quinta-feira, 30 de outubro de 2008

A chave


Um dia perdemos a chave amarela e nunca mais nos lembramos, deixamos que passem anos, a mesa é alta e cansa-nos a infância, pesa-nos a adultice. Pequenos demais, grandes de menos, a perspectiva deixa de ser a certa. Passamos noites em branco escrevinhando dúvidas, interrogações, predisposições, pensamentando os dias que não foram.

Como numa história, era sempre uma vez em que a prisão nos intimidava demais para não a levarmos a sério. Algum dia, o sorriso perdido, portanto. Somos tão vitorianos...

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

...


"The devil is compromise." Henrik Ibsen
(retratado por Eduard Münch)

Quando a noite dança

Era outrora um conde 
que fez um país,
com sangue de moiro,
com laranjas de oiro,
como a sorte quis.

Há bruxas que dançam
quando a noite dança,
são unhas de nojo,
são bicos de tojo,
no tambor da esperança.

Ventos sem destino
que dizeis às ramas?
Desgraça bramindo
é a nós que chamas.

No país que outrora
um conde teceu
com laranjas de oiro,
com sangue de moiro,
tudo apodreceu.

Anda o sol de costas
e as bruxas dançando
e os ventos do norte
sobre nós espalhando
as tranças de morte.

As estrelas mortas
apagam-se aos molhos:
vem, lume perdido,
florir-nos os olhos.

Ama, estarás ouvindo
a história que vou contando?
Ó ama pátria dormindo
desde quando?

Desde tempos e memórias,
desde lágrimas e histórias,
desde cóleras e glórias,
agora te estou chorando
e tu dormindo
até quando?

As bruxas andam lá fora
e eu chorando
versos do país de outrora.

Dançam bruxas a ganir
de mãos dadas com o vento.
Ama, acorda; sopra o lume;
e não me deixes dormir
na noite do pensamento.

Ó castelos moiros
armas e tesoiros,
quem vos escondeu?
Ó laranjas de oiro,
que vento de agoiro
vos apodreceu?

Há choros, ganidos,
à luz da caverna
onde as bruxas moram,
onde as bruxas dançam
quando os mochos amam
e as pedras choram.

Caravelas, caravelas,
mortas sob as estrelas
como candeias sem luz;
e os padres da inquisição
fazendo dos vossos mastros
os braços da nossa cruz.

As bruxas dançam de roda
entre o visco dos morcegos,
dançam de roda, de rojo,
dançam voando, rasgando
a noite morta do povo
com as unhas, bicos de tojo.

E o tempo murchando
a luz de idos loiros.
Ama, até quando
estaremos chorando
os castelos moiros?

Lá vão naus da Índia,
lá se vão tesoiros.
E as bruxas dançando
e os ventos secando
as laranjas de oiro.

Ama, até quando?

Na noite das bruxas
o lume no fim
e o vento ganindo.

Ama, estarás ouvindo?

O lume no fim
e os homens dispersos.

Ama, tens frio;
cinge-te a mim
e aquece-te ao lume
queimando os meus versos.


Carlos de Oliveira (1921-1981), Xácara das Bruxas Dançando.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

A minha deixa

Tenho um alarme no telemóvel que me dá as deixas, o que é tecnologicamente sedutor. Agora, por exemplo, diz-me para parar com as actualizações ao Desassossego e dirigir-me ao meu observatório sociológico do dia para me vender por dois sorrisos e uma rotina. Toca de novo, são as notícias do fundo da rua, "Alguns movimentos de professores que agendaram uma manifestação para 15 de Novembro, vão reunir-se com os sindicatos na sede da Fenprof, dia 29." Pego no meu livro e nas chaves do carro.

Ordeiramente

Mais uma segunda-feira de ciclos dormentes em que uma multidão de carros, estranhamente familiar, se dirige à Rua dos Douradores
...

Animal aflito


Ai que útil definir, que bem nos definiu Gedeão, que tanto baralhamos o mundo e nos baralhamos no tempo. Hora daqui, hora dali, nem outras oras nos libertam, que vivemos descrentes de nós. Passei o dia a acertar e a desacertar relógios. Relógios-relógios. Relógios com funções de relógios. Relógios de parede. Relógios de pulso. Relógios-anexos. A telefones. A computadores. De tal forma acertei e desacertei que o tempo tomou conta da minha casa e do meu dia e me perdi, guiada e baralhada pela luz da tarde.

Não sei que fazemos de nós com tantas artificialidades conduzidas por automatismos. Não sei porque deixamos que os Grandes Irmãos (não concebo um único, sou uma politeísta das desgraças) nos invadam desta maneira e as tecnologias os retorçam e nos torçam nos humildes esforços de nos mover no pouco espaço de vontade que achamos que nos sobra.

Afinal, nada sobra a não ser um crasso erro. Roubam as nossas produções intelectuais sem backup. Lemos emails de protestos mal humorados sobre quem brinca com as coisas nossas. Rimos com mais uns Gatos, mesmo publicitados mais que a conta, apesar de tudo em crescer de qualidade dentro de um humor que nos habitua seguro. Reconciliaram-nos com as horas, já certas no final do dia, de juntar a família e os amigos para ver e comentar uma pequena emissão televisiva. Há muito tempo que não revivia esta experiência. Louvados sejam mais a sua ironiazinha chegada a tempo e horas de longo Inverno. Sem censura.

domingo, 26 de outubro de 2008

Informação insana

Cerca-nos, claro. Mas parte dela é transparente. Na escolinha, tenho estado a aprender sobre memória. E esquecimento que, então na área de História, é certamente outra história. De resto, comecei a ler um livro em que o herói tem um chip de retenção de informação. Informação sufocante.

Toda a informação, informação seleccionada, informar, in(formar). Precisa-se de sanidade mental. Passamos os dias a esquecer, parte do processo é automático, selectivo, a outra parte é relativamente controlada por nós. Os mecanismos de lembrança, memória ou recordação (que não são sinónimos entre si) podem ser mais Tempo Perdido ou mais Ulisses.

Apre(e)nder.

Depois, há a memória visual. Resultaria, enfileirar crianças na A1 a aprender o alfabeto?

domingo, 19 de outubro de 2008

Atirei-me


Sim, foi por mim que gritei,

Declamei, Atirei frases em volta,

Cego de angústia e de revolta.

José Régio

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Lx-files


A um criativo, ou atente-se num dos meus tags preferidos, de um dos blogs mais encantadores que por aí andam, discreto, discreto, parabéns, hoje, ao autor!

(os tags, leiam os tags, consultem pelos tags, vale a pena voltar a acreditar que há criatividade por esta esfera que vamos preenchendo)

Genial Lx-Files! Um abraço, João Paulo!

sábado, 4 de outubro de 2008

Mensagem


""Havia um menino,
que tinha um chapéu
para pôr na cabeça
por causa do sol.

Em vez de um gatinho
tinha um caracol.

Tinha o caracol
dentro de um chapéu;
fazia-lhe cócegas
no alto da cabeça.
Por isso ele andava
depressa, depressa
p’ra ver se chegava
a casa e tirava
do chapéu, saindo
de lá e caindo
o tal caracol.

Mas era, afinal,
impossível tal,
nem fazia mal
nem vê-lo, nem tê-lo:
porque o caracol
era do cabelo."

Fernando Pessoa