sexta-feira, 30 de junho de 2006

Port-alegre

Do que mais gosto: aulas, amigos, manhãs, noites a ler, falar sobre tudo, brincar. Achar os livros escolhidos para mim, na mochila, em noites de calor, ler até de manhã. Deixar que as revoadas de pássaros e o sol me sequem o cabelo, pessoas tímidas a aparecer na transparência da manhã, o varredor de ruas que me dá bom dia e um sorriso porque estou ali sempre sózinha com o meu café e o meu cigarro, um livro, o portátil, o olhar distraído. Bom dia.

Entrar na Biblioteca quando a estão a abrir, os livros alinhados aguardando mãos, as mesas acabadas de limpar, o céu que se vê da mesa perto da janela onde me sento desde Outubro a fingir que estudo. A fingir que estudo...

Abro os livros a custo, meus amigos de infância tolerantes não se aborrecem comigo certamente. Conhecem-me a alma, tarda-me a vontade, é preciso procurar o pensamento onde ficou perdido. Página 132, Carta a Joaquim José da Costa de Macedo, Secretário da Academia das Ciências, 1 de Outubro de 1850. Não.

Saio e fumo mais um cigarro. Está uma criança a ver televisão na entrada da Biblioteca, ouço os sons de desenhos animados e os risos pequeninos. Sobre os azulejos frente ao Salão Nobre está a ser colado um trabalho gráfico ainda inacabado. Gosto de não terminar/continuar/percorrer. Lembro-me de Walter Benjamin e das Arcadas de Paris. A cabeça volta a pousar no dever. Os pássaros da manhã já devem ter acabado as migalhas da esplanada, as andorinhas fogem de si mesmas como todas as andorinhas. O céu continua azul.

(a criança deve ter três anos, mexe nos livros e nas cassetes junto a mim, olha para as letras, coça a cabeça, porque será que os adultos não sabem escrever com bonecos). Pronto, voltemos ao Castilho... A de árvore, L de leitura. "Queres ajuda?" Os olhos sorriem envergonhados, descem às sandálias, pés pequeninos, como vais atravessar o mundo, rapazinho? Quem te dará a mão? As mãos procuram-se, sabes o caminho?

Tarda começar o dia. "Ao Redactor da Revolução de Setembro, 13 de Abril de 1853". Não tenho relógio, a criança saíu para brincar, Castilho ficou nas suas cartas, eu, à minha procura, o céu persiste no azul.

quarta-feira, 28 de junho de 2006

Dias assim...







Na madrugada, levantam-se as luzes ensonadas das casas. Tenho verde e tenho calma em redor. Acordo em paz, gosto de ver acordar o mundo.


A caminho de Lisboa. Café tomado. Vícios de acordar. Aqueduto ao fundo, com sorte não apanharei trânsito, com sorte ouvirei o CD até ao fim, encontrarei um dia aberto à minha espera. Talvez passe nos meus pais.

No centro, chegam materiais - finalmente - para crianças com deficiência da visão terem acesso às disciplinas de EVT, para brincarem, para pintarem as paredes da casa e as t-shirts. Gostei dos marcadores em que cada cor corresponde a um cheiro de fruta. Espero que os meus amiguinhos também gostem. Vou pedir uns desenhos para mim. Vou pedir-lhes para fazer um também. Tenho alguns casos complicados em que pensar. Tratarei deles no fim-de-semana.


Tarde apressada, filho de férias, regresso mais acompanhado ou mais isolado, hoje em boa companhia. No caminho para Carnaxide, já conduzo só, restabeleço o equilíbrio e a paz no silêncio. Ser uma pessoa no meio de muitas, dentro de um carro entre muitos, que regressam como aves a um qualquer ninho. De preferência com estrada aberta para descomprimir um bocado, ainda telefonemas pendurados, algum pensamento por limar, alguma preocupação com o dia que ainda vai a meio.


