terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Hoje
























Sete em cores, de repente
O arco-íris se desata
Na água límpida e contente
Do ribeirinho da mata

O sol, ao véu transparente
Da chuva de ouro e de prata
Resplandece resplendente
No céu, no chão, na cascata

E abre-se a porta da arca
Lentamente surgem francas
A alegria e as barbas brancas
Do prudente patriarca

Vendo ao longe aquela serra
E as planícies tão verdinhas
Diz Noé: que boa terra
Pra plantar as minhas vinhas

Ora vai, na porta aberta
De repente, vacilante
Surge lenta, longa e incerta
Uma tromba de elefante

E de dentro de um buraco
De uma janela aparece
Uma cara de macaco
Que espia e desaparece

"Os bosques são todos meus!"
Ruge soberbo o leão
"Também sou filho de Deus!"
Um protesta, e o tigre - "Não"

A arca desconjuntada
Parece que vai ruir
Entre os pulos da bicharada
Toda querendo sair

Afinal com muito custo
Indo em fila, aos casais
Uns com raiva, outros com susto
Vão saindo os animais

Os maiores vêm à frente
Trazendo a cabeça erguida
E os fracos, humildemente
Vêm atrás, como na vida

Longe o arco-íris se esvai
E desde que houve essa história
Quando o véu da noite cai
Erguem-se os astros em glória

Enchem o céu de seus caprichos
Em meio à noite calada
Ouve-se a fala dos bichos
Na terra repovoada

Vinicius de Moraes, 1980.


***

Também hoje choveu durante o dia, mas à noite, a fala dos bichos foi particularmente extraordinária. Quem passou por zonas inundadas e viu o seu dia de trabalho perturbado por situações menos comuns terá estranhado o empenho discursivo de autarcas e membros do governo, a devoção de jornalistas, a empatia de mentes menos ocupadas que se entretiveram a fotografar e filmar carros alagados em vez de - eventualmente - ajudar às situações complicadas que se geraram. Tempo, pelos vistos, havia, pelo menos para acusar histericamente o vizinho. Seja cada um o seu Noé, que isto de ter cargos públicos dá muito trabalho e a imagem não permite que se molhem os pés. E quem queira mais solidariedade pode bem tirar o cavalinho da chuva...

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