E murmura para si:
Nada sabem das coisas do fogo.
Os dons mais profundos do
homem murcham dentro deles.
Deverei amá-Ios?
Herberto Hélder
Nada sabem das coisas do fogo.
Os dons mais profundos do
homem murcham dentro deles.
Deverei amá-Ios?
Herberto Hélder
Isto de se morrer de repente é estranho de mais, onde estás, Paulo? Fiquei um bocadinho zangada com a vida, tu não deixarias, farias o teu sorriso tímido e engasgar-te-ias entre o tratar-me por tu ou por você, eu refilaria contigo logo de seguida (então!). Julgo que me não deixarias zangar com a vida, que me dirias para continuar no caminho e fazer o meu melhor deste percurso cheio de curvas e alguns abismos. Fiquei um bocadinho zangada com a vida que te trouxe por perto e que me fazia sorrir de manhã com uma rosa no messenger ou um arco-íris e aqueles bonecos animados que tu escolhias com o tempo de quem tem tempo para pensar nos outros e no que os faz sorrir. No tempo de quem tem tempo para ter cuidado.
Procuro as tuas folhas, os quatro textos que me deste quando almoçámos, quando num dia de sol passeámos e falámos de coisas importantes e de outras sem importância nenhuma, no dia em que me perdi por Setúbal e te liguei do estádio do Vitória e me foste indicando o caminho por telemóvel com uma paciência inédita (nunca exigir o que não podemos, dar de nós o nosso melhor, encontramo-nos a meio caminho).
No dia em que te enterneceste com o JP, no dia em que bebemos coca-cola de lata com uma palhinha e eu segurava no carro o teu corpo que se desfazia com os solavancos, um corpo que era teu e que tu vias de longe, a cadeira que tinha um tabuleiro que eu não sabia arranjar e tu ensinavas, o teu corpo tão leve como uma pena, tão leve como um bebé muito leve (lembraste-me, sabes, a leveza, a cor, acho que sabias e nunca te contei, acho que leste as minhas feridas de guerra).
Os teus textos, o teu amor pela escrita, as folhas - trazes, Maria? - encaixadas num livro pelo teu companheiro de quarto sem voz, só ternura, tapando a cara, olhando com olhos de longe, com olhos de medo, depois mais perto, depois a mão e um sorriso cheio do amor que precisava, um sorriso como um abraço, uns olhos muito claros, de ver um mundo que nós não temos o privilégio de ver. O livro era Os Passos em Volta, de Helberto Hélder, capa cor-de-laranja - também gosto muito, como não? - as outras folhas eram histórias, um caso de apoio que tinhas prestado a um companheiro de casa, um texto sobre a condição de deficiente, dois textos sobre a escrita, procuro-os sem cessar entre os papéis sobre a minha mesa e teimam em não aparecer e preciso tanto deles para ouvir a tua voz.
A voz que mantiveste bonita, a voz calma - podes-me arrumar o corpo? - de sábio, de pai de uma tribo, a voz que entrava no jogo da fantasia ou no pragmatismo da acção e porque dói tanto pensar agora no telefonema que fiz para o teu nome, Paulo Rilhó - Paulo Rilhó - que a tua mãe atendeu e eu sem crer que era a tua mãe, onde estavas, e eu ontem no carro com chuva, depois de dias sem rosas no messenger e sem arco-íris, depois de preocupada com um telefonema de um amigo comum. A voz não era a tua, nunca compreendi como mantiveste a voz pura e clara como a escrita, mas ainda bem. A voz não era a tua, já não a tinhas, já não a tens.
Agora não sei onde estás e preciso tanto de te falar da entrevista de emprego do Luís, do computador da Inês, da feira deste fim-de-semana, temos os contactos com as associações e tens que me ajudar a preparar uma das aulas, lembras-te? Sem voz, Paulo, como vamos fazer, meu querido? Como vamos preparar a reunião de Maio, com todos os do grupo? E a carta para as Fundações? Como irei buscar a tua cadeira vazia para dobrar no meu carro e passear até ao Tejo, em dias de azul, sem a voz entre almofadas negras, sem a voz, sem as mãos pequeninas - pões-me a direita sobre a esquerda, por favor, Maria? - e o livro ao lado, as fotografias que tirámos, tu a indicar, eu a carregar no botão.