O meu canto de trabalho. O individual, que o de grupo é no escritório, reuniões de grupos de trabalho, telefones, este é o meu canto, do meu quarto, com uma janela virada a eucaliptos, pardais e moinhos de água. Ouço música, tento travar as conversas de msn para produzir. Gosto demais de falar com os meus amigos. Decisões, decisões, acabo por dar uma volta pelos blogs, ver os mails pessoais, rever os de trabalho. Passear em alguns links adorados, consultar outros, procurar novos. A escrita tarda. Castilho aguentará mais uns dias sem se zangar comigo...


Amanhã faço estrada. Gosto de conduzir. Levo companhia, um professor e um colega, quando vou só aproveito para pensar em tudo e nada, parar para tomar outro café. A perspectiva, esta semana, é de conversa e boa disposição.


Destino de final de semana... Dias feitos assim, semanas que correm mais que nós, fim de um ano de mudanças, renovado. Esperança no céu azul carregado que, pode ser, me vá sorrindo e transmitindo a sua intensidade, calor e luz.

terça-feira, 27 de junho de 2006

Imaginários de ternura


Tim Burton é um génio, com estranhas características - como Jack. Trabalhador incansável, não encosta ao sucesso, este filme é a grande prova. fazer animação em Stop Motion é muitíssimo moroso, sobretudo se se pretendem resultados de qualidade. Ontem revi - a vontade de trabalhar era escassa - Nightmare Before Christmas. Sou uma fã deste grande senhor, que sabe escolher a dedo os seus colaboradores, que sabe trabalhar com afinco e dedicação e esforço e qualidade. Que usa a inspiração, não para fazer menos, mas para improvisar com qualidade e sabedoria, variando ao infinito os seus objectos de interesse, conhecedor social profundo, proporcionando em cada um dos seus trabalhos, tantas leituras, que é inevitável constituir um enriquecimento do nosso imaginário colectivo actual.

Produções de Burton que adoro:

Corpse Bride

Charlie and the Chocolate Factory

Big Fish

James and the Giant Peach

Edward Scissorhands

Outro factor fabuloso, ainda ligado à qualidade, é a sua escolha cuidada da música. Muito ligado à composição de Danny Elfman, que participa também como vocalista - com a sua belíssima voz, vinda do mundo dos sonhos - dos solos de Jack no Nightmare Before Christmas, que me embalaram ontem ao serão:

"Oh, somewhere deep inside of these bones
An emptiness began to grow
There's something out there, far from my home
A longing that I've never known
Oh, there's an empty place in my bones
That calls out for something unknown
The fame and praise come year after year
Does nothing for these empty tears"

Ainda a Tim Burton o mérito de desenhar e escrever com irreverência e qualidade...


segunda-feira, 26 de junho de 2006

Patriotismo

Nos últimos tempos temos vivido uma certa paranóia em torno do Campeonato Mundial de Futebol. Páram os trabalhos, as aulas, a Assembleia da República interrompe plenários e trabalhos de comissões, é fantástico como está em alta ser bruto e dar pontapés, sem ofensa para os ditos trabalhadores da bola, que certamente se esforçam e vivem do seu emprego como a maior parte de nós. O problema é que devo ser mesmo muito distraída considerando que ainda hoje vi dezenas de bandeiras penduradas em janelas e carros e pessoas e entradas de edifícios públicos. Deviam estar certamente lá quando decorreram outras manifestações públicas de empenho nacional, altura de revermos todos a letra do Alfredo Keil e vestirmos verde, vermelho e respectiva esfera (armilar). Falo, por exemplo, e não sou suspeita, dos Paraolímpicos. Ainda bem que se vai mantendo o humor, senão podíamos correr o risco de pensar que estamos certamente com uma incorrecção de prioridades...

domingo, 25 de junho de 2006

Alex Bazarin, pintor surrealista

em

Futebol de Salão?


Parabéns à equipa portuguesa pela vitória são devidos. Mas vergonhoso o comportamento dos (escolha 1 para 11, 2 para 10, 3 para 9...) jogadores em (escolha 1 para macas, 2 para banco, 3 para expulsos, 4 para lesionados...). E do (árbitro?)... Talvez para o próximo campeonato, eventualmente já para o jogo com a Inglaterra, Scolari deva chamar como suplentes alguns elementos de grupos de forcados portugueses. Pelo menos assumem a prática de um desporto violento...

