domingo, 1 de outubro de 2006

Gente feliz com lágrimas

"Aterrorizou-o um pouco a ideia de ficar ali, abandonado à presença de tantos estranhos. De dormir entre gente vinda de todas as terras do seu país, falando a mesma língua, mas gente que não entendera ainda uma única das suas frases e jamais entenderia uma ideia, uma palavra que fosse de cada uma das suas frases...
Para não ter de continuar a responder-lhes e a não ser compreendido, decidiu agarrar na almofada e comprimi-la à volta dos ouvidos. A sua vida ia assim mergulhar num subterrâneo sem fundo nem altura. Nunca mais ele voltaria a ser igual a si mesmo. Então, abriu muito os olhos. Queria conhecer e ao mesmo tempo despedir-se, decifrar e compreender as formas que se modelavam no escuro do dormitório. Amá-las com ódio e odiá-las com amor, talvez. Vendo-as, não estranhou o arrepio e por isso voltou a cerrar os olhos com força. Surpreendeu-o então o facto de o rosto da mãe se ter iluminado, como numa aparição. Havia uma auréola de santa, ou tão-só uma estrela que parecia palpitar no coração da noite. Levado por tal ilusão, tentou sorrir-lhe. Contudo o sorriso dela era também feito de sombra. Não pôde resistir às sombras. Um sorriso assim doía mais do que a dor de estar vivo. Valia talvez um pranto ou um riso convulso. Ao sentir a boca torcer-se e fazer apelo a esse pranto, Nuno procurou suster toda a emoção dentro de si. Prometeu que não ia nunca chorar sobre as lágrimas e sobre a terra da infância. E que ia ser feliz."

João de Melo, Gente Feliz com Lágrimas, 1989.

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