Quando o corpo não obedece e nos entregamos para precocemente nos dissecarem à procura de um mal que pode até ser de alma, quando nos cortam e retalham e ferem e perdemos a identidade de um espaço próprio chamado corpo (nosso?) que usamos para andar por aqui quando a febre não persiste e recordamos os 200 anos das invasões francesas com bandos armados de médicos a retirarem recordações da nossa passagem de três semanas por um hospital.
Quando depois de tudo fica um diagnóstico ainda incerto e o medo persistente, a noção de fragilidade, os sentimentos de vidro - todos somos heróis quando não há outro caminho, certo? - quando pensamos no que sentimos e no que ouvimos, na nossa impotência, na nossa vontade de voltar a um qualquer útero seguro em que ninguém nos toque e nos sintamos amados e não sózinhos, nunca mais sózinhos.
Quando as cicatrizes do corpo começam a fechar - o susto foi grande, ainda tenho espada suspensa - ficam as da alma, muito mais dolorosas
mielograma
hemogramas diários
TAC
pesquisas de suco gástrico
endoscopia transensofágica
biopsia óssea
biopsia linfática cervical
gritos de noite
falta de abraços
medo
solidão
pessoas a morrer ao lado
baratas (o toque de Kafka)
ler muito para sair de mim
ouvir música até à alienação ou até ao exame seguinte
Já estou em casa, aguardo diagnóstico. Fêmea caucasiana de 41 anos (e 44 quilos) aguarda diagnóstico. Podia ser um anúncio inconsequente.
Hoje apeteceu-me escrever.
Diagnóstico - so far - é o de Alexandre O'Neill
Uma coisa em forma de assim
afinal
também pelas suas palavras
Cada pássaro é da cor do seu grito.
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