Lembro o primeiro post que escrevi quando começou o mundial, lembro Quino: http://citizenmary.blogspot.com/2006/06/futebol.html

Não aprecio comportamentos desleais ou vingativos. Em suma, não sei se estou triste ou alegre, num fim de jogo em que ganhámos. Valores, perderam-se? As bandeiras são para lembrar um combate de boxe em ringue gigante? Ganhem juízo. Todos.

Vol de Nuit


«"Fabien sourit : le ciel était calme comme un aquarium
et toutes les escales, devant eux, leur signalaient:
"Ciel pur, vent nul." Il répondit : "Continuerons."»

Antoine de Saint-Exupéry, Vol de Nuit

quinta-feira, 22 de junho de 2006

Madrugada

Não há silêncio na madrugada. À primeira ponta de sol, os pássaros acordam o mundo, os coelhinhos fogem para as tocas, os candeeiros aguardam os cuidados do acendedor de dias.

Os velhos moínhos de água enferrujados dançam com o vento, amuados por não dormirem mais, incomodados com as casas que vão abrindo os olhos. O vento brinca mais ainda, cantando, forte, despertador de almas, provocador.

As manhãs são sempre sózinhas, boas para caminhar, o mundo está ainda inconsciente, os homens dormem, a natureza sobrepõe-se enquanto pode.

"Sozinha, a Manhã levaria horas para iluminar o sol, mas quase sempre o Vento, soprador de fama, vem ajudá-la. Por que o bobo faz questão de dizer que estava passando ali por acaso quando todos sabem não existir tal casualidade e sim propósito deliberado? Quem não se dá conta da secreta paixão do Vento pela Manhã? (...) Quem sabe as gerações futuras lutarão contra o visível e o fácil, exigindo, em passeatas e comícios, o escondido e o difícil."

Jorge Amado, O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, Uma História de Amor.

Atalhos

Segundo o meu pai, uma recta é um círculo de raio infinito. Deve ter razão porque estou desde manhã a tentar escrever e vejo mais infinitos que fins.
"O Gato sorriu apenas quando viu Alice. Parecia bem disposto, mas, mesmo assim, tinha umas grandes unhas e muitos dentes, por isso era melhor tratá-lo com respeito.
- Gatinho - chamou Alice, bastante receosa, pois não estava certa que ele gostasse de ser tratado assim. Mas o Gato sorriu ainda mais. "Até agora não se zangou", pensou Alice. E continuou: - Podes dizer-me, por favor, como hei-de sair daqui?
- Isso depende muito do sítio para onde quiseres ir - respondeu o Gato.
- Não me interessa muito para onde... - disse Alice.
- Nesse caso, podes ir por um lado qualquer - respondeu o Gato.
- Desde que vá ter a qualquer lado - acrescentou Alice.
- Oh, para que isso aconteça, tens que caminhar muito - disse o Gato."

Lewis Carroll






quarta-feira, 21 de junho de 2006

Identidades

Só tratados na grande teia da net são 9.070.000. Considerando 500.000 de utilizadores (leia-se emissores e receptores de comunicação) é obra. Grande parte institucional, parte académica, filosófica, literária. Identidade é um conceito, quem somos nós realemente, num espaço virtual? Continuo a ir por Locke, sendo que a consciência deve acompanhar o pensamento.

Na Internet, todos somos quem quisermos ser, a máscara do monitor é mais de ferro que qualquer outra e permite-o. Trabalho e trabalhei com identidades expostas, estudo identidades deterioradas. Estas também não são simples. Para quem escreve a minha mão esquerda neste momento, quem sou eu para quem me escreve? Estamos num espaço identificado (Freud fala de identificação, não de identidade). Bloggers identificam um território e permitem (ou não, a liberdade, se fosse obrigatória, automutilava-se) o diálogo, pelo menos acolhem, ou não, as mensagens que lhes chegam nem sempre identificadas (há sempre maneira de o fazer, mas dá demasiado trabalho e é pidesco para quem apenas, quer, comunicar).

DNA virtual, Data Mining? O Big Brother era um anjinho perto de determinados recursos de controle de existências. Amigos ou inimigos maiores (ou menores) que o pensamento - mais livres, mais poderosos, invisíveis, nunca incontroláveis. Sociedade esquizofrénica? Prefiro pensar num grande repositório livre de conhecimento e pensamento, que reconciliou os homens com a escrita, pinturas sobre telas virtuais, assinadas por homens, não necessariamente identificados ou autores, sobrevalorizando-se sempre, as ideias.

Nesse sentido, é partilha, nesse sentido entro no jogo. Considerem o princípio da wikipédia... As teias, mais uma vez.

O que esperam os homens num espaço de nova identidade e identificação? O que espera quem escreve e quem lê ? Sinais, sejam de que índole for, de que há homens no mundo, agora possuidores de uma nova tecnologia de poder, como sempre induzidos por ela em graves sintomas de domínio do outro/de si mesmo.

Continuemos a escrever. Só em overload teremos a necessidade de questionar.

terça-feira, 20 de junho de 2006

Job

"For modern man one of the most troubling aspects of eternity lies in getting used to the slippery quality of time. With no clocks and no calendars and lacking even the alternation of day and night, or the phases of the moon, or the pageant of seasons, duration becomes subjective and 'What time is it?' is a matter of opinion, not of fact."

Um dos meus livros preferidos. Obrigado a um amigo por mo ter feito recordar.

segunda-feira, 19 de junho de 2006

O dia seguinte

Já estamos no dia seguinte e nem dei por isso. A trabalhar o tempo passa depressa e entre programação e contactos on-line e telefónicos com amigos e colegas, tudo passa rápido. Cada pessoa que connosco fala traz uma ligação directa a um espaço ou um tempo diferentes. Como num arco-íris, misturam-se as cores e os sons das memórias, as ligações do nosso motor de busca interno são fortes e eficazes.

Cada peça do nosso puzzle tem consigo novas imagens que se multiplicam ao infinito, livros que partilhámos, pensamentos e conversas várias, vivências diversas. Partilhar é um verbo que uso muitas vezes porque faz parte de mim e da parte de mim que faz parte dos outros.

Quando o cansaço nos puxa, o aproximar da hora de levantar a caminho cada vez mais rápido sem que tenhamos passado pelo estádio do sono e da paz, é difícil ser produtivos. Mas podemos sempre ser afectivos, que é uma palavra tanto mais bela.

Todos os dias passo em sítios tão familiares que se tornaram transparentes. Sonho agora prematuramente com a manhã seguinte, com o abrir rasgado das janelas que sempre procurei e que tanto gosto, com o ar fresco da manhã a entrar na casa e na alma, com o caminho de Lisboa, as minhas músicas, a minha voz como de uma estranha, o aqueduto a entrar pelas janelas do carro com um violinista de sinal de trânsito e dois vendedores da cais. Depois os hábitos, o estacionar junto da terra e da relva - odeio parquímetros, é proibido proibir - o dar bom dia, mais que moedas, ao senhor que desespera para que eu deixe o carro direito, sem rodas no passeio, como se eu me preocupasse muito com isso, que me deseja um bom dia (a primeira pessoa que me deseja bom dia fora de casa). O dia corre, à tarde sei que vou entrar noutro momento forte, cheio de crianças a sair quando toca a campaínha das 17:30, tantos, tantos, tantos, beijinhos de alguns, saltos selváticos para o colo de outros, o meu filho, os meus sobrinhos queridos, os amigos deles. Apertos de mão sinceros de professores que gostam de o ser. Levar um violoncelo e um rapaz para o carro que já não tem as rodas no passeio enquanto eles - cada vez mais altos, todos - combinam cinemas e almoços e trabalhos e conversas no msn (deixa, Mãe? claro!).

Em casa, computadores que se misturam com molas de roupa e panelas e o tilintar do micro-ondas e o telefone porque é a minha Mãe e as Mães têm que se beijar todos os dias. O som da água do duche do João, os pés descalços, jantar em pijama ainda com partituras e testes e recados da escola para eu assinar. Ver os mails em conjunto, rir das anedotas que os amigos contam e dos filmes que enviam, contar aventuras do dia, ver uma série (Coupling, Black Adder, Murphy Brown, Yes, Minister) das que se conhecem de cor porque é tão seguro que nos vão fazer sorrir, no mínimo, no final da corrida.

