"Todo este país é muito triste... Aquele onde eu vivi outrora era menos triste. Ao entardecer eu fiava, sentada à minha janela. A janela dava para o mar e às vezes havia uma ilha ao longe... olhava para o mar e esquecia-me de viver. Assim, sem o relógio, tudo é mais afastado e misterioso. A noite pertence mais a si própria. Quem sabe se nós poderíamos falar assim se soubéssemos a hora que é? Eu não sei contos nenhuns, mas isso não faz mal. Só viver é que faz mal. Cada gesto interrompe um sonho. As mãos não são verdadeiras nem reais. São mistérios que habitam na nossa vida. É sempre longe na minha alma. Talvez porque, quando criança, corri atrás das ondas à beira-mar. Levei a vida pela mão entre rochedos, maré-baixa, quando o mar parece ter cruzado as mãos sobre o peito e ter adormecido como uma estátua de anjo para que nunca mais ninguém olhasse. Eu vivi entre rochedos e espreitava o mar. A orla da minha saia era fresca e salgada batendo nas minhas pernas nuas. Eu era pequena e bárbara. Hoje tenho medo de ter sido. Na vida aquece ser pequeno. À beira-mar somos tristes quando sonhamos. Não podemos ser o que queremos ser, porque o que queremos ser queremo-lo sempre ter sido no passado.
Um dia que eu dei por mim recostada no cimo frio de um rochedo vi ao longe, como uma coisa que eu só pensasse em ver, a passagem vaga de uma vela. Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha longínqua. Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali. Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido: pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de país com outras espécies de paisagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janelas. Cada hora ele construía em sonho esta falsa pátria, e ele nunca deixava de sonhar, de dia à sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite, estendido na praia, de costas e não reparando nas estrelas. Durante anos e anos, dia a dia, o marinheiro erguia num sonho contínuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha uma pedra de sonho nesse edifício impossível. Breve ele ia tendo um país que já tantas vezes havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se já de ter passado ao longo de suas costas. Sabia de que cor soíam ser os crepúsculos numa baía do norte, e como era suave entrar, noite alta, e com a alma recostada no murmúrio da água que o navio abria, num grande porto do sul onde ele passara outrora, feliz talvez, das suas mocidades a suposta.
Um dia que eu dei por mim recostada no cimo frio de um rochedo vi ao longe, como uma coisa que eu só pensasse em ver, a passagem vaga de uma vela. Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha longínqua. Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali. Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido: pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de país com outras espécies de paisagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janelas. Cada hora ele construía em sonho esta falsa pátria, e ele nunca deixava de sonhar, de dia à sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite, estendido na praia, de costas e não reparando nas estrelas. Durante anos e anos, dia a dia, o marinheiro erguia num sonho contínuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha uma pedra de sonho nesse edifício impossível. Breve ele ia tendo um país que já tantas vezes havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se já de ter passado ao longo de suas costas. Sabia de que cor soíam ser os crepúsculos numa baía do norte, e como era suave entrar, noite alta, e com a alma recostada no murmúrio da água que o navio abria, num grande porto do sul onde ele passara outrora, feliz talvez, das suas mocidades a suposta.
Não se deve falar demasiado. A vida espreita-nos sempre. Toda a hora é materna para os sonhos, mas é preciso não o saber. Ao princípio ele criou as paisagens, depois criou as cidades; criou depois as ruas e as travessas, uma a uma, cinzelando-as na matéria da sua alma - uma a uma as ruas, bairro a bairro, até às muralhas dos cais de onde ele criou depois os portos. Uma a uma as ruas, e a gente que as percorria e que olhava sobre elas das janelas. Passou a conhecer certa gente, como quem a reconhece apenas. Ia-lhes conhecendo as vidas passadas e as conversas, e tudo isto era como quem sonha apenas paisagens e as vai vendo. Depois viajava, recordando, através do país que criara. E assim foi construindo o seu passado. Breve tinha uma outra vida anterior. Tinha já, nessa nova pátria, um lugar onde nascera, os lugares onde passara a juventude, os portos onde embarcara. Ia tendo tido os companheiros da infância e depois os amigos e inimigos da sua idade viril. Tudo era diferente de como ele o tivera - nem o país, nem a gente, nem o seu passado próprio se pareciam com o que haviam sido. Um dia, que chovera muito, e o horizonte estava mais incerto, o marinheiro cansou-se de sonhar. Quis então recordar a sua pátria verdadeira, mas viu que não se lembrava de nada, que ela não existia para ele. Meninice de que se lembrasse, era a na sua pátria de sonho; adolescência que recordasse, era aquela que se criara. Toda a sua vida tinha sido a sua vida que sonhara. E ele viu que não podia ser que outra vida tivesse existido. E da vida que lhe parecia ter sonhado, tudo era real e tinha sido. Nem sequer podia sonhar outro passado, conceber que tivesse tido outro, como todos, um momento, podem crer.
Não sei como era o resto. Há resposta para alguma coisa?"
Não sei como era o resto. Há resposta para alguma coisa?"
Fernando Pessoa. O Marinheiro (extractos)
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