quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Dormir sobre o assunto

Vincent Van Gogh, Sleeping Workers
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É comum, a expressão. É mesmo uma opção compreensível em certas circunstâncias, embora pouco lógica. Apenas nos beneficia em tempo de descompressão, ninguém pensa enquanto dorme, eu pertenço mais à equipa das insónias. Já noutras dimensões me parece que anda a ser levada a expressão demasiado à letra... Como exemplo, temos a recente e produtiva sesta do Conselho de Ministros, de que brotou a Resolução 9/2007. Passo a explicar: a acessibilidade de cidadãos portadores de deficiências sensoriais, motoras ou cognitivas não é uma brincadeira. Entenda-se que já está na hora do Conselho de Ministros deixar de dormir em serviço, de emitir intenções literárias escritas por assessores politicamente correctos, assinadas de cruz, passar à acção, descer a campo. Ter a humildade e nobreza de aprender o que não sabe, ter a inteligência de estudar o que é complexo. E depois, sim, tomar opções, de preferência conscientes. Bom, devem ter Internet, a Constituição foi consultada...
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"A Constituição da República Portuguesa atribui ao Estado a obrigação de promover o bem estar e qualidade de vida do povo e a igualdade real e jurídico-formal entre todos os portugueses [alínea d) do artigo 9.o e artigo 13.o], bem como a realização de «uma política nacional de prevenção e de tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos portadores de deficiência e de apoio às suas famílias, a desenvolver uma pedagogia que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de respeito e solidariedade para com eles e a assumir o encargo da efectiva realização dos seus direitos, sem prejuízo dos direitos e deveres dos pais e tutores» (n.o 2 do artigo 71.o)."
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Claro, é melhor não lerem o resto, a parte em que se entrega a execução das medidas consideradas necessárias a entidades que não têm a menor qualificação para se fiscalizarem sequer a si mesmas. Por exemplo, o Secretariado Nacional para a Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência que não tem, nas suas instalações, condições mínimas de acessibilidade arquitectónica.
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Em paralelo, discute-se em canais marginais, este e outros assuntos, como o sistema de quotas para empregabilidade. Cito, devidamente autorizada, quem sabe bem mais que eu por experiência directa e por conhecimento do mundo das leis, o meu amigo Rodrigo Santos:
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"O que é que na prática impede um cego, surdo, paraplégico, etc., de ter plena actividade política? A sua participação ou actividade política está, por natureza, diminuída ou socialmente estigmatizada? Nada disso. Parece-me por isso não haver lugar aqui sequer a um assunto que mereça tratamento legal. Trata-se de uma pura questão de interesse, de mérito e de esforço. Quem tem unhas, toca guitarra. Quem não tem mas gostava de ter, tenta-se aproveitar de expedientes para lá chegar, tentando forçar a analogia de uma ideia, que já de si é tudo menos desejável, para lá chegar. Sim, falo das quotas. Poder-me-ão falar no estigma social. Estamos aqui de acordo. Mas... porque será o José, o Paulo, a Maria, o Manuel, excluído de uma lista partidária? Por ser cego, coxo, ter outras deficiências menos visíveis mas nem por isso menos incapacitantes? Em que é que, especificamente, isso diminui a sua capacidade de trabalho político e/ou de tomada de decisão? Em nada, creio eu. É claro que, se houvesse representatividade dos deficientes nos órgãos de tomada de decisão, tudo seria - ao menos em teoria - mais fácil, em termos de moldar a sociedade onde ela pode ser moldada. Mas, como foi bem salientado no debate parlamentar sobre esta petição havido hoje no Plenário da Assembleia da República, e como qualquer um de nós sabe, os deficientes, sejam eles quais forem e quantos forem, conseguirão, querendo, operar as verdadeiras mudanças. Basta que tenham mérito, e que se empenhem, para poderem ter actividade política. Sim, porque as regras de acesso à actividade política são plenamente conhecidas, e não é em razão da deficiência que se vai verificar o estigma da sua inutilização. Porque, por si só e pela pura teoria da representatividade, daqui a pouco vamos exigir quotas na Assembleia da República para os desempregados, para os que têm menos que a escolaridade obrigatória, para os que sofrem de doenças terminais, para os utentes do IC19... e por aí sucessivamente."
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Pensando melhor, vou dormir sobre estes assuntos. Os nossos dirigentes que acordem e ouçam quem sabe o que diz...

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