quinta-feira, 29 de dezembro de 2005

Neve

"A neve pôs uma toalha calada na mesa de tudo."

Alberto Caeiro














Alfred Stieglitz, Winter on Fifth Avenue, New York, 1893
1893 / print ca. 1924-1934 gelatin silver print 6.4 x 7.3 cm.

terça-feira, 27 de dezembro de 2005

Em suma...



"Só se vê bem com o coração.
O essencial é invisível para os olhos."

A. Saint-Éxupery

Uma visão diferente do mundo

Tenho muitos amigos e colegas cegos. Alguns nasceram assim, nunca viram. Outros, cegaram em crianças e têm uma vaga memória de cores, noções de longe, de horizonte, de rostos. Outros ainda cegaram já em adultos. Percursos difíceis, sobretudo no último caso, porque requerem uma adaptação muito radical à forma de abordar o mundo como o conhecemos.
Ninguém é melhor nem pior por ter mais ou menos um sentido. Como em todas as situações, as pessoas valem sempre por si e não pelos seus condicionalismos ou características. De qualquer forma, muito tenho aprendido, sobretudo no que toca a reacções positivas, a coragem, a capacidade de refazer completamente estruturas de vida, sobre generosidade, sobre relativizar o que apelidamos de problemas.
Muito tenho também aprendido sobre formas de comunicação diferentes e sobre formas de conceptualizar o mundo. Normalmente associa-se a cegueira a uma capacidade inata de orientação, de ouvido, de sensibilidade, de paciência. Em muitos casos, sim, desenvolvem-se essas características.
Mas o que mais me tem marcado é a capacidade de lidar com um tempo diferente. A humanidade. A paciência. Tenho tido muita sorte com os amigos que tenho conhecido nos últimos tempos, excelentes pessoas, fantásticos profissionais, trabalhadores incansáveis.
Hoje encontrei um caso de falta de esperança, de muita revolta, que estranhei. Para mim, não ver está associado a alguma dependência, sim, sobretudo pela questão das deslocações menos autónomas, pelos problemas de mobiliário urbano mal colocado, pela espera de ajudas técnicas que muitas vezes se arrastam e pela incompreensão e incredulidade da maior parte das pessoas quanto à competência e possibilidades de um cego estar integrado na vida social, profissional, académica, afectiva, como qualquer outra pessoa.
Estudo este tema actualmente e muito grata estou pela aproximação que todos estes amigos me têm ajudado a fazer a conceitos que me eram desconhecidos. E também pela riqueza que trouxeram à minha vida e à do meu filho, que já vai crescer dentro de uma abertura de espírito pouco comum nas crianças da sua idade.
A constituição portugesa consagra a igualdade, mas os homens só escrevem as leis. O horizonte é mais curto para quem vê, em muitos casos.
Quanto a mim, tudo o que tenho descoberto é uma dimensão diferente de lidar com o que nos é próximo. E amigos, muitos amigos, muitas pessoas generosas e sábias, dispostas a expôr as suas experiências para que quem está longe se aproxime. Talvez o horizonte esteja mesmo na ponta dos nossos dedos e dos nossos corações.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2005

O beijo









Rayographie Le baiser; Année: 1922
Thème: Rayographies - Publication
Album 1920-34 page 104 - Man Ray embrassant Kiki

Poema de Natal

"Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor."

Vinicus de Moraes, O Operário em Construção

segunda-feira, 12 de dezembro de 2005

Landscape with dead tree























Charles F. Snow (1886-1964): Untitled (Landscape with Dead Tree)
Toned silver print, 3.25 x 4.25 inches

Aniversário

"O tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos.
E a alegria de todos, e a minha, estava certa, como uma religião qualquer."

