quinta-feira, 5 de outubro de 2006

Das calamidades naturais...

Iluminura de 1047 de Comentário ao Apocalipse de São João por Beato de Liébana, de 776.

Os quatro cavaleiros do apocalipse... Guerra, Peste, Fome e Homem. Calamidades que passaram a naturais, porque naturalizadas aos nossos olhares. Também porque o homem naturalizou a sua prática. E convivemos com elas sadiamente, bem nutridos e vestidos, passando à frente em bilheteiras, não cheguemos depois de alguém para ver uma exposição no CCB (curricula intelectuais?).

Captar a dor e disseminá-la como num jardim zoológico de desumanidades, em que 45% de público se passeia com um ar de intelectualidade recém-adquirida, mesmo não reparando que não havia detalhes técnicos das espécies fotográficas na legendagem, sendo que outros 45% humanizavam a raça, soltando expressões e olhares agonizantes para mostrar a sensibilidade gratuita antes de atravessar a rua e ir comer um bife, com comentários técnicos sobre a insensibilidade dos nossos dias e a escassez do molho de manteiga. Os restantes 10% eventualmente foram à procura, os pobres, ínfima parcela da ciência do estado, correndo pela aprendizagem dos olhares, das palavras, da avaliação, da preparação desse mundo tão distante de nosso para a construção do nosso imaginário de horrores, que monstros somos ou em que monstros nos tornámos?

Claro, os nomes das rosas mortas, as patentes, as palavras, os números em que misturavam assassinos e assassinados - ainda há quem tenha olhos no coração para reparar nos detalhes, convém aprendermos com quem sabe ver.

Ter consciência. Da terrível manipulação e prepotência em que vivemos, da importância inegável que é divulgar a informação, da consciência e distância que dela devemos ter.

Ficam-me desta tarde os olhos, as mãos, as rugas, os olhares sobre olhares, as faltas, a fome, mote do texto de introdução, por sinal bem escrito, assumida, finalmente, como calamidade natural, a matar silenciosa e discreta por entre as mortes assinadas por mão humana. Nem sempre a dor tem uma arma do outro lado do espelho.

Claro, há sempre o amor e a esperança de um gesto eficiente e lúcido que se perde pelo futuro, mãos pequenas onde as grandes caíram, como uma culpa ou um castigo por estar vivo. É essa a minha escolha:

Yong Abu, por Yannis Kontos

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