sexta-feira, 12 de junho de 2020

O maior pecado é o esquecimento.

Levantam-se os espíritos incultos e censura-se - censura-se! - novamente, queimemos livros, apedrejemos estátuas - acto inconsequente - inceneremos as bobines de filmes antigos, proibamos - proibamos - as crianças de ler o Padre António Vieira só porque sim. Nem sabem porque combatem, perdoai-lhes muito, muito. Combatem para o lado errado. Combatam para que nunca mais se elejam ditadores baratos e incultos como Trump e Bolsonaro. Combatam para que os salários sejam para lá da identidade de género ou raça ou ideologia. Combatam por injustiças e mortes e fomes e guerras. Não promovam uma. Sobretudo não promovam uma guerra inconsequente pelos motivos errados. Deitem abaixo outras estátuas, desadorem outros deuses. Eduquem os vossos filhos, seja qual for a sua cor. O essencial é mesmo invisível para os olhos. O essencial é o respeito e esse está, por estes dias, esquecido. A História não se apaga, estuda-se!

terça-feira, 2 de junho de 2020

D'outras escritas.

"Be patient toward all that is unsolved in your heart and try to love the questions themselves, like locked rooms and like books that are now written in a very foreign tongue." Rainer Maria Rilke

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Na Cidade, das Serras.

Vinda de fim-de-semana de campo para a cidade, regresso do canto dos pássaros e dos cheiros da terra para uma cápsula de segurança chamada Lisboa e Vale do Tejo em que os números de contágio teimam em subir e a segurança é sempre pouca. Da descontração e do brincar, dos cães e gatos e pavões e árvores e chão amarelo de terra, dos passeios e da paz, do calor e das melgas, de tudo o que o campo tem. Para uma asséptica casa de cidade cheia de livros e sabedorias e estatísticas e preocupações e prazos. Junho não será um mês fácil. Hoje é dia da Criança e porém choramos ainda um adulto. As políticas que desamparem os homens, deixem-nos ser quem somos. E porém, quem votou? Estados Unidos, Brasil... quem votou? De regresso à cidade, cheia de malícias e, no dia da Criança, a insistir em crescer devagar, só o suficiente para me defender a mim e aos meus. O mundo não é a Terra do Nunca e mesmo aí havia piratas...

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Pontos de exclamação!

Durante estes dias dormentes e assustadores, pessoas se manifestaram de formas diversas, partilhando os seus dons e a sua afectividade. Deles destaco Brian May, astrofísico e guitarrista dos Queen e Massimo Bottura, chef estrelado da Osteria Franciscana, em Modena, considerados os melhores dos melhores das suas áreas. Com tanta simplicidade nos abriram as suas casas e ensinaram respectivamente como tocar e como cozinhar, diariamente, durante todo o confinamento. Com paciência, com calma, sem superioridades, com a humildade de quem está a passar pelo mesmo receio, pelos mesmos problemas, com a dignidade de quem faz parte daquela parcela da humanidade que nos faz sentir orgulhosos.
A eles, o meu obrigado. Não que tenha tido muito tempo para ver os directos muitas vezes, mas as que vi fizeram-me sentir em casa de amigos. Pessoas generosas em tempos de crise. 
Como dois sobrinhos meus que partilharam os seus dotes a tocar piano. Como o meu filho que tocou violoncelo, piano e cantou para a mãe nos dias em que lhe pedi, para além daqueles em que ele sentiu disso necessidade emocional. 
A arte, meus amigos, é mesmo um alimento e faz de nós melhores pessoas e melhores humanos. É partilha, é generosidade, é dádiva. Aos artistas que nos ajudaram a sentir melhor durante estes tempos que ainda não acabaram, o meu muito obrigada.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Caderno e lápis

À espera da aula, frente ao computador, auscultadores atentos aos sinais dos outros, microfone atento aos meus sinais, câmara com a luz acesa como num estúdio caseiro de produções alienadas. Caderno e lápis porque gosto de tirar apontamentos à mão, a relação do corpo com a escrita é diversa e a minha mantém-se tradicional, embora utilize muito o computador para trabalhar, 90% da minha informação está em formato digital, mantenho o gosto pela escrita à mão. Noto que perco a capacidade de manter uma letra legível, noto que as minhas mãos perderam a coreografia dos tempos de escola, dos tempos de secundário, dos tempos de faculdade, mesmo, porque só aí se deu a transição de meios. 
Em tempos de distancamento, a aprendizagem e a renovação de conhecimentos não pode, não deve, parar. Por isso daqui a menos de 20 minutos terei a minha aula de duas aulas semanais. Uma formação em cartografia histórica que muito me interessa e muito me é útil para um projecto que estou a iniciar.
Depois, a semana começou... contabilidades, arquivo, digitalizações, arquivo de periódicos do início do século XX, três livros teóricos por acabar de ler. Muitas coisas que não cabem num dia mas que felizmente cabem numa casa com boa vontade para continuar a trabalhar e a estudar (indissociáveis) em segurança. 
Boa semana, fiquem em casa, saúde!

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Dificuldades.

