mundo. Consigo mesmos.

As abelhas feitas na véspera estavam colocadas minuciosamente nos hexágonos, cada um reconhecia o seu trabalho devagarinho, pelo tacto, pelo cheiro, pelo mapa de si mesmos, dos seus pensamentos, aprendendo a reconhecer a memória da coreogrfia dos gestos ou o que os crescidos chamam agora de neuroestetica.

Os gémeos tinham ido a uma consulta, estavam Stefi, France, Alle, Simo e Alfie, nomes de guerra, as tiflólogas de que não sei o nome e Paola, a mulher que dirige serviços trabalhando mais que todos os que orienta, a alma do Istituto dei Ciechi de Milão.

"Paola, Paola". O pão partido como na Última Ceia pintada numa parede algumas ruas ao lado. Os legumes identificados: tomate, basílico, orégãos, alho. Depois azeite e sal. Bruschetta. Fred acendeu o forno. Manejar facas sem ver quando se tem 6 anos pode ser complicado, mas mais belo ainda que o cozinhado final foi o convite feito à sala do lado, em que a compreensão do mundo era toda outra - não só pela visão, mas pela interiorização do conhecimento, diferente, própria, única, emocional, diversa, rica - para partilhar o resultado.

Hoje não fiquei para almoçar com os bambini de Paola, tive que sair mais cedo do Istituto porque o sal me cozinhava o pensamento de partir, de não os ver mais, só por dentro, só por dentro. Aprender a lidar com as distâncias. Uma senhora lia O Livro do Desassossego quando saí, com prefácio de Tabucchi. Cheguei a casa e liguei-me ao mundo da claridade, saí do buio doce e aconchegante. Fui aos correios para acordar. Voltei. Saramago morreu. Memorial do Convento, Ensaio sobre a Cegueira e, talvez, uma história de amor.

Hoje está sol depois da tempestade. É um dia igual aos outros. Pessoas que partem, pessoas que ficam. Dentro de nós. Luce su luce. Sempre.

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