Álvaro de Campos

sexta-feira, 2 de dezembro de 2005

Natal

Tem muito de recordações, é muito físico. Natal são cheiros de infância, filhoses, chocolate quente feito pela Mãe. Esperar a meia-noite para abrir o presente do Pai Natal ou do Menino Jesus (nunca percebi bem este consórcio, mas sempre foi agradável...).
Natal são músicas que arrepiam porque puxam as nossas emoções e recordações mais ternurentas ou mais dolorosas.
Assisti na quarta-feira a um concerto de Natal, em São Roque, com um coro infantil fantástico, com uma execução muito boa da 1ª suite para violino de Bach. O Largo da Misericórdia estava cheio, a Igreja de S. Roque (quem não conhece não vai para o céu... é lindíssima) cheia estava.
As palmas impuseram uma última música, preparada - noblesse oblige - pelas crianças. Adeste Fidelis encheu de harmonia e de lágrimas grandes e pequenos. Bebés assistiam ao concerto e dançavam graciosamente pela igreja fora. Desmistifiquemos a relação com as igrejas, por favor.
Espaços que se querem de liberdade, o concerto podia ter sido numa mesquita? Não sei. Cada religião tem as suas regras e por norma respeito-as. Mas a verdade é que as igrejas católicas são cada vez mais locais públicos de oração, de reflexão e de cultura. São de todos e são de livre acesso. Porquê tanto drama com os crucifixos nas escolas, agora? Porquê politizar o que pode ser uma referência, mas pode ser apenas um quadro como qualquer outro. A educação religiosa não é obrigatória. Conhecer os princípios de uma ou mais religiões ou explicar porque não se seguem é importante porque não se pode ignorar o passado. Já outros princípios, mais institucionais, não me parecem de bom senso...
De qualquer forma, o espaço igreja não contamina ideologicamente e podem ir à vontade ouvir e ver os concertos a S. Roque. Também os crucifixos nas igrejas só assustam quem tem medo que a História se repita, algo que, de facto, já percebemos que só acontece, como o Natal... quando um Homem quiser.
Reservemos as nossas preocupações para se as escolas têm telhados em condições, aquecimento central, alimentos suficiente para o corpo e para o espírito e cumprem a sua missão junto das crianças que as frequentam.
É Natal, seja lá como se o encara, mas vamos pensar um pouquinho para fora de nós, por favor.

segunda-feira, 21 de novembro de 2005

Estrelas









"Certas estrelas são amarelo-limão, outras têm um rubor rosa, ou um verde ou azul ou um brilho que não se esquece. E sem querer alargar-me neste assunto torna-se suficientemente claro que colocar pequenos pontos brancos numa superfície azul-preta não basta."


Vincent van Gogh , carta a Theo, 1888.

Também as pessoas são todas diferentes e igualmente belas por o serem.
A questão não está em como somos, mas o que somos.
Ser pleno.

Qual o problema?

quinta-feira, 17 de novembro de 2005

Umberto Eco

"O que sou eu? Se digo eu, no sentido de Roberto de la Grive, faço-o enquanto sou memória de todos os meus momentos passados, a soma de tudo o que recordo. Se digo eu no sentido daquele algo que está aqui neste momento, e não é o mastro principal ou este coral, então sou a soma do que sinto agora. Mas o que sinto agora o que é? É o conjunto das relações entre presumidos indivisíveis que estão dispostos nesse sistema de relações, nessa ordem particular que é o meu corpo."

A Ilha do Dia Antes.

sábado, 12 de novembro de 2005

Poesia, irmã do cansaço...

"Tenho dó das estrelas
Luzindo há tanto tempo,
Há tanto tempo...
Tenho dó delas.

Não haverá um cansaço
Das coisas.
De todas as coisas,
Como das pernas ou de um braço?

Um cansaço de existir,
De ser,
Só de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir...

Não haverá, enfim,
Para as coisas que são,
Não a morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão -
Qualquer coisa assim
Como um perdão?"

Fernando Pessoa

---

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."

Álvaro de Campos

---

Menino doido, olhei em roda e vi-me
Fechado e só na grande sala escura.
(Abrir a porta, além de ser um crime,
Era impossível para a minha altura...)
Como passar o tempo?... E diverti-me
Desta maneira trágica e segura.
Pegando em mim, rasguei-me, abri, parti-me,
Desfiz trapos, arames, serradura...
Ah, meu menino histérico e precoce!
Tu, sim!, que tens mãos trágicas de posse,
E tens a inquietação da Descoberta!
O menino, por fim, tombou cansado;
O seu boneco aí jaz esfarelado...
E eu acho, nem sei como, a porta aberta!"