Chegou esta hora e o dia de hoje e o de amanhã misturam-se como sempre, porque estou a acabar trabalhos. Talvez vá fazer mais um café para o pessoal acordar e atinar com a programação. Mais um telefonema, equipas a trabalhar em paralelo noutros lados. O trabalho que se partilha (outra vez a partilha, aqui aprendizagem, camaradagem).

Dois dedos de conversa no msn com mais alguém chegado ao coração e ao sorriso, para além do cansaço, uma volta pelos blogs mais chegados para ver as novidades e pelos meus para escrever alguma coisa, tenho o dia a sair dos dedos, não chegavam quatro teclados para vos tocar.

domingo, 18 de junho de 2006

Pode ser

Desconcentrada, eu, hoje. Na mesa do escritório o cinzeiro pequenino enche e vai sendo despejado. O João dorme e eu devia estar a trabalhar em tantas coisas que não consigo trabalhar em nenhuma e só me apetece o cigarro que já não tenho, o livro que já li. Amanhã vou abrir a janela da cozinha e sentar-me no topo do escadote a tomar café. Pode ser que esteja sol nesta semana que começa.

Woody Allen

"Human Beings are divided into mind and body. The mind embraces all the nobler aspirations, like poetry and philosophy, but the body has all the fun."
Woody Allen

Seja como for, gosto. Nasceu este senhor (Allen Konigsberg) em 1 de Dezembro de 1935, em Brooklyn. Trabalhou em jornalismo desde os 15 anos e a partir dos 30 ligou-se ao mundo do cinema na produção de What's New Pussicat? Desde então, lançou uma linha de humor construído, autobiográfico, reflexivo, inteligente, de leituras diversas. Vida pessoal polémica à parte (devia ser sempre mantida à parte, os media abusam e o público agradece... arranjem vidas próprias) passo a partilhar os seus filmes que mais me marcaram pela boa disposição e simplicidade, pela crítica subtil, pela beleza da fotografia, pela criatividade de argumentos. Pela capacidade de rir de si mesmo, dado que não há defesa mais inteligente que a exposição.


A Maldição do Escorpião de Jade, 2001




Alice, 1990

Dias da Rádio, 1987

A Rosa Púrpura do Cairo, 1985

Manhattan, 1979

ABC do Amor, 1972

sábado, 17 de junho de 2006

Raízes 2

Todos temos e precisamos de raízes. Mesmo das que voam. As minhas estão dispersas cá por dentro, entre sons de vozes de amigos, as mãos do meu pai a segurar os meus passos, os pedais do meu triciclo, o meu irmão Francisco a tocar piano de manhã ( é bom ouvir a Sonata ao Luar em pijama), o escuro e o claro de cada canto da casa dos meus pais, o amanhecer e a noite de cada um dos meus dias. Todos os sons e cheiros da infância se (re)constroem nas nossas memórias e a nossa capacidade de voar pode fazer delas uma identidade, se não estável, bonita.

As raízes não se encontram no espelho, mas de olhos fechados. Pés na terra, cabeça solta, meninos doidos de José Régio, enchendo as lágrimas de todos os dias do vento que bate na cara e nos faz viver. Andar descalços na relva fresca, ler na praia ao fim do dia, trepar à rocha mais alta, abraçar com força os amigos como se os encontros ou as despedidas fossem os primeiros e os últimos. Enviar um anão de barro a dar a volta ao mundo como Amélie, só para dar coragem a alguém para sonhar. Dizer sim a tempo de ser feliz, e também não ter medo de dizer não. Amar muito, tudo, sempre. São as memórias que fazemos todos os dias castelos de cartas sólidos e preciosos.

Para hoje, basta-me sonhar com as raízes que tenho, frágeis, baralhadas, em crescimento, revoltas em si mesmas, sem redoma, à chuva, ao sol, ao luar. Sou eu mesma. Vou fechar-me em mim, à sombra amiga e segura dessa árvore das memórias, e esperar calmamente o amanhã que desconheço.

