quinta-feira, 14 de maio de 2009

Num instante

Num instante passaram 30 anos, porque há pouquinho tinha 13 e vinha de autocarro do Campo Grande com a minha amiga Teresa, que morava uns números de porta abaixo da dos meus pais. Agora a Teresa é médica e o pai dela velhinho, velhinho, arrasta-se pelas Avenidas Novas como uma multidão de velhinhos cada dia mais escassos, fora os que ficam em casa porque o frio os entristece e leva para onde não se tem nome.

Num instante deixei de me preocupar com o meu primeiro beijo e passei a pensar a cada um se seria o último, num instante passei a pensar no primeiro e no segundo e no terceiro beijos do meu filho. Num instante fiquei mãe, a mãe que foi e a que nunca será, sempre tudo para sempre.

Num instante o curso e os trabalhos na faculdade, os primeiros ordenados, a independência - achamos nós, a independência... - num instante também o outro curso e a fotografia e o mestrado em Portalegre e o E-Qual e o curso de Gestual e dar aulas e aprender Braille e mais fotografias e 25 GB de backups que fiz hoje de manhã para um disco externo (o meu primeiro disco tinha 20 Mb e duas partições). Num instante algumas viagens em que acho que o avião andou sempre no ar, Funchal, Porto Santo, São Miguel, Santa Maria, Amsterdão, Madrid, Paris, Frankfurt sempre em passagem, o Macau onde nunca fui, o Macau que sempre vi em espelho.

As músicas todas num instante, os presentes de anos, os beijos de anos, os amigos que ontem me congratularam e se congratularam comigo, os amigos velhíssimos de 30 anos e os outros, a família de toda a vida, as memórias fotográficas, as fotografias que nunca tirei, as que rasguei, a que conservo, as que desejo, as que lamento. Todos, todos: Francisco, Luísa, Inês, João, Helena, Elsa, Susana, Rui, Teresa, Carla, Carlos, Nuno, Pedro, Ana, Ricardo, Manuel, Mãe, Pai, Manos, Ana e Tiago, Sara e António, os pequeninos, sempre os pequeninos.

Um instante e Citizen Mary, blogs antes e depois e durante mas sempre Citizen Mary, a imagem da Mafalda e agora a Mary, as frases, as brincadeiras, as fases dos concursos, as fases da interacção, os comentários, agora um presente de anos, uma matrícula, Citizen Mary 66 05. Gostei.

Um matrícula quer dizer uma identidade. Com data. Com estrelas. O que serei, com 43 anos? Os livros em torno lembram-me a tese que finjo escrever, outro livro, o livro que li hoje sobre um pai com dois filhos deficientes e um humor que identifica como negro e que me parece inteligente. Um livro num saco da FNAC pela mão de amigos. Um outro livro comprado por mim, Potência de Existir, que leio aconselhada, que leio com admiração. A Mitologia que adoro e que vou ler um bocadinho todas as noites porque não é esmagadora nem europocêntrica, um outro livro muito bem concebido, muito bonito, escolhido com amizade. Gosto de livros.

Num instante e terei lido este e terei talvez 64 anos, talvez seja avó, talvez estude ainda, talvez mais pessoas da lista anterior ou eu mesma no frio e já sem estudar, a conversar no frio com os amigos que lá esperam, Nós que aqui estamos, penso no filme, penso em Évora, penso nos meus projectos e no tempo que não tenho para os fazer, penso que não mudarei o mundo como gostaria nem lhe conseguirei fugir por muito que pedale no meu triciclo há 40 anos, com três anos, a Citizen Mary que pedalava e trepava às árvores, com livros na sacola, a Mary que se espantava com o mundo, que estranhava os outros que lhe pareciam todos Aliens deformados e gigantes, o mundo agitava-se e eu não sabia, agora talvez mais parado ou fui eu que cresci e ninguém me informou.

Tenho 43 anos, um filho, uma família de parentes e amigos, uma colecção de ausências, uma colecção de desejos. Um blog para preencher. Um doutoramento para fazer. Um livro para ler. Começo: "Préface".

2 comentários:

  1. Vale a pena dispender mais do que um instante a ler. Um post pela mão de uma poetisa. Algo que toca pela beleza e simplicidade das palavras e construção das frases.

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  2. Pyny, Pyny, é um post cansadito, mas sou eu. Bons olhos que o leram.

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