José Régio


domingo, 6 de novembro de 2005

Ainda no País das Maravilhas

"O Gato, ao ver Alice, apenas sorriu. Ela achou que ele tinha aspecto de ser boa pessoa. No entanto, tinha as unhas muito compridas e uma boca cheia de dentes: por isso achou que seria melhor tratá-lo com respeito...
- Gatinho Cheshire - começou Alice, timidamente, pois não sabia se ele iria gostar do nome; mas ele pôs-se a rir mostrando ainda mais os dentes. 'Bom, até agora ele parece estar satisfeito', pensou Alice, e continuou a falar: - Diga-me, por favor, a partir daqui, que caminho é que devo seguir?
- Isso depende bastante do sítio para onde queres ir - respondeu o Gato.
- Pouco me importa para onde - disse Alice.
- Então não tem importância para que lado vais - disse o Gato.
- Contanto que vá dar a qualquer parte - acrescentou Alice, explicando-se melhor.
- Ah, isso é que vais, de certeza - disse o Gato -, se andares o suficiente."

Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas

Lewis Carroll no País das Maravilhas

Comprei um livro. Gosto particularmente de Lewis Carrol enquanto autor (Alice no País das Maravilhas, Alice do Outro Lado do Espelho, A Caça ao Snark, Sylvie et Bruno), enquanto fotógrafo e enquanto pensador. Rompeu com demasiados standards não da sua época - usamos demais esta frase - mas de sempre, de hoje também. Fotografar crianças captando naturalidade, personalidade, expressões de simpatia, sorrisos, caras sérias, aborrecimento, sensualidade, desleixo, brincadeira, jogo. Não somos seres assexuados. Se é socialmente correcto apresentar as crianças com parâmetros de inocência, como paraísos perdidos, Lewis Carroll desconstrói o paraíso da infância e rasga a cortina atrás da qual temos acesso à crueldade, à antipatia, à personalidade, à inveja, à desconfiança, à sexualidade, ao inconformismo que nos acompanha no crescimento normal, seja qual for a circunstância social em que somos educados. A autora, Stephanie Lovett Stoffel, apresenta uma pequena história - não a considero bem uma biografia, mas mais uma relação do homem com a sua produção intelectual e artística - de Carroll, recheada de belíssimas imagens dos locais, das meninas, das cartas, das ilustrações, do próprio. Editorial Quimera, na colecção Descobrir.

domingo, 9 de outubro de 2005

Chegou a chuva, e as eleições...

Dois tempos de mudança. Quase apolítica, acho que as autárquicas são mesmo eleições à cabeça, em que devemos orientar a nossa escolha para critérios de honestidade e trabalho. Mais uma utopia, provavelmente, entre tantas com que vou entretendo os meus dias.
Votar é importante porque na nossa história recente o direito de escolher não era um dado adquirido. Gostei de ver, de manhã, muitas crianças com os pais, a aprender que votar é importante, não dói, não demora, é um direito e um dever. Gostei de ver o mesmo na televisão. Muitas crianças a aprender que não custa afinal, participar no mundo em que vivemos. Neste pequeno mundo.
A chuva, boa mudança. Que venha em abundância, inversamente proporcional à abstenção... O país está seco de democracia e de vontade, como a terra de fertilidade e segurança.
Caia pois a chuva sobre um país em mudança, não desesperem os homens das melhorias que a natureza e eles próprios conduzem de quando em vez.
Época de trabalho. Gosto de Outubro. Gosto de passear com a chuva na cara e o vento nas roupas e gosto de me sentir viva. Estudei esta semana, com o meu filho, a escravatura no Brasil. Demos valor aos ventos de mudança que nos beneficiam e tornam mais humanos, cada vez mais humanos. Porque lutar faz sentido e ter esperança igualmente.
Um bom Outubro para todos nós.

quarta-feira, 28 de setembro de 2005

Sonhos

"Eu tenho um sonho. Eu sonho que as minhas quatro crianças vão um dia viver numa nação onde não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo seu caráter. Eu tenho um sonho hoje!
Eu tenho um sonho que um dia todo vale será exaltado, e todas as colinas e montanhas virão abaixo, os lugares ásperos serão aplainados e os lugares tortuosos serão endireitados e a glória do Senhor será revelada e toda a carne estará junta.
Esta é nossa esperança. Esta é a fé com que regressarei para o Sul. Com esta fé nós poderemos cortar da montanha do desespero uma pedra de esperança. Com esta fé nós poderemos transformar as discórdias estridentes de nossa nação numa bela sinfonia de fraternidade. Com esta fé nós poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, defender a liberdade juntos, e quem sabe nós seremos um dia livres. "

Martin Luther King

sábado, 24 de setembro de 2005

Como será estar contente?

Como será estar contente?
Lançar os olhos em volta,
moderado e complacente,
e tratar com toda a gente
sem tristeza nem revolta?