Raízes

Eugène Atget, Parc de St. Cloud, 1906, George Eastman House collection

Manga d'Alpaca

Nunca tive nenhum contrato com o Estado Português. Horrorizava-me a ideia de ser funcionária pública. Não porque não conheça muitos que são, de facto, bastante competentes. Alguns trabalham com profissionalismo, dedicação, sem horários, com gosto no que fazem. Muitos têm até espírito de missão e levam a sério a ideia de servir a comunidade. Mas a outra parte - infelizmente - castra esses esforços. Por vezes não é o Estado que não dá condições, são os próprios funcionários que baixam o nível de qualidade de tal forma que o espírito de equipa, de iniciativa, de servir (sem servilismos entenda-se) cai por terra aos mais bem intencionados.
Recentemente, reformas ocorreram na nossa Administração Pública. O marasmo sobreveio rapidamente. As injustiças também. Por isso tanto gosto tive em ler um blog de nascimento recente, porque conheço a fonte e a sua honestidade, profissionalismo e gosto pelo trabalho.
Vale a pena visitar: http://mangadalpaca.blogspot.com. Porque o humor (como o amor) em tempo de guerra é necessário e muitas guerras se ganharam já com humor inteligente e construtivo.

quinta-feira, 15 de junho de 2006

2006, ano 0

Parece mesmo que espero que toque a campaínha de casa dos meus pais para que entrem as minhas amigas, trabalhos de grupo para acabar, testes de fim de ano, scones e chocolate quente servidos pela minha mãe, sempre na altura certa. Na verdade, a campaínha toca , mas quem entra são pessoas mais baixas que eu, quando todas eram mais altas, excepto os bebés, persistentemente deitados ou ao colo. De repente, a trovoada deve ter trazido 40 anos porque eu e os meus amigos temos até coisas inimagináveis como filhos, cabelos brancos, cansaços, trsitezas que não passam com um beijinho de mãe. Já não carpimos mágoas de paixões platónicas no ombro uns dos outros, já não vamos tantos, tantos, num carro só, para a praia, depois dos testes, já não trocamos roupas para sair, nem contamos a que soube o primeiro beijo.
De repente - não mais que de repente... - entraram pela campaíanha os amigos do meu filho, os meus sobrinhos, os filhos dos meus amigos, começo a ver umbigos sob t-shirts curtinhas e a ouvir vozes em mudança, os cabelos chegam ao meu, mais dois anos e volto a ver só pessoas mais altas.
A vida é supreendente e deve passar o tempo a pregar-nos partidas porque as horas paradas em que sonhamos ou os segundos de ver uma nuvem passar trazem-nos quatro décadas de uma assentada e - pim - mais uma rodada de pessoas no mundo, tão, tão iguais a nós. Um deles tem até os meus olhos e sonha demais. Talvez acorde amanhã com um ou dois filhos no berço ao lado e me vá ele passear de mão dada porque estarei eu a desaprender o andar, como eles começam.
Não há espaço para todos ao mesmo tempo neste nosso planeta tão pequenino. Mas é bom partilhar a vida, de forma harmoniosa, pés bem fincados no sonho para crescermos devagar, trocando todos de lugar como num jogo de cadeiras interminável. Certamente fazemos todos parte uns dos outro e as memórias colectivas criam-se com laços de afecto. Quando precisar de novo que me dêem a mão, vou aproveitar para pedir um beijo quando cair. Dá sempre jeito para remendar a alma.

