domingo, 30 de dezembro de 2007

Imaginar



"Imaginar, primeiro, é ver.
Imaginar é conhecer, portanto agir."

Alexandre O'Neill


Podem ser necessários dois poetas para nos convencer de um futuro. Imagino assim um pranto novo de dias correntes, mudanças de esgar na corda dos relógios suicidas que nos gerem, fugas sem nexo absolutamente nenhum e desesperanças de nos adiarmos. Ver para além de nós e imaginar na realidade a teia que as nossas mãos trabalham contrariadas. Li hoje que um em cada cinco portugueses vive no limiar da pobreza. Num postal. Na fotografia, alguém que designaremos por pobre encostado a uma parede a descansar do cansaço de aturar raciocínios alheios. Calendas da felicidade editadas minuciosamente e distribuídas com o mais alietório dos estados de espírito.

Agir em conformidade, claro, as datas são relevantes e há as resoluções de ano novo, aquele que chega, aquele que apaga, aquele que permite redimir consciências e revolver vidas como se uns dias contados chegassem para reencarnarmos as vontades que nos faltam em coragem.


Imaginar? Soa-me a canção de idealista mártir. Um em cada cinco. No limiar de quê? Recomeçar? Contemos de novo. Pode ser que dia 1 seja de continuidade, por uma vez que vença a persistência. Leio surrealistas, já não vale a pena ler mais nada. Imaginemos um ano que comece neste minuto. Pode ser que se não parta tanto a vida em contagens inúteis e se comece a construir. O infinito que queremos amar discretamente.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Pessoas

Árvore de Natal feita com chapéus dos heterónimos de Fernando Pessoa.
O postal de Natal mais criativo que me chegou à caixa de correio...

Estrelas: Filipe Abranches e a Casa-Museu Fernando Pessoa.

Boas Festas para todos. Com muita paz.

domingo, 23 de dezembro de 2007

Christmas blues

Bolacha de natal em quadro de Munch O Grito
Como os tempos que culturalmente se promoveram a tempos de espera, por muito azul que surja o céu, não se dorme, aguarda-se. Os gritos ecoam dentro de nós, porque nos forçaremos a fazer pontos de situação em dias determinados e não nos dias em que os devíamos fazer? Porque gritaremos sem querer e sem jeito e não suportaremos os gritos alheios - quem sabe bem mais fortes? Porque nos sentiremos bonecos numa dimensão de terror, obrigados a sorrir, obrigados a ser bons, obrigados a corresponder, miúdos de novo, os presentes com fitas sob uma árvore qualquer que almejamos e nós imóveis para não estragar nada nem mesmo nos despentearmos para a foto de família. Dias em que não queremos ser nós a estragar nada. Por isso gritamos tão baixinho e tão salgado que só somos ouvidos por quem também gostaria de ser e de dar, naturalmente, e diariamente, a felicidade que nos prometem por dois dias.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Filmes - desafio

Por inspiração e convite do Miguel, devo manifestar a minha preferência em relação a cinco filmes. Tarefa difícil, sendo o cinema a terceira arte para mim (as duas primeiras são a da escrita e a da composição). Nos últimos tempos tenho precisado muito, mas mesmo muito, dos meus amigos em volta, e aprendido a lidar com sentimentos que me eram estranhos ou simplesmente, teóricos... Pensei, ao receber esta proposta, em filmes que me têm ajudado a manter a alma aberta e o olhar no horizonte. Alguns revi muito recentemente. Desculpem, pois, o cunho pessoal e a variação sobre estes mesmos temas.

As escolhas da Citizen são:

- Um filme sobre desafios e conquistas: Chariots of Fire



- Um filme sobre amizade e poesia: Il Postino



- Um filme sobre a época presente: Nightmare Before Christmas



- Um filme sobre o que não controlamos: Amores Perros



- Um filme sobre amor e honra: Cyrano de Bergerac


segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Rudolfos

imagem de Rudolfo, a rena de nariz vermelho
O nariz vermelho pode ser do frio. Para indicar caminhos não me parece, que não andamos muito orientados. O imaginário é doce e levemente preverso como tudo o que não é genuíno. Sumariamente, carregamos com o trenó, levamos os privilégios de outrém, alombamos com a publicidade à Coca Cola ainda sem versão light e ficamos mais um ano sem emprego. Não dá muita vontade de rir.