É difícil manter rotinas, é difícil ser consistente nas dificuldades, disciplinarmo-nos quando a vida lá fora parece tão impossível de disciplinar, tão imprevisível, mesmo quando se lembra de deixar de ser vida. 
O sono desregrado, levanto-me cedo e começo a rotinar a minha vida possível, organizo trabalho, terei uma aula dentro em pouco, logo terei Tai Chi, o dia passará a correr, estas semanas têm passado a correr, o contacto pouco, só com as pessoas da casa, entregas, lojas de primeira necessidade, pouco mais.
Três projectos de investigação são agora a minha linha de trabalho: um ainda muito de início, outro destinado a publicação e o terceiro de longo termo. Para além disso três seminários que são projectos de conjunto e que continuam, indiferentes às paredes que os contêm. 
Farei anos um pouco mais tarde neste mês de Maria. Confinada, confinados, aguardando a subida de contágios de Maio, não quero que o meu mês seja mais um mês de luto, no dia dos meus anos fará um mês da morte do Brian. Pôr as caras nas estatísticas, humanizar, talvez seja a única forma de consciencializar tudo isto que nos rodeia, tudo o que nos isola e sufoca, por muito privilegiados que sejamos nas condições em que o estamos a passar em Portugal. Alguns disparates à parte, de forma geral tudo tem sido relativamente bem orientado. No total,  poucas vítimas - poucas? - desta pandemia que nos retorna a tempos medievais de isolamento e silêncio. 
Falamos sempre baixo quando não queremos que a vida nos oiça.

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Eficiência.

Tornamo-nos eficientes. Levantar cedo, compras, lavar embalagens, guardar, lavar sacos de compras, mudar de roupa, desinfectar, fazer almoço, lavar a casa, mudar as camas, almoçar e de repente já estamos ao computador a trabalhar. Não há distrações. Eficientes, sobrevivemos ao isolamento. Duas encomendas entregues hoje, recorremos mais a entregas do exterior. Cada cumprimento de um estranho é uma alegria, como se fosse tudo mentira, como se estivéssemos num mundo dito normal, se alguma vez terá sido normal o nosso mundo ou talvez - talvez - vivêssemos todos uma enorme mentira, um gigantesco conto de fadas em que, benevolentes, acreditássemos só para sobreviver mentalmente ao mundo injusto e terrível em que a poluição, a pobreza, as tiranias, os maus-tratos, invadem casas, países. E agora? Parece que tudo em suspenso mas certamente não. Podemos sem dúvida rezar para que tudo passe e para que tudo melhore, para que todos melhoremos. Mas para sobreviver vamos ter que partir do princípio que o mundo não é cor-de-rosa, nunca foi e talvez, depois desta experiência, nunca mais o seja aos nossos olhos que já viram, de longe, demais.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

As músicas da quarentena.

Dou por mim a procurar músicas extremamente emocionais, sejam pela sua beleza própria sejam pelas recordações específicas que cada uma delas me traz ao coração, eu que me comovo tão pouco. Mas em tempos de sacrifício e de perda de entes queridos e de receios diversos as músicas que ouço fazem-me sentir mais pessoa, menos fria para encarar estes dias em que temos que ser fortes. Podemos, com a música certa, ser mais doces. Seja clássica, seja coral, talvez procure mais vozes neste momento, por uma questão de empatia. Muitas do grupo do meu falecido amigo Brian, os Alexandria Harmonizers. E algumas dele mesmo. Mas sim, vozes, de forma geral. 
Sou filha dos anos 60 afinal.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Mais uma semana...

Será a última semana de confinamento? Será a última de estado de emergência? Não me parece. Não estamos seguros. Aliás, a única coisa certa em nosso torno é a insegurança. 
Rotinamos a nossa nova vida em torno das pessoas possíveis e das tarefas exequíveis, as tecnologias abençoam o restante. Todos nos adaptamos, quase todos, alguns negam, recusam, fogem, criticam.
Mas a verdade é que as estatísticas têm cara, para todos nós, para alguns, para mim, as estatísticas têm cara e as possibilidades têm muito mais caras a começar pela minha. 
Em casa estou segura (?). Estou infantilmente convencida que sim. Desejo que tudo passe, desejo que todos regressem (nem todos regressarão).
Céu azul com nuvens brancas, dia escuro. Já tive uma aula, já almocei, já estou a começar a trabalhar. Ainda não se sabem os números de hoje em Portugal. 
Que todos tenhamos forças para sobreviver com saúde física e mental a este - ainda longo - caminho.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Mais uma semana.

Mais uma semana em casa. Vou ter uma aula dentro de minutos. Está nublado, o tempo da minha janela. Hoje faz uma semana que morreu o Brian. Tomei o meu pequeno almoço sem vontade, mas soube-me bem o café. Lembro-me do café em quantidade que o Brian gostava de tomar de manhã e sorrio. 
Ontem falei ao telefone com muitos amigos. Há que manter as pessoas preciosas ao nosso lado, mesmo que à distância. E recomeçar, todos os dias, com persistência. 
Também, hoje de manhã, encomendei duas máscaras de pano. Vamos ver como me entendo com elas.
Que manhã tão longa e ainda a começar. Boa semana a todos, com saúde!

domingo, 19 de abril de 2020

Quando o sol aquece na varanda.