A viagem, o quadro e o artista


Reis e senhores das artes não descem ao público com facilidade, nem assumem trabalhos directamente, regra geral. Conheço e aprecio a qualidade de realizador de Peter Greenaway. Com formação em pintura, dedicou-se desde cedo a edição de filmes no Central Office of Information, tendo começado rapidamente a realizar as suas próprias produções. Entre os seus trabalhos contam-se curtas e longas metragens, quadros e obras literárias. Continua a conceber e desenvolver performances diversas, designadamente em museus.
Podemos encontrá-lo neste momento no Rijksmuseum de Amsterdão, num excelente trabalho desenvolvido sobre o fantástico quadro de Rembrandt, Ronda da Noite. Está, pois, na altura de jogarmos no euromilhões e visitarmos outras paragens um pouco mais a norte.
Só estive uma vez no Rijksmuseum. Numa ocasião em o Van Gogh Museum estava em obras e parte da colecção lá estava em exposição. Lembro-me de uma sala em que os auto-retratos de Van Gogh estavam todos colocados à altura dos nossos olhos e era simplesmente impressionante olhar para o olhar límpido e sonhador de Van Gogh, by himself... Fiquei pregada. A Ronda da Noite também é esmagador, de outra forma.
Boas memórias que me levariam lá rapidamente tivesse possibilidades e disponibilidade de tempo. Cativante é a figura do artista que, entre artistas, trabalha para cativar o público para artes. Sem separação de áreas. Quem não ouve ainda o solo do pequeno cozinheiro no The Cook the Thief His Wife & Her Lover (1989) ou quem não viu a maravilha da construção de uma fotografia em traço em The Draughtsman's Contract (1982).
Atípico, por vezes chocante, surpreendente, compadrões altos de qualidade, Peter Greenaway continua a mexer audiências, desta vez ao vivo. Deve valer a pena a aventura...

domingo, 11 de junho de 2006

Futebol

Por vezes esquecem-se as prioridades. O Futebol é um jogo que assume proporções assustadoras de descarga de adrenalina, misturadas com crises de patriotismo exacerbadas, chegando a manifestações de violência. Ainda tive o prazer de ver jogar o Benfica no Estádio da Luz, com o capitão Humberto Coelho, um dos jogadores mais correctos e leais do nosso país. Noutras paragens, Quino teve a coragem de chamar a atenção para o descontrole colectivo e puxar os pés dos seus conterrâneos para a terra, não só para o relvado...

Não esquecendo as lições de Mafalda...


E um bocadinho de História (selecção portuguesa, em 1921), para dignificar o momento...

Esta benfiquista deseja boa sorte à selecção portuguesa nos jogos que hoje se iniciam! Com desportivismo, respeito e correcção, dentro e fora do estádio, o melhor exemplo que poderemos dar ao mundo e a nós próprios.



sexta-feira, 9 de junho de 2006

Nós, os das flores...

Amargo estilo novo

Tudo é fácil quando se está brincando com a flor entre os dedos
quando se olham nos olhos as crianças,
quando se visita no leito o amor convalescente.
É bom ser flor, criança, ou ser doente.
Tudo são terras donde brotam esperanças,
pétalas, tranças,
a porta do hospital aberta à nossa frente.
Desde que nasci que todos me enganam,
em casa, na rua, na escola, no emprego, na igreja, no quartel
com fogos de artifício e fatias de pão besuntadas com mel
E o mais grave é que não me enganam com erros nem com falsidades
mas com profundas, autênticas verdades.
E é tudo tão simples quando se rola a flor entre entre os dedos
Os estadistas não sabem,
mas nós, os das flores, para quem os caminhos do sonho não guardam segredos,
sabemos isso e todas as coisas mais que nos livros não cabem.

