Cruzei-me há pouco - não foi numa rua da baixa - com um artesão.
Como trabalho com alguma materialidade um pouco estranha para o comum dos nossos tempos de pressa e poucos olhares à diferença, é difícil tratar da manutenção de alguns objectos de apoio. Neste caso era um relógio falante. Os relógios usados por quem não tem o sentido da visão podem ser de interface táctil (uma tampinha é levantada e há referências para localização da posição relativa dos ponteiros) ou sonoro (um duplo mecanismo que pode ter um output analógico ou digital em números visíveis e sonoro, com quatro botões externos para além do tradicional: botão para ouvir as horas, botão para entrar em modo de acertos e configurações, botão para acertar as horas, e os minutos, sendo estes dois usualmente os responsáveis por acertar também o alarme e mais algumas funções que podem variar consoante os modelos).
Obviamente que é difícil encontrar quem faça a sua manutenção, só o facto de terem um mecanismo duplo se torna complexo, a quantidade de vezes que se recusam sequer a mudar-lhes as pilhas é inacreditável, a quantidade de vezes que lhes invertem o mecanismo de voz é assombrosa. Há profissionais criativos e cada vez mais entrámos na cultura do "não sei nem me interessa" ou do "assim deve estar bem".
E depois há o Senhor Jacinto.
O Senhor Jacinto estudou até à quarta classe, fazendo sempre trabalhos para ajudar os pais. Depois foi entregue a um Mestre ourives, e passado uns aninhos já tinha a paixão dos relógios. Foi muitas vezes contactado, ainda é, por escolas com fama de excelência nesta área, e que desenvolvem, infelizmente, profissionais dos tempos modernos... consumistas - que os profissionais sem tempo têm tempo para aprender toda a vida.
O Senhor Jacinto arranjou o relógio da Senhora Ilda, que andava na carteira da Maria há algum tempo, em alarme de desespero, porque a sua proprietária não vê horas nos relógios onde a gente vê. A Maria confirmou - gata escaldada - que o mecanismo estava na forma correcta e acertou de ouvido o alarme para verificar se estava mesmo tudo bem (o convívio com outras formas de ver o mundo faz-nos interiorizar posturas e sensibilizar comportamentos), o Senhor Jacinto olhou da oficina e saíu: acerta o relógio como os cegos, pois acerto, eu tenho um com o toque do galo, gosto mais da voz espanhola que da brasileira, os tácteis, os antigos da Camisaria Moderna, hoje, menina - obrigado, Senhor Jacinto - ninguém tem respeito por nada, nem por si mesmo. Não há técnica porque não há respeito.
A respeito de relógios então, o Senhor Jacinto dissertou. E eu a lembrar-me do glorioso Jacinto da Cidade e as Serras e a pensar que a aprendizagem deste meu Jacinto tinha sido bem mais rápida. E ele a dissertar farpas que nem Eça e Ramalho. Sabe, ladrões sempre houve, e mentirosos. Mas hoje são burros porque nem por si têm respeito. Não se morde a mão que nos dá de comer, sobretudo se for a nossa. Por isso quando me pergunta porque me interessei também por estes mecanismo, porque fazem parte da minha Arte, claro. Ou se fazem as coisas com respeito porque são elas que nos dão a subsistência ou é melhor estar quieto e deitar tudo fora. E acredite, menina - obrigado mais uma vez, Senhor Jacinto - a maior parte das pessoas deitam-se fora e nem percebem. Como as crianças que nos telejornais só ouvem os políticos a chamar mentiroso uns aos outros. E querem que cresçam a respeitar quem, se nem os pais têm outro diálogo que não o da mão levantada e da falta de paciência.
Ontem ouvi e li duas notícias sobre educação e os muitos comentários foram abaixo deste do Senhor Jacinto: a má utilização da Internet pelas crianças (ou pelos adultos, que nunca há só um lado da questão) e a violência escolar a saltar de novo em jogos mortais. E passa tudo por este respeito que o meu amigo da manhã mencionou (não foi numa rua da baixa mas ele simpatiza comigo e eu simpatizo com ele). Perda de valores, mesmo os individuais. Não parar (os relógios) para pensar. Não reflectir nos mecanismos (os relógios, novamente) que podem estar por trás de uma circunstância. Não pensar (os relógios e a ignorância voluntária de alguns técnicos) que os mecanismos que nos levam a agir de determinada forma podem ser desconhecidos.
Não ter respeito por nós, não ter respeito pelos outros, não dar valor à vida, não dar valor ao profissionalismo, não dar valor ao trabalho, não dar valor à aprendizagem, não dar valor - manchar mesmo gravemente - a liberdade que temos de crescer, de agir e de nos expressar correctamente (e não falo da forma mas do conteúdo).
O Senhor Jacinto a Ministro da Educação. Urgentemente.
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