Sentir-se um homem feliz,
satisfeito com o que sente,
com o que pensa e com o que diz?
Como será estar contente?

Deve haver qualquer mecânica,
qualquer retesada mola
que se solta e desenrola
no próprio instante preciso,
para que um homem de carne,
de olhos pregados no rosto,
possa olhar e rir com gosto
sem estranhar o som do riso.

Na minha tosca engrenagem,
de ferrugenta sucata,
há qualquer mola de lata
que não se distende bem,

qualquer dessorada glândula
ou nervo que não se enfeixa,
qualquer coisa que não deixa
deflagrar essa girândola
de timbres que o riso tem.

Não ter riso e não ter casa,
nem dinheiro nem saúde,
não se conta por virtude
que a miséria é ferro em brasa.

Mas ter casa, ter dinheiro,
ter saúde e não ter riso,
flagelar-se o dia inteiro
como se o sangrar primeiro
fosse um torrnento preciso,

tê-lo sempre forte e vivo,
espantado a todo o momento,
isso sim, será motivo
de grande contentamento.

António Gedeão, O Carrossel do Sonho

Poema de Leste

Tenho a colaboração, na gestão da minha casa, de uma senhora ucraniana. Privilégio, porque qualquer colaboração no nosso espaço íntimo é positiva na medida em que nos alivia de trabalhos extra e permite - sobretudo em anos de estudo e trabalho acrescido - algum tempo de qualidade para nós próprios. Privilégio, porque não é todos os dias que se encontra alguém amigo. Privilégio, porque ter uma pessoa amiga, culta, simpática, carinhosa, a partilhar o nosso espaço pessoal e a dar-nos lições de vida, limpar-nos as lágrimas, falar-nos de terras distantes, de outras culturas e vivências é fantástico.
O profissionalismo com que os emigrantes de leste encaram cada uma das tarefas que fazem é fabuloso. A competição é impossível. As qualificações muito superiores aos trabalhos exercidos em Portugal não os tornam soberbos ou desleixados, mas dedicados e perfeccionistas. Lição número 1: se nos empenharmos em tudo o que fazemos, mesmo na mais ínfima tarefa, estamos a dar à vida uma correspondência total.
A minha colaboradora merece ser feliz. Julgo que o é. Em circunstâncias familiares e culturais que não sei se eu própria ultrapassaria. Chama fofinho ao meu filho, abraça-o, traz-lhe chocolates e mimos. É minha amiga.
E a poesia está aqui. Porque é poeta. E não trouxe livros consigo. E a sua formação académica se concretizou em russo, ucraniano e alemão. Por isso, vários amigos andaram à procura de poesia - bendita internet - e agora tem o que ler. Devia Portugal ter mais estruturas para que quem vem se sinta em casa. É uma casa portuguesa? Temos tradição de bem receber. De mimar e apoiar quem foi mal tratado. Mas pensamos em detalhes como sejam a manutenção de estruturas culturais apropriadas para que espíritos bons, doces e criativos se mantenham acesos?
Já sei dizer bom dia e adeus, grande e fofinho. Ela sabe falar uma amálgama de português, escolhendo as expressões com carinho e de forma apropriada, usando muitas, muitas metáforas, poeta desenraízada, poeta sem gramática, alma toda no que diz, no que agradece sempre por mais um dia, por parar e tomar um café e fumar um cigarro e conversar sobre tudo e nada.
Poesia de leste, vinda nos olhos claros de uma mulher - mais uma - igual a nós, portuguesas, que tem de diferente apenas a alma doce, doce, que fala poesia em russo traduzida por gestos e palavras empilhadas com arte, descuidadas, deixando cair expressões belíssimas que tanto tempo demorariam a combinar a quem licenciado na língua de Camões as procurasse.
Poesia russa. Para aprender, mesmo em português. Recomenda-se.

sábado, 17 de setembro de 2005

A natureza do título

"Segundo a minha maneira de pensar, um título é parte integral de uma história. Posso explicar? Em minha opinião, a essência de um bom título pesa mais depois de termos completado a história do que antes de a começarmos. Se isso não for verdade, então ou a história ou o título ou ambas as coisas, são triviais. Porque não? Uma história realmente boa não responde a tudo. No fim de tudo, a vida não é uma resposta para tudo. Resam ambiguidades. Resta o espaço para a dúvida."