Como vou fazer para dizer a todos os que te amam que a tua voz foi com o teu corpo para o mundo das memórias e o livro de Herberto Hélder ficou fechado, com os teus textos a marcar as páginas? Como vou sorrir de manhã sem as rosas no messenger e os projectos na alma?
Talvez o teu corpo liberto agora, a voz sussurra-me perto que estás, as mãos mexem-se de novo e acho que me abraças porque a vontade de chorar passou e me apetece beber coca-cola numa esplanada junto ao Tejo e fazer planos de mudar o mundo.
Para mais perto das pessoas belas.
Procuro as tuas folhas, os quatro textos que me deste quando almoçámos, quando num dia de sol passeámos e falámos de coisas importantes e de outras sem importância nenhuma, no dia em que me perdi por Setúbal e te liguei do estádio do Vitória e me foste indicando o caminho por telemóvel com uma paciência inédita (nunca exigir o que não podemos, dar de nós o nosso melhor, encontramo-nos a meio caminho).
No dia em que te enterneceste com o JP, no dia em que bebemos coca-cola de lata com uma palhinha e eu segurava no carro o teu corpo que se desfazia com os solavancos, um corpo que era teu e que tu vias de longe, a cadeira que tinha um tabuleiro que eu não sabia arranjar e tu ensinavas, o teu corpo tão leve como uma pena, tão leve como um bebé muito leve (lembraste-me, sabes, a leveza, a cor, acho que sabias e nunca te contei, acho que leste as minhas feridas de guerra).
Os teus textos, o teu amor pela escrita, as folhas - trazes, Maria? - encaixadas num livro pelo teu companheiro de quarto sem voz, só ternura, tapando a cara, olhando com olhos de longe, com olhos de medo, depois mais perto, depois a mão e um sorriso cheio do amor que precisava, um sorriso como um abraço, uns olhos muito claros, de ver um mundo que nós não temos o privilégio de ver. O livro era Os Passos em Volta, de Helberto Hélder, capa cor-de-laranja - também gosto muito, como não? - as outras folhas eram histórias, um caso de apoio que tinhas prestado a um companheiro de casa, um texto sobre a condição de deficiente, dois textos sobre a escrita, procuro-os sem cessar entre os papéis sobre a minha mesa e teimam em não aparecer e preciso tanto deles para ouvir a tua voz.
A voz que mantiveste bonita, a voz calma - podes-me arrumar o corpo? - de sábio, de pai de uma tribo, a voz que entrava no jogo da fantasia ou no pragmatismo da acção e porque dói tanto pensar agora no telefonema que fiz para o teu nome, Paulo Rilhó - Paulo Rilhó - que a tua mãe atendeu e eu sem crer que era a tua mãe, onde estavas, e eu ontem no carro com chuva, depois de dias sem rosas no messenger e sem arco-íris, depois de preocupada com um telefonema de um amigo comum. A voz não era a tua, nunca compreendi como mantiveste a voz pura e clara como a escrita, mas ainda bem. A voz não era a tua, já não a tinhas, já não a tens.
Agora não sei onde estás e preciso tanto de te falar da entrevista de emprego do Luís, do computador da Inês, da feira deste fim-de-semana, temos os contactos com as associações e tens que me ajudar a preparar uma das aulas, lembras-te? Sem voz, Paulo, como vamos fazer, meu querido? Como vamos preparar a reunião de Maio, com todos os do grupo? E a carta para as Fundações? Como irei buscar a tua cadeira vazia para dobrar no meu carro e passear até ao Tejo, em dias de azul, sem a voz entre almofadas negras, sem a voz, sem as mãos pequeninas - pões-me a direita sobre a esquerda, por favor, Maria? - e o livro ao lado, as fotografias que tirámos, tu a indicar, eu a carregar no botão.
Como vou fazer para dizer a todos os que te amam que a tua voz foi com o teu corpo para o mundo das memórias e o livro de Herberto Hélder ficou fechado, com os teus textos a marcar as páginas? Como vou sorrir de manhã sem as rosas no messenger e os projectos na alma?
Talvez o teu corpo liberto agora, a voz sussurra-me perto que estás, as mãos mexem-se de novo e acho que me abraças porque a vontade de chorar passou e me apetece beber coca-cola numa esplanada junto ao Tejo e fazer planos de mudar o mundo.
Para mais perto das pessoas belas.
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