Quando eu tinha a idade do meu filho, havia menos Rudolfos. Havia menos destaques. Os Natais eram reuniões de família, com todo o respeito pelas ideologias religiosas ou não de cada um. Os presentes não eram fundamentais, os presépios e as árvores de Natal eram pretextos para muitas pessoas que se amavam construirem algo em conjunto. E bebia-se chocolate quente, com mais amor que açúcar. Partilhava-se.

Olho em volta e vejo Rudolfos a mais, o que me irrita. Criaturas que se querem destacar, narizes levantados, voluntariados de tempo exacto e coincidente com a câmara ligada. O beijo na criança. A desconstrução do valor de dar e de construir memórias.

Ser solidário é estrutural. Não tem época. Fazer voluntariado não é ser modelo para as câmaras. Apaguem os narizes. Comecem por casa. Façam chocolate quente e bolachas em conjunto. Convidem um amigo que esteja só.

Pode-se amar todo o ano. E respeitar tradições inofensivas e memórias doces sem entrar em agressividades comerciais. Serenamente. Sem narizes vermelhos. Sem heroísmos. Ficando ou não na história, mas bem no coração de todos os que queremos abraçar e não cabem num trenó.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Bem ou mal tratados?

Imagem do tratado de Tordesilhas.

Tem variado... Século XXI, Tratado de Lisboa? Hum. Não sou muito mulher de referendos, pelo contrário, acho que quando se vota se deve transmitir confiança e assumir as asneiras ou feitos de quem se escolhe. Mas esta do Tratado... Todos sabemos que o almoço é oferecido por Cavaco Silva no Museu dos Coches. Lindo. Mas para celebrar a assinatura de quê? É público, claro e consensual o seu conteúdo? Corresponde aos votos confiados nos governantes por cada um de nós?

Não falo muito de política por estas bandas, mas quando me chegam aos ouvidos conversas que comparam a União Europeia com os Estados Unidos nomeadamente na minha área de trabalho e os europeus suspiram de alívio por não terem que cumprir normas de acessibilidade para cidadãos portadores de deficiência como padrão de qualidade no trabalho e gestão de qualquer empresa...

Julgo que temos o direito de reflectir sobre o que irá mudar. E propiciar as mudanças em falta. É que este terreno, piso-o há muito tempo. E anda esquecido demais, consciências natalícias apaziguadas com publicações, entrevistas e publicidade discutível. Na prática, somos todos diferentes. Como seremos tratados a partir de agora?

sábado, 8 de dezembro de 2007

Hei!


Obrigado, João...

Rolling down

Agnosia: desconhecimento, dor, perda, recusa, lágrima.

sábado, 1 de dezembro de 2007

Uma coisa em forma de assim

Quando o corpo não obedece e nos entregamos para precocemente nos dissecarem à procura de um mal que pode até ser de alma, quando nos cortam e retalham e ferem e perdemos a identidade de um espaço próprio chamado corpo (nosso?) que usamos para andar por aqui quando a febre não persiste e recordamos os 200 anos das invasões francesas com bandos armados de médicos a retirarem recordações da nossa passagem de três semanas por um hospital.

Quando depois de tudo fica um diagnóstico ainda incerto e o medo persistente, a noção de fragilidade, os sentimentos de vidro - todos somos heróis quando não há outro caminho, certo? - quando pensamos no que sentimos e no que ouvimos, na nossa impotência, na nossa vontade de voltar a um qualquer útero seguro em que ninguém nos toque e nos sintamos amados e não sózinhos, nunca mais sózinhos.

Quando as cicatrizes do corpo começam a fechar - o susto foi grande, ainda tenho espada suspensa - ficam as da alma, muito mais dolorosas

mielograma
hemogramas diários
TAC
pesquisas de suco gástrico
endoscopia transensofágica
biopsia óssea
biopsia linfática cervical

gritos de noite
falta de abraços
medo
solidão
pessoas a morrer ao lado
baratas (o toque de Kafka)
ler muito para sair de mim
ouvir música até à alienação ou até ao exame seguinte

Já estou em casa, aguardo diagnóstico. Fêmea caucasiana de 41 anos (e 44 quilos) aguarda diagnóstico. Podia ser um anúncio inconsequente.

Hoje apeteceu-me escrever.

Diagnóstico - so far - é o de Alexandre O'Neill

Uma coisa em forma de assim

afinal

também pelas suas palavras

Cada pássaro é da cor do seu grito.