Como hoje, por entre nuvens, algumas escuras, o sol aqueceu mesmo forte na minha varanda e na minha sala, inundadas de algum optimismo e de alguma esperança, sobretudo depois de ter perdido um amigo há menos de uma semana. 
O sol volta sempre, a História faz-se de altos e baixos, estamos num baixo. Haja bom senso e poucos festejos despropositados. A sensatez e a humildade perante as famílias enlutadas por todo o mundo deviam fazer ponderar certas atitudes. Uma coisa é um discurso ou uma memória, outra é uma celebração.
O sol volta sempre. Sempre haverá pessoas ponderadas e outras que nem por isso, faz parte do género humano, essa diversidade de características, atitudes e opções. Quem sou eu para dizer quem tem razão? Mas tenho a liberdade e o meu bocadinho de sol para ter uma opinião.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Brian Miller, my friend...

Oh , Danny Boy the pipes, the pipes are calling
From glen to glen, and down the mountain side
The summer's gone, and all the roses falling
It's you, it's you must go and I must bide.

But come ye back when summer's in the meadow
Or when the valley's hushed and white with snow
It's I'll be here in sunshine or in shadow
[Live version:] And I'll be here in sunshine or in shadow
Oh Danny boy, oh Danny boy, I love you so.

But when ye come, and all the flow'rs are dying
If I am dead, as dead I well may be
You'll come and find the place where I am lying
And kneel and say an ave there for me.

And I shall hear, though soft you tread above me
And all my grave will warmer, sweeter be
For you will bend and tell me that you love me
And I shall sleep in peace until you come to me.


segunda-feira, 13 de abril de 2020

Dúvidas e rotinas

Em tempos de crise, dúvidas cercam-nos acerca de tudo. Da saúde, do tempo, do futuro, da nossa própria segurança. Do outro lado do muro estão as rotinas que nos seguram. Levantar, arranjar, rotinas de ginástica, trabalhar. São as rotinas que nos seguram, na realidade, porque com elas inventamos um mundo nosso dentro do mundo que até funciona, que até é normal. 

Nesse mundo não temos amigos doentes nem temos medo de ter a nossa família doente, nem aquela pequena tosse de ontem nos afecta porque obviamente que nos engasgámos e todas as compras chegam limpas e desinfectadas do supermercado. 

Nesse mundo não há sombras nem medos porque tudo é como era ou tudo é como seria se fosse como o queremos. Como o sonhamos. Como o fazemos em futuro próximo. Como o imaginamos e tornamos - esperançosos - em real.

sábado, 11 de abril de 2020

À espera.

Sábado de Aleluia e nós todos à espera do Milagre. De todos os Milagres. De um Deus que nos salve, de um mundo que se redima, de pessoas mais compassivas. De doentes que recuperem. De mortos que deixem nas famílias boas memórias e uma dor que vá passando... 
Todos à espera que o ano de 2020 seja uma Páscoa. Que haja, no fim de tudo, sorrisos. Porque as lutas que se travam honestas e frontais contra os inimigos imprevisíveis têm direito a finais felizes. A História não é uma reta. Há momentos duros mas há momentos felizes, oh, claro que há e vai voltar a haver momentos de riso. 
Não somos inconscientes. Escrevo enquanto tenho um amigo a lutar pela vida num ventilador que não sei se lhe vai ser útil para ficar aqui neste mundo. Mas acredito que pode ficar, sim, mais um tempo junto dos seus amigos. E que no fim haverá abraços cansados mas abraços apesar de tudo.
Um ano de Páscoa. Como ontem no Vaticano em que os heróis foram médicos, enfermeiros, voluntários, em que os testemunhos foram todos ligados à realidade prisional. Não somos presos a tantas coisas, aos nossos defeitos, aos nossos egoísmos, não os gostaríamos de mudar para qualidades? Não somos tantas vezes apressados a julgar, mesmo agora quando vemos os telejornais e julgamos e criticamos com tanta fluidez quem está em cargos de responsabilidade e certamente dor que nem de perto imaginamos?
Uma longa Páscoa. Talvez a mais significativa das nossas vidas.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

O que nos faz sorrir.

Pensar nesta chuva de cidade também no campo, fechar os olhos e ver as árvores húmidas, o chão cheio de gotas com reflexos, arco-íris por todo o lado e os cães a cheirar a molhado e a brincar, felizes. 
Fazer um bolo ou uma refeição mais apurada para partilhar com os mais próximos, os próximos, os que agora dividem os dias sem partição connosco, os dias inteiros e um bolo de mel, os dias interinhos e um bacalhau com natas, os dias todos do mundo e uns bifes. Que sorte temos em poder cuidar uns dos outros!
Meditar nas coisas boas das nossas vidas, acreditar - saber - que tudo o que é pesadelo passa um dia quando acordarmos e podermos voltar à rua e abraçar de novo família e amigos. Claro que os problemas do mundo - os ódios, a fome, as guerras, a poluição - continuarão por cá, mas talvez, talvez, estejamos todos mais alