quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

Está?

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Claro que está... Quem é que está? Como se vulgarizou o telefone? Como se vulgarizaram expressões associadas ao seu uso? Deixámos de chamar pela telefonista ("menina"), as centrais não são de cavilhas, nem recurso único de subsistência para invisuais, felizmente o amanhã foi chegando pelo fio. No entanto, os nossos mecanismos de memória foram condicionados, os de comunicação também. Perguntamos "Onde estás?" porque utilizamos mais os telefones móveis que os fixos. Sabemos quem está do outro lado da linha, vendemos alma e identidade, para o melhor e para o pior (só na saúde e na doença é que enfim, entre baterias fracas e as nossas mazelas, cá temos que nos arranjar e gerir a questão autonomamente). Não decoramos mais os números. Primeiro, porque ficaram muito grandes (o telefone de Coruche do meu avô era o nº 4...). Segundo, estão na memória que já não é nossa, mas de cartões, que não servem mais para embalar rebuçados na mercearia mas para transferir informação fundamental para o nosso trabalho e para a nossa vida de uns lados para os outros.
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Está? Nem sempre. Quem nunca voltou atrás porque se esqueceu do telemóvel em casa ou no carro, sujeito a um dia de pânico ou vidrinhos partidos? Quem nunca se esqueceu do PIN e teve que procurar em desespero um tal de PUC que deixou de servir Oberon e cuja identidade mendigamos à operadora em troca do número de contribuinte?
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Está claro? Como em tudo, há telefones mais iguais que os outros. Uns não têm visor, são telefones adaptados para quem ouve e não vê. Outros falam ou ampliam para gerir agendas e sms. Muitos têm câmara fotográfica. Outros a possibilidade de comunicar em terceira geração directa, em jeito de webcam, passaram a estrelas de filmes de qualidade para quem tenha a coragem de ver a rebelião presa no arrasto de imagem, o filme da comunicação dentro do filme da comunicação ("If you want to be understood, listen").
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Está lá tudo... até os sentidos nos escaparam subitamente para a tecnologia. Têm cores, cheiros (sabores que me conste ainda não). São escadinhas de altares de Santo António para a promoção social do poder de compra. São úteis, viciantes, afectivos e embaraçosos. Tremem quando a timidez de uma reunião nos obriga a ser discretos como elefantes em lojas de porcelanas, agitando o bolso ou a carteira, obrigando-nos a ver debaixo da mesa e com sorrisos amarelo-digital quem chama por nós. E quando temos mais que um somos pessoas importantes, já não chega o sistema de chamadas em espera, verdadeira revolução poligâmica das tecnologias da comunicação.
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Está tudo dito? Nunca. Malditos carregamentos, gestão de assinaturas, qualquer que seja o esquema em que se juntaram certamente Maquiavel e Torquemada para nos extorquir o máximo do ordenado mínimo sob pena de exclusão social. Caixas de correio não electrónicas passaram a ser temidas, entreabertas a medo, envelopes chegam e dão más notícias sempre, substituíndo as boas e seguras cartas de parentes e amigos.
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Está? "Estou a dar aulas", "Estou a sair das aulas", "Estou quase a chegar" "Abre a porta ao miúdo, se fazes favor". Esquecemo-nos de tudo, campaínhas de porta passaram a mobiliário urbano, cabines telefónicas são divertimento de petizes descontrolados, o tempo acelerou, todas as frases são no presente do imediato, avisamos por sms que estamos a chegar onde chegaremos passado um minuto.
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Está mais ou - muitas vezes - menos bem escrito, o português dos sms também tem muito que se lhe diga, a idade de utilizar os telefones fixos e móveis não implica mais sabedoria, mas mais uma discreta portinhola para a irreverência e talvez, convenhamos, algum culto da ignorância e do facilitismo (quem tem K...).
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No mínimo, tornam os nossos dias divertidos. Está certo, sempre gostei de surrealismo...

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