sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Calendas de Março

"- O teu relógio indica o ano em que estamos? Perguntou o Chapeleiro.
- Claro que não. Respondeu Alice muito depressa.
- Mas isso é porque um ano inteiro dura muito tempo. Justificou Alice.
- O que é exactamente o caso do meu! Disse o Chapeleiro."

Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas


"Happy he who has passed his whole life mid his own fields, he of whose birth and old age the same house is witness.... For him the recurring seasons, not the consuls, mark the year; he knows autumn by his fruits and spring by her flowers."

Cláudio



É hoje o último dia das calendas de Março, o dia antes de Março começar. O dia que pensamos ser o extra de um ano bissexto - na realidade 24 ou 25 intercalados, como substituição de um mês adicional - a favorecer a dignidade de Augusto permitindo-lhe que o mês com o seu nome fosse tão comprido como o de Júlio. Assim, todos satisfeitos, os 366 (dois seis, bissexto...) dias cumpridos, as luas certas, a Lebre de Março a caminho. Como todos os dias levemente fora da triste rotina entorpecedora, este é mais um pretexto para tradições criadas como pretexto de fuga e criatividade, as pessoas que se festejam nesta data são ainda mais especiais por terem um dia para si criado por um imperador e afinal tudo não passa de uma brincadeira nossa para lidar com o tempo, melhor optarmos por umas leituras interessantes sobre o tema e não pensarmos muito no que não sabemos bem se é uma dimensão mensurável da realidade ou apenas um desenho artificial do nosso percurso.


Sobre o tempo: *
Sobre o calendário romano: **
Sobre anos bissextos:
***, **** e *****
Sobre desafios dignos de Lebres de Março
****** e *******

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Margarida


A minha mãe tem grandes olhos castanhos e pestanas longas e doces, sendo que o cabelo foi castanho, arruivado, cor de raposa matreira de Aquilino - com profusão de caracóis como sorrisos - e hoje está da cor do chão do inverno ou da espuma das ondas. O seu coração é grande e forte, nele cabendo o meu pai, nós cinco, onze netos e um bisneto em forma de desejo que chegará ao nosso colo lá para Setembro.

A minha mãe tem um sorriso à chegada e uma meiguice contagiosa. Nasceu em 1924 mas os dias de hoje também são seus. Como já anda no caminho há muito tempo e os seus olhos viram muitas coisas e choraram bastante, talvez por isso agora tenham entendido descansar. Também porque correu muito e trabalhou sempre muito as suas pernas estão cansadas e os percursos são mais lentos e acho que dolorosos. Apenas acho porque opta por ser feliz todos os dias, relativizando estes factores para dar toda a importância às coisas boas que tem (que cultiva).

Na verdade acabo de chegar de sua casa, onde festejámos em família o seu aniversário. E o seu sorriso continua luminoso, os olhos brilhantes, a energia redobrada. Gira entre todos, a todos dá atenção - sente-se, Mãe - beija o meu Pai quando passa perto da sua cadeira, dá aos netos o melhor colo do mundo - sente-se, Mãe -, acompanha-nos à porta - descanse, Mãe - e dá-nos as boas noites como se, indo para fora de sua casa - os filhos criados, os netos crescidos, o bisneto ainda portátil - fossemos para os nossos novos quartos na casa grande que é o mundo, e ela continuasse sempre, mas sempre, a tomar conta de nós.

Por isso tenho a certeza que daqui a minutos me virá dizer para apagar a luz e descansar, distribuirá copos de leite e bolachas, lembrará a todos as prioridades do dia seguinte, ajudando a arrumar pastas de escola e de trabalho, talvez deixar uma flor dentro de um livro ou um bilhete escrito com carinho impresso na letra alegre, grande e redonda que usava.

Tenho a certeza que virá. Como dormiria eu hoje bem, Mãe, no dia do seu aniversário, sem me aconchegar a roupa e me cantar baixinho?

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Caminhos sem migalhas


Esquecemo-nos por aí. Então perdemos o rasto de nós. Pensamos em coisas grandes, marcamos fronteiras, criamos e desfazemos países, amizades, equipas, identidades, partimo-nos em vez de nos partilharmos. Não me parece que os homens sobrevivam sós - passe o tom bíblico da reflexão.

Cultivar (os nossos jardins, as nossas memórias). Valorizar (o que é tão pequeno que importa mesmo cuidar com muito carinho porque é mais sensível e mais frágil e se nos distraímos se estraga e destrói facilmente, não por ser menor, mas por ser um maior que só é forte quando o pensamos).

Transportamos em nós as coisas importantes. Como as histórias que nos contaram em pequenos, a música dos chuviscos nas janelas dos quartos, os bonecos abraçados na cumplicidade tímida do escuro, o cheiro dos livros de histórias cheios de mãos de crianças a dobrar as folhas, o frio das manhãs de escola, a paz dos sonos infantis em que se sorri.

Será suficiente? Continuamos a fazer guerras e a ser ambiciosos demais, preocupamo-nos com a Cultura como se fosse uma senhora muito importante e descuramos a cultura menos óbvia e menos auto-sustentada - como dizem as pessoas crescidas (a cultura não precisa de sustento, existe, façam as pessoas o que fizerem para a estragar). Perdemos os valores como peças de lego ou cromos, não arrepiando caminho para os recuperar, perdemos até o tempo, que obrigamos a caminhar depressa demais, o tempo, a nossa desculpa para não darmos o nosso melhor, o tempo, a nossa fuga, o nosso alibi, para, no limite, não sermos felizes.

