sexta-feira, 9 de junho de 2006

Salas de aulas: memórias individuais e colectivas

Salas de aula são memórias muito vivas e muito físicas. As primeiras idas à escola - na minha geração, pelo menos - eram feitas do sal das lágrimas e do aperto no peito enquanto durava a incerteza de nos virem ou não buscar para o seguro da casa. Dessas primeiras idas sobram-me ainda os cheiros dos uniformes das professoras, das batas das crianças, da sopa - todos os refeitórios cheiram a sopa - que nos obrigavam a comer até não haver fundo no prato com colheres imensas de pessoas crescidas. Ficou também cá por dentro uma certa amargura de incompreensão, estou-me a lembrar do Principezinho, do Mundo dos Meninos Verdes, sempre que os desenhos não eram entendidos à primeira, e alguém que me explique ainda hoje porque é que os céus não podem ser cor-de-papoila como os de Chagall?
A aprendizagem de comportamentos grupais era feita dentro das aulas e nos momentos das refeições. Escolas kafkianas em que crescia a timidez, a introversão, o medo da escrita, o medo da oralidade, o medo das humilhações, porque não, não é nada óbvio que as fichas de matemática são para fazer primeiro, ainda gostava de encontrar a minha professora primária para lhe explicar...
Tantas perguntas, tanta vontade que me ficou de gritar e mudar o mundo. Em casa, o reduto da paz. Quando entrei em definitivo no sistema escolar português, estamos a falar de anos 70, mas antes do 25 de Abril, as pessoas já não eram gigantes, tinha perdido a admiração pelo que me ensinavam, aprendi a questionar. São dessa altura os cheiros das carteiras, os rabiscos feitos com raiva nos tampos, passar papelinhos aos colegas, fugir da escola só pelo gozo da transgressão.
Era o que se designava por boa aluna, consensualmente obtinha os resultados pretendidos e aprendi, assim, que as revoluções da equipa dos pequeninos se fazem eficientemente em silêncio.
Com o 25 de Abril, gerou-se uma grande confusão pela diversidade de testemunhos, pelas várias realidades expostas, pela intrusão da liberdade de expressão no meio escolar ao qual inevitavelmente tinha aderido. De confusa a esclarecida q.b., passei o liceu imune, como observadora. A segunda grande mudança foi, pois, já na faculdade, por ter tido a sorte de reconstruir a figura do professor, a partir de brilhantes testemunhos de sapiência e humildade, a quem continuo grata.
Ao voltar à escola, alguns anos depois, ainda me cheira a sopa nos corredores, ainda se sentem angústias. Ainda ponho em causa. Mas já não entro em pânico por me ter esquecido de um lápis e já não tenho medo de dizer que não concordo com qualquer coisa. Será que cresci?
Ensinam-me nesta escola que as salas de aula são memórias individuais e colectivas. É verdade. Não há duas histórias de vida iguais. Mas a transversalidade da memória que forma o contacto com a educação e instrução nos primeiros anos impressiona demais as nossas almas. Acho que vou para de escrever para pintar um céu bem vermelho, com sol e estrelas ao mesmo tempo. Mesmo que ralhem comigo.

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