Último ano de faculdade, acidente de viação. Fractura das vértebras c3/c4. Cegueira total. Quando coloquei o post ontem, hoje - perdem-se os dias e as horas quando se trabalha, com pessoas, quando comunicar é uma necessidade - não sabia que viria ter comigo um caso que julgava perdido por falta de apoio. Equipa maravilha, a minha, costumamos brincar com isso, post de desabafo hoje, ternura por irmãos (tens razão, Preca, a família não está no mesmo tecto), difíceis os dias quando se não é nada, quando temos que inventar tudo, reinventar pessoas, buscar no mais fundo de nós a coragem que não temos para dar a quem a tem em muito maior escala, tamanho do mundo mesmo. Da Dinamarca, de Lisboa, de Carcavelos, do Algarve, de Espanha, de Inglaterra, dos Estados Unidos, de Alfragide, respostas múltiplas, talvez mais que as lesões do acidente, estradas perigosas, já todos perdemos alguém pelo caminho das duas ou quatro rodas. Este amigo novo ganhou duas para sempre. Reconstruir o quê, como, com quê? Não é pergunta de desespero, penso enquanto escrevo, partilho, pode ser que alguém leia, pode alguém ser quem não é?
Balanço, existe voz, existe audição, existe, muita, vontade. Existe a tecnologia, terá que ser testada, não existem - obrigado público aos pais da pátria da parte dos filhos da nação - subsídios para ajudas técnicas a partir de agora. Dinheiro porquê, se as trocas são afectivas e as procuras conjuntas? Um caso, uma pessoa, que terá que reaprender ritmos de movimento, de comunicação, de contacto. Perdas irreversíveis de formas de amar - não são sempre iguais, felizmente.
Que ética, nada... É um caso, este, que podia ser eu ou quem me lê. No ano passado fiz cerca de 700 km por semana. Porque não terei sido eu? Trabalho com gente. Orgulho-me de ser gente. Opções como viver ou morrer, lutar ou partir são pessoais e não as julgo, não me julguem a mim também, se faz favor, as pedras são arriscadas de atirar, não haja ventos contrários.
Vi EXIT no DocLisboa. Vi Volver há pouco tempo. Vi Mare Adentro há algum já. Viver ou morrer, ficar ou partir. Ele quer ficar. E pode ficar, há espaço para todos. Nem sempre há humanidade. Não quer ser um peso, quer trabalhar, precisa de comunicar, tecnologias, ficção científica - uma das minhas paixões - a entrar-me pelo telefone dentro, hoje, às 16:58. Voz afectada, compromisso oral leve, será difícil? Ligeira mobilidade no mão esquerda, será suficiente? Há quem trabalhe remotamente usando varrimento de écran comandado por voz. Há quem utilize sopro para controlar o computador e, quem sabe, esteja a esta hora a escrever um post como eu, dedos parados para sempre, partilha activa na mesma medida.
São gigantes. Hoje tive a certeza que são gigantes contra quem lutamos. Não importa. Quem quer viver que tenha vida longa. O que faz uma pessoa? O movimento? A cor dos olhos? As capacidades física ou intelectuais? Quebras... Isso é o difícil. Todos estamos preparados para perder faculdades com o passar dos anos, brincamos com isso, nunca para deixarmos um corpo preso a uma alma cheia de juventude e de vontade, nunca para deixarmos de ser quem queremos ser, quem nos orgulhamos de ser. Ou estaremos? Tanto para aprender, sempre. "Eu quero." Sim. Pode alguém ser quem não é? Vamos à guerra, Miguel.
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