António Gedeão

Por céus vermelhos

Joseph William Turner, Slave Ship


Eduard Münch, O Grito

Marc Chagall, La Baie Des Anges

Salas de aulas: memórias individuais e colectivas

Salas de aula são memórias muito vivas e muito físicas. As primeiras idas à escola - na minha geração, pelo menos - eram feitas do sal das lágrimas e do aperto no peito enquanto durava a incerteza de nos virem ou não buscar para o seguro da casa. Dessas primeiras idas sobram-me ainda os cheiros dos uniformes das professoras, das batas das crianças, da sopa - todos os refeitórios cheiram a sopa - que nos obrigavam a comer até não haver fundo no prato com colheres imensas de pessoas crescidas. Ficou também cá por dentro uma certa amargura de incompreensão, estou-me a lembrar do Principezinho, do Mundo dos Meninos Verdes, sempre que os desenhos não eram entendidos à primeira, e alguém que me explique ainda hoje porque é que os céus não podem ser cor-de-papoila como os de Chagall?
A aprendizagem de comportamentos grupais era feita dentro das aulas e nos momentos das refeições. Escolas kafkianas em que crescia a timidez, a introversão, o medo da escrita, o medo da oralidade, o medo das humilhações, porque não, não é nada óbvio que as fichas de matemática são para fazer primeiro, ainda gostava de encontrar a minha professora primária para lhe explicar...
Tantas perguntas, tanta vontade que me ficou de gritar e mudar o mundo. Em casa, o reduto da paz. Quando entrei em definitivo no sistema escolar português, estamos a falar de anos 70, mas antes do 25 de Abril, as pessoas já não eram gigantes, tinha perdido a admiração pelo que me ensinavam, aprendi a questionar. São dessa altura os cheiros das carteiras, os rabiscos feitos com raiva nos tampos, passar papelinhos aos colegas, fugir da escola só pelo gozo da transgressão.
Era o que se designava por boa aluna, consensualmente obtinha os resultados pretendidos e aprendi, assim, que as revoluções da equipa dos pequeninos se fazem eficientemente em silêncio.
Com o 25 de Abril, gerou-se uma grande confusão pela diversidade de testemunhos, pelas várias realidades expostas, pela intrusão da liberdade de expressão no meio escolar ao qual inevitavelmente tinha aderido. De confusa a esclarecida q.b., passei o liceu imune, como observadora. A segunda grande mudança foi, pois, já na faculdade, por ter tido a sorte de reconstruir a figura do professor, a partir de brilhantes testemunhos de sapiência e humildade, a quem continuo grata.
Ao voltar à escola, alguns anos depois, ainda me cheira a sopa nos corredores, ainda se sentem angústias. Ainda ponho em causa. Mas já não entro em pânico por me ter esquecido de um lápis e já não tenho medo de dizer que não concordo com qualquer coisa. Será que cresci?
Ensinam-me nesta escola que as salas de aula são memórias individuais e colectivas. É verdade. Não há duas histórias de vida iguais. Mas a transversalidade da memória que forma o contacto com a educação e instrução nos primeiros anos impressiona demais as nossas almas. Acho que vou para de escrever para pintar um céu bem vermelho, com sol e estrelas ao mesmo tempo. Mesmo que ralhem comigo.

quarta-feira, 7 de junho de 2006

Feira do Livro

Sempre gostei de ir à Feira do Livro. Em primeiro lugar porque achava fantástico - leitora compulsiva - aquela enorme área da cidade em overdose de livros e algodão doce. Em pequena, ia com um dos meus irmãos, mais tarde com colegas de liceu, amigos, faculdade, colegas de trabalho. É uma cenário que vai crescendo connosco, e as companhias vão mudando. Começa o rito de levar os filhos - o João foi em cadeirinha com menos de um ano.

Este ano, éramos três adultos e duas crianças, 40, 39, 22, 12 e 11. É um bom grupo. Ao algodão doce anexaram-se gelados, mais consumistas e menos poéticos. Pareceram-me presentes menos editoras e menos leitores. Estariam os lisboetas no Rock in Rio (Tejo) que se ouvia de lá? A limpar carinhosamente as televisões para acompanhar o Mundial?

Não trouxe grande espólio: dois pequenos livros de uma colecção de biografias da Quimera (Chagall e Picasso) e a minha sobrinha fez-me descobrir uma editora, Planeta Tangerina, de que gostei do nome, dos desenhos e da irreverência. Os livros que me interessavam para trabalho eram demasiado caros, mesmo em livro de dia, os que gostaria de comprar por puro prazer eram igualmente impraticáveis. No entanto, gosto de ter que subir um degrau para chegar aos expositores laterais das barracas e de correr atrás dos miúdos com sacos de livros.

Actualmente há Feiras de Livro um pouco por todo o país. Mas as subidas e descidas do Parque Eduardo VII em serões quentes e hiperpovoados de final de primavera, cigarros fumados a meio do percurso, brincadeiras e memórias, são insubstituíveis. Em cada stand, como formiguinhas ansiosas, percorremos os títulos, folheamos qualquer coisa e cheiramos o papel novo no meio dos jacarandás que nos lançam as suas flores em tapete, quando a brisa vem à Feira.