Pequenas coisas a não perder... Estar atento. Aprender com humildade. Agir com convicção. Amar completos. Nunca perder o que (e quem) nos construíu até agora mesmo (neste minuto). Respeitar (muito, todos). Cultivar a paz. Trabalhar. Construir e construir de novo. Recomeçar as vezes que forem precisas, aprendizes impacientes em carreiras de Job, o caminho é longo. Acordar todos os dias no ponto de partida. E nunca nos sentirmos derrotados.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Hoje
























Sete em cores, de repente
O arco-íris se desata
Na água límpida e contente
Do ribeirinho da mata

O sol, ao véu transparente
Da chuva de ouro e de prata
Resplandece resplendente
No céu, no chão, na cascata

E abre-se a porta da arca
Lentamente surgem francas
A alegria e as barbas brancas
Do prudente patriarca

Vendo ao longe aquela serra
E as planícies tão verdinhas
Diz Noé: que boa terra
Pra plantar as minhas vinhas

Ora vai, na porta aberta
De repente, vacilante
Surge lenta, longa e incerta
Uma tromba de elefante

E de dentro de um buraco
De uma janela aparece
Uma cara de macaco
Que espia e desaparece

"Os bosques são todos meus!"
Ruge soberbo o leão
"Também sou filho de Deus!"
Um protesta, e o tigre - "Não"

A arca desconjuntada
Parece que vai ruir
Entre os pulos da bicharada
Toda querendo sair

Afinal com muito custo
Indo em fila, aos casais
Uns com raiva, outros com susto
Vão saindo os animais

Os maiores vêm à frente
Trazendo a cabeça erguida
E os fracos, humildemente
Vêm atrás, como na vida

Longe o arco-íris se esvai
E desde que houve essa história
Quando o véu da noite cai
Erguem-se os astros em glória

Enchem o céu de seus caprichos
Em meio à noite calada
Ouve-se a fala dos bichos
Na terra repovoada

Vinicius de Moraes, 1980.


***

Também hoje choveu durante o dia, mas à noite, a fala dos bichos foi particularmente extraordinária. Quem passou por zonas inundadas e viu o seu dia de trabalho perturbado por situações menos comuns terá estranhado o empenho discursivo de autarcas e membros do governo, a devoção de jornalistas, a empatia de mentes menos ocupadas que se entretiveram a fotografar e filmar carros alagados em vez de - eventualmente - ajudar às situações complicadas que se geraram. Tempo, pelos vistos, havia, pelo menos para acusar histericamente o vizinho. Seja cada um o seu Noé, que isto de ter cargos públicos dá muito trabalho e a imagem não permite que se molhem os pés. E quem queira mais solidariedade pode bem tirar o cavalinho da chuva...

domingo, 17 de fevereiro de 2008

1907


Geraldine Farrar, 1882-1967, no papel de "Madame Butterfly".

Library of Congress, Prints and Photographs Division, ID cph.3b10328.

Chove...


Aguardemos...

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Semanas sérias

Há semanas que começam como pessoas crescidas a acordar: com horas certas, o cabelo penteado, com uma eventual gravata, sem sorrisos - mesmo sérias - e nos preocupam com tantos formalismos e imposições. Há semanas doces, há semanas cultas, há semanas mais ou menos. Há semanas em que nos sentimos fracos, outras em que mudamos o mundo de lugar.

Não sei como vai ser a minha. Penso em demasiadas coisas de uma só vez. Na semana complicada (há semanas tristemente interessadas em Pessimismo) que passou. Na semana que se aproxima em saltos de coelho branco atrasado e que travo a perguntar pelo sorriso, como se um passe para entrar na minha vida.

Tenho que me deitar às 10:30: organizo o impossível em meu redor. Pior seria se tentasse organizar o pensamento. Há 41 anos que evito semelhante actividade e não a recomendo a ninguém. Vejo materiais de apoio que devo levar amanhã para Lisboa, também ficheiros que devo gravar, olho para as janelas abertas durante o dia no meu écran, releio conversas, centro-me na agenda e a semana salta como se se materializasse por antecipação, assombra-me, porque teremos a mania de viver no futuro como se um desejo nos deslumbrasse permanentemente e impedisse de ser felizes hoje?

Possivelmente porque temos consciência que queremos sorrir mais no dia seguinte, lutar bastante mais que no dia anterior, aprender infinitos, ler tudo o que nos aparecer, viver tudo, entrar em todas as brigas, dar todos os beijos, ser íntegros. Melhor levar o mundo no peito para a terra dos sonhos porque precisamos de ser muito egoístas para ser felizes hoje com tudo o que há a fazer para sorrir.


É que, mesmo nas semanas sérias, sobretudo nas semanas sérias, não faz sentido sorrir sózinho.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

A seguir






"Ou o poço era muito fundo, ou ela caía muito devagarinho, mas o certo é que teve bastante tempo para olhar à sua volta enquanto descia e para se pôr a pensar no que iria acontecer a seguir."

Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

Despreocupada

No limite, importarmo-nos com o que é importante. Não sei se estátuas choram apenas nos contos de Wilde. Há factores da nossa vida e do nosso mundo que não controlamos. Dias em que ocorrem coisas a mais, dias que nos deixam a pensar que a relevância do que nos cerca passa pela sensibilidade individual e também pela consciência de grupo mais ou menos apurada que cada um de nós tenha desenvolvido. Gosto desta balada dos Dire Straits, que não me parece tão óbvia como isso. Devemos envolver-nos e preocupar-nos com o que podemos mudar. Ou seja, reservar as nossas forças para as coisas realmente importantes. Na nossa atitude pessoal e social. Não perder (nem usar mal) balas. Não abusarmos de retóricas mas também não ser óbvios. Inevitável, essa distinção entre nada e coisa nenhuma de que nos fala o Poeta. E saber esperar. Precisamente por haver tempo e uma oportunidade para todas as lutas.