sexta-feira, 27 de outubro de 2006

O romance da raposa

"Havia três dias e três noites que a Salta-Pocinhas - raposeta matreira, fagueira, lambisqueira - corria os bosques, farejando, batendo mato, sem conseguir deitar a unha a outra caça além duns míseros gafanhotos, nem atinar com abrigo em que pudesse dormir um soninho descansado"


Uma das histórias da minha infância. Uma das minhas procuras de sempre (ficou-me até hoje, as nossas identidades são, muito mais que pensamos, construídas).

Faz falta imaginar? Continuo a correr, nestes dias por quem me levou pela mão até à toca de um sonho de uma raposa bem ruiva, de espírito mordaz e actuação eficiente. Sonhamos com o que nos falta? Com o imaginário que nos deram ou com o que nos fez falta? Terei lido histórias suficientes ao João, que as lê já sózinho? Nunca é demais ler aos nossos filhos. Nunca me leram de mais. Leitora compulsiva desde cedo, letras como asas, estrelinhas que saltam do pijama e dançam na luz cada vez mais fraca do candeeiro que apaga o dia por mãos que amamos e que são sempre protectoras. Estou-me a lembrar de todos os recentes amiguinhos que conheci na blogosfera, a Matilde, o JP, a Lobita, o Pedro, estou-me a lembrar (tantas vezes me lembro) de Soeiro Pereira Gomes e dos seus "homens que nunca foram meninos", na belíssima dedicatória de Esteiros. Estou-me a lembrar - tantas memórias hoje, outras tantas homenagens, do trabalho de António José Forte com as Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian.

(ontem ao passar na Avenida de Berna reparei, "eu que não me comovo por tudo e por nada" que o edifício do serviço de bibliotecas tinha sido demolido e estava lá um vago de páginas e de trabalhos de décadas da nossa cultura, com uma parede [muro] de riscas de cores, como a pedir perdão)

É sempre de recordar que a raposa Salta-Pocinhas recorria a diversos recursos para conseguir sobreviver num mundo que não lhe era meigo, o que nos devia alertar o suficiente para que as leituras para as raposinhas não sejam feitas sempre da mesma forma, os nossos sentidos e os nossos corpos não funcionam todos igualmente, a natureza não tira fotocópias, há que levar o sonho para perto dos corações. Ler com os olhos, com as mãos, com os ouvidos.

***

Voltando ao Romance da Raposa...

Faltam-me, pois, os míseros gafanhotos (bom, talvez não gafanhotos, necessariamente), mas um pequeno-almoço de jeito, um abrigo para onde possa fugir do mundo, e o soninho que seria bem-vindo, em tempo de guerra.

No entanto - segredo-vos - parece-me que encontrei a raposa ruiva, e isso basta-me, neste momento, para ser feliz...

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