Isaac Asimov, Mensagens do Futuro

quinta-feira, 1 de setembro de 2005

Crianças em férias

Todos somos crianças quando estamos em férias. O que prejudica - ou pode prejudicar - seriamente as crianças que levamos de férias connosco. Compatibilizar férias de grandes e de pequenos, por muito que se pregue, com um sorriso politicamente correcto, não é fácil. Não é fácil porque estamos cansados e queremos dormir. Porque a disponibilidade que temos para trabalho e família e nós e trabalho e reuniões da escola e festas e cinemas e levar e buscar todo, todo o ano precisa de uma pausa.
Sou partidária de férias conjuntas - adoro ir de férias com o meu filho - após um descanso necessário ao corpo e ao espírito. Para que não se vejam por essas praias fora pais com cara de sacrifício a empurrar os filhos de um para outro. Para que se possam usufruir e partilhar algumas experiências engraçadas e memoráveis.
Se dedicarmos as férias familiares aos que estão a começar a sua vida e a sua exploração do mundo. Se soubermos ter a disposição, o sorriso fácil e natural, a tolerância, será tanto mais fácil a união de esforços quando se regressar à rotina.
E não há nada mais divertido que experimentar fazer bodyboard...

terça-feira, 23 de agosto de 2005

Violinos no Telhado

Quem viu o filme com Topol, lembra-se da associação do violinista no telhado à forma como muitas vezes temos que levar a vida: tentar extrair dela as mais harmoniosas harmonias enquanto tentamos manter o equilíbrio. A geração que ronda os 40 - a minha, portanto - está entre buracos de telhas, com um lado da casa a arder e do outro, no chão, há neve fria.
Temos pais para cuidar e acarinhar. Temos filhos para educar. Temos relações para equilibrar e para nos equilibrarem. Temos trabalhos que nos consomem e nos apaixonam. Temos estudos e progressos e leituras em atraso.
O tempo não chega para uma vida levada a sério.
Em conversa com alguém muito meu amigo, defendi que devíamos ser interventivos e lutadores, enquanto ouvia que devíamos entrar em equilíbrio e nos deixar levar. Não concordo. O equilíbrio, como a felicidade, como sempre me disse a minha Mãe, está dentro de nós. Interessa saber o que fazemos com eles. Porque num final, haja ou não outras vidas, haja ou não uma consciência do caminho percorrido, claro que faz toda a diferença saber que mudámos o mundo.
Gosto de ser transparente, mas não insípida. Gosto de lutar pelo que quero, embora por vezes tenha que procurar o que realmente quero e os objectivos e prioridades se vão alterando obviamente ao longo de cada momento, de cada passo.
Sim, para mim é claro que devemos ser intervenientes e não mais um grupo de anestesiados-pseudo-felizes-e-socialmente-correctos. Deixar a corrente puxar o nosso barco ao sabor de sonho algum não é viver. Viver é agarrar os remos e tentar, nos limites da nossa força e dos nossos condicionalismos e das nossas falhas, atingir objectivos concretos e úteis.
Ser inteiro.

terça-feira, 9 de agosto de 2005

Amigos

É bom acordar e saber que uma mão nos vai limpar as lágrimas, pôr um penso na alma. Tantas vezes já recebi essa graça que há uma fé que cresce em cada queda, em cada viragem. A fé no ser humano bem formado, afectivo, generoso, no amigo, no amor, na paixão, seja no que for que nos acontece de bom em cada esquina e nos ensina a crescer de forma positiva e autónoma, sem prepotências tolas nem orgulhos.
O elo que liga os seres humanos e desenvolve o que nos apraz chamar de civilização, modelo primeiro de criatividade e de identificação do ser pensante, é esse mesmo que sai do coração de um para o outro, que dá a mão, que ama, que beija, que não pensa em si mas em quem tem presente no seu acto de formar.
Tenho muitos amigos que todos os dias me formam, ensinam e defendem. Por todos eles nutro uma paixão irracional porque são seres excelentes, excepcionais, moldes únicos. De todos e de cada um deles depende a minha paz, a minha estabilidade. Todos, ao contrário do que se diz, são insubstituíveis, no papel que quiserem e lhes for dado tomar em cada dia na vida desta pessoa que conhecem e amam, que não tem vergonha de ser e dar e crescer.

sexta-feira, 22 de julho de 2005

O Recreio

Na minha Alma há um balouço
Que está sempre a balouçar -
Balouço à beira de um poço,
Bem difícil de montar...

- E um menino de bibe
Sobre ele sempre a brincar...

Se a corda se parte um dia
(E já vai estando esgarçada),
Era uma vez a folia:
Morre a criança afogada...

- Cá por mim não mudo a corda,
Seria grande estopada...

Se o indez morre, deixá-lo...
Mais vale morrer de bibe
Que de casaca... Deixá-lo
Balouçar-se enquanto vive...

- Mudar a corda era fácil...
Tal ideia nunca tive...

Mário de Sá-Carneiro
Paris, Outubro de 1915

Tudo ou Nada

Nada passa por nós sem nos marcar, como água numa areia de infância ou numa pedra adulta e irregular. O tempo, essa linha, traz e leva pessoas na nossa vida, como um vento louco. Todas elas nos fazem o que somos. Todas nos dão recordações boas ou menos boas. Todas são especiais, à sua maneira.
Um amigo especial ensinou-me a viver um dia de cada vez. Cada dia é uma vida, e devemos encará-lo com toda a seriedade de ser o primeiro e o último.
Li há pouco tempo que a única coisa que podemos mudar é o dia de hoje, visto que o de ontem já acabou e o de amanhã ainda não existe.
Pessoas que marcam porque nos amam, porque nos odeiam, porque nos impressionam. Gestos de afectividade ou incompreensão.
Mês de Julho, calor nos corpos e nas almas. A minha cabeça cheia de ideias, de sonhos, de desejos. Uma criança a meu lado que brinca. Um sobrinho que faz anos. Um pai convalescente. Tudo em circuito que não pode parar, que quase nos sufoca a alma, tantas coisas, tão pouco tempo, tanta água a marcar a que afinal deve ser areia e não rocha porque me sinto doce.
Hoje, estou feliz.

terça-feira, 14 de junho de 2005

O Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquina
sem esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava, porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certezade que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade

segunda-feira, 30 de maio de 2005

A Concha

A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fechada de marés, a sonhos e a lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.

Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.

E telhadosa de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta pelo vento, as salas frias.

A minha casa... Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.

Vitorino Nemésio

Ser

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis, Odes

segunda-feira, 18 de abril de 2005

Tempo

Tempo não nos basta para as idas e vindas, contactos e trocas. Manter amizades, projectos, vida pessoal e profissional. Tempo falta-nos para as leituras que queremos iniciar e para que saboreamos terapeuticamente de quando em quando. Tempo escasseia para amar e para viver, para olhar para dentro de nós. para partilhar.
Muitas actividades que desenvolvo têm como base paixões, interesses, em áreas diversas. Todas elas, porque paixões são, requerem um investimento emocional fortíssimo. São por mim levadas a sério e vivenciadas como parte de mim. Com distância e com afectividade. É aqui que o tempo é inimigo.
Difícil será chegarmos à sabedoria de gerações anteriores, em que o tempo só era senhor no último respirar. Em que as crianças cresciam no seio das famílias e os colos e histórias da noite eram partilhadas com serenidade em ambiente são. Difícil será encararmos o trabalho como mais que subsistência, levarmos aprendizagens e acrescer conhecimentos, alargar os nossos horizontes de saber e de aspirar a saber.
Lewis Carroll criou o coelho apressado, que uma Alice despreocupada segue, aborrecida, sobrando-lhe tempo para se alienar de uma leitura maçuda que a irmã fazia. Passámos de curiosas Alices a apressados Coelhos Brancos.
***
Hoje parei o meu dia e o meu tempo para conversar - verbo que vai sendo raro e que é conotado com "perder tempo", sobretudo em dias de trabalho. Conversei, pois, com um homem raro e bom, que me falou das suas obras recentes e da sua mãe de 92 anos. Que me transmitiu que trabalhava por objectivos e não tinha vergonha de seguir a pureza dos instintos e das afectividades. Esse homem ensina a sua arte e partilha-a de forma humilde com pessoas portadoras de deficiências marcantes. Área em que o tempo de comunicar se situa noutra dimensão. Aprendi hoje que o tempo não é ditador. Não nos empoeira os olhos nem os desejos. Não nos angustia se não deixarmos. Basta que a disciplina, a vontade, a persistência e a calma prevaleçam sobre o ritmo que nos é imposto.
***
Vidas alternativas que se encontram com vidas diferentes. Aprendizagens feitas em tempos mortos entre tempos de corrida e no fim do dia constato que tive ainda tempo para sobre o dito escrever. Porque pode sempre acontecer que alguém leia e creia em mim e queira tentar seguir amanhã o meridiano que o bom senso ditar. Ou pelo menos, servirá para não me esquecer de um dia maior que os outros. Com mais sol.

