segunda-feira, 5 de março de 2007

Fracções

"Sim, foi ali.
Tanto quanto é possível localizar-se uma fracção
mais que secreta de vida, foi naquele lugar
e naquele instante que eu,
frente a frente com a minha imagem no espelho
mas já desligado dela,
me transferi para um Outro sem nome e sem memória
e por consequência incapaz da menor relação passado-presente,
de imagem-objecto, do eu com outro alguém
ou do real com a visão que o abstracto contém.
Ele."
José Cardoso Pires, De Profundis, Valsa Lenta.

A velha ceifeira. Atemoriza-nos e é tão próxima. Falei no post anterior da violência nos desenhos animados e na construção de imaginários. O nosso medo da violência tem sempre um medo da morte. Como todos os medos, ultrapassa-se naturalizando o conceito. A morte só é um mistério para quem nunca lhe deu a mão. Quem já passou por experiências como a de Cardoso Pires percebe. Que não cabe em nós, é maior que nós. Uma espécie de paixão descontrolada que nos leva a viver sem medida, que o horizonte não é nosso, só a pressa.
Quem já a viu de perto, mas noutros, entende ainda melhor a inevitabilidade e a fragilidade dos corpos. Entende que as almas são grandes e existem, as memórias, as persistências, as experiências, o sufoco de assuntos incómodos (melhor os desenhos animados, e no entanto...). Quem já viu a morte de perto. Quem já deu a mão à morte. Quem não soube agarrar uma mão tão firme que ficasse sem ser o pó que nos espera. Quem não teve força. Quem acabou por perceber que por muito que se aperte nada resta. A morte é pessoal e intransmissível. Resta-nos o conforto e o desconforto de o saber. Também, a paz de ter essa noção. Nada podemos fazer pela morte, façamos pela vida. Não mais se é agressivo conscientemente. Não mais se desvaloriza ninguém seja de que idade for. Não mais se vê dor sem a sentir na pele. O arrepio da memória. O medo de se repetir, não se quer perder mais ninguém, nem desconhecidos. E sabemos, no entanto, que todos seremos ceifados.
Labirinto recursivo, ninguém sai desta sala, estar é privilégio, vê-se melhor a vida depois de ter visto o escuro ao fundo do túnel. Não se contam as pessoas que vamos perdendo, as nossas baixas de guerra. Filhos, amigos, amores. Não há idade nem estatuto. Se está hoje, pode partir. É uma liberdade dispensável e dura. Talvez devessemos ter mais a noção disso. Não por experiência directa, por favor, é demasiado intensa. Pode não se sair do mergulho.
Mas convém ficar. Não vá o mundo acabar amanhã e perdermos o último nascer do sol. Nós, ou os outros.

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