quarta-feira, 2 de março de 2005

Apoteose do Absurdo

"Sigo às vezes em mim , imparcialmente, essas coisas deliciosas e absurdas que eu não posso ver, porque são ilógicas à vista - pontes sem donde nem para onde, estradas sem princípio nem fim, paisagens invertidas - o absurdo, o ilógico, o contraditório, tudo quanto nos desliga e nos afasta do real e do seu séquito disforme de pensamentos práticos e sentimentos humanos e desejos de acção útil e profíqua. O absurdo salva de chegar a pesar de tédio aquele estado de alma que começa por se sentir a doce fúria de sonhar"
Bernardo Soares, O Livro do Desassossego.

Cidadãos de pleno direito

"Citizen Kane", se bem se recordam, foi um notável filme de Orson Wells, em que se assumiu a filosofia da simplicidade. "O Mundo a Seus Pés", na tradução, trata da história pessoal e profissional de um americano, terminando no fecho de um ciclo de carência de identidade e infância. Rosebud, o seu trenó, o seu único brinquedo de um início de vida atribulado e pobre, passou a simbologia do sonho, do revivalismo, da afectividade, contrariando os valores vivenciados na longa metragem pelo magnata, de poder, de prepotência, de ambição desmedida.
Cidadãos do Mundo, únicos, todos nós. Todos tivémos um início mais ou menos afectivo, mais ou menos fácil, com ou sem carências, com ou sem dificuldades pessoais. Na nossa primeira infância reside o segredo da nossa estrutura psicológica, muitas vezes da nossa força.

Trabalho e contacto diariamente com cidadãos de pleno direito, esses sim com o mundo a seus pés, não por prepotência ou ambição, mas por esforço e dignidade. Um dos temas recorrentes que pretendo expôr aqui é a premência da união entre homens nascidos em circunstâncias várias. Porque não somos iguais. Porque somos realmente diferentes e aí reside a nossa individualidade. Só que quando as diferenças são demasiado marcantes e as dificuldades de fluir pela vida, pelo crescimento, pela escolaridade, pela vida pessoal, profissional, ultrapassam as tradicionais, os homens tornam-se incómodos. A diferença não tem uma medida mas todos nos esquecemos disso.

Daí que pense, pessoalmente, que a ambição de ter o mundo a nossos pés, se equilibrada com a afecividade dos nossos trenós de criança, é legítima, e para me permitir fazer esta leitura de um argumento tão comentado apenas posso ambicionar ter tanto equilíbrio e tanta sensatez nos meus julgamentos como os de pessoas que ultrapassaram o tal nível de diferenças socialmente aceitável.

Essas diferenças sentem-se nos comportamentos irreverentes e marcantes. Em movimentos artísticos ou políticos extremos. Em situações de confronto com um eu que podíamos ser e não fomos ou não desejamos ser. E aqui estou a falar de deficiência e direitos humanos.

Homens e Mulheres não são iguais. Uma pessoa que vê utiliza recursos sensoriais diferentes de uma pessoa que não vê. Uma pessoa que não ouve ou uma pessoa com mobilidade reduzida ou com compromisso oral ou cognitivo tem necessariamente que disponibilizar e exercitar recursos do seu organismo que lhe impoem muitas vezes um ritmo de vida diverso.

Incomodar pela diferença? Ser ignorado pela diferença? Conheço pessoas que sentem na pele estes estigmas, diariamente. Legislação existe para abreviar separações sociais a todos os níveis. Mas a verdade é que as nossas escolas continuam a recusar crianças cegas, deficientes motoras, portadoras de trissomia 21. Criticamos os exageros do nazismo e as práticas que ao longo da história marcaram o tratamento especial dado a pessoas com necessidades, não especiais, porque especiais somos todos, mas diferentes da maior rodela do queijo das estatísticas. Mas continuamos a pactuar com os princípios.

Nas escolas, nos empregos, na vida familiar e emocional de cada um de nós, empenhemo-nos em ir ao encontro da diferença marcada em nós próprios. Não nos isolemos num castelo de contos de fadas, em que tudo é standard, fazendo alegremente parte de uma aldeia global que descaracteriza o ser humano e a civilização ocidental actual. Sejamos realmente humanos, indo ao encontro das nossas carências, das nossas dificuldades, das nossas necessidades especiais, assumindo as nossas forças e as nossas fraquezas, o nosso estatuto pessoal e único. Só assim aprenderemos a respeitar o nosso próximo, sejam quais forem as suas características, capacidades, gostos, ideologias. Só assim sairemos de egoístas torres de marfim e nos aproximaremos da pureza dos sonhos de infância, em que a afectividade é um valor que se bebe e se respira, em que reencontramos os nosso trenós, aqueles que nos arrastam encosta acima, pela neve branca, ao encontro dos nossos amigos, cidadãos do mundo.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2005

Rodin e Rilke: (re)criar a inocência

Encontrei hoje, ao procurar bibliografia de trabalho, uma pequena brochura com desenhos de Rodin e textos de Rainer Maria Rilke. Aconselho vivamente a sua leitura. Primeiro, porque se trata de um hino à criatividade e à liberdade de expressão. Igualmente, pela relação fantástica mestre / pupilo que hoje é escarnecida e envergonhada, embaraçada nas clientelas académicas, artísticas ou políticas dos nossos dias pequeninos e comezinhos. Rodin de 64 anos, no auge da sua criatividade, trabalhou com o jovem poeta durante cerca de um ano. Os seus desenhos eróticos são um elogio à beleza do corpo humano e à sensibilidade e sensualidade. Em simultâneo expressam uma inocência tão grande que Rilke produz, por eles inspirado, textos fabulosos sobre a pureza do amor, sobre a magnificência de um acto institucionalizado, preocupante, que deve ser libertado para a sua critiavidade, para a sua dignidade de acto único no encontro do ser humano enquanto criador e objecto de dedicação e inspiração.
***
O Centro Cultural de Belém é ainda dos poucos redutos de Lisboa com uma função hipnótica de descanso, quando se procura a abstracção, quem sabe a concentração, a inspiração, o repouso, no meio de um dia atribulado. Estava frio no Jardim das Oliveiras. Procurei o frio e a solidão, possuída pelo livro belo que me encontrara e descansei no meio dos pardais que brincavam com os meus pensamentos soltos, puxando-os para histórias de infância.
***
Dias há, no nosso urgente meio urbano, na nossa apressada corrida para nenhures, em que são verdadeiras reanimações físicas e emocionais, estas procuras de locais escondidos, de ventres da cidade. Todos os temos. Ninguém colide com ninguém, nestas dimensões paralelas, Avalons escondidos no meio de sons de comboios que passam, de aviões que despenham o nosso desprezo por quem corre mais que o pensamento e a seriedade com que tudo deve ser levado. Conhecem-se pessoas bonitas. Esbarra-se em alguém, outro alguém sorri, crianças gritam, casais abraçam-se no frio apressado do fim da tarde. Todos procuramos algo, todos transparentes.
***
Bonito, o livro, a tarde, o frio. Momentos de Paixão. "De flores e animais e raparigas nasceu uma essência do ser e um extremo de amor e sofrimento e suspensão e bem-aventurança, e basta um aceno de azul.."

sábado, 26 de fevereiro de 2005

Uma Faca nos Dentes

"Falámos tanto ou tão pouco que de repente o silêncio que se fez foi essa patada no peito de que guardamos a marca quando agora choramos, quando estendemos as mãos carregadas de dedos mortos, sonhámos tanto que mais de uma vez tivemos de matar, que de uma vez nos estoiraram os olhos sob a pólvora das lágrimas e as tuas mãos voaram estilhaçadas."

António José Forte

Nos pés do mundo

Porque um amigo me mandou hoje um email com o seu novo blog, porque li recentemente um artigo sobre a força desta nova forma de manifesto, poque o mundo precisa de ser sacudido, cada vez mais, cada vez mais oportunamente, incisivamente.

Porque gosto de escrever e de ler, porque comunicar é urgente, para que o mundo não seja algo que queiramos a nossos pés mas nos consciencialize da nossa real dimensão aos pés de um mundo que urge mudar.

Porque me quero encontrar e encontrar pessoas que persigam as boas utopias, as vindas da alma, as que revolucionam a vida e os homens, mesmo com coragem e medo e força e cansaço.

Porque gostava de fazer algo diferente, algo em que acredito, como sonhar em conjunto.

Porque os nossos porquês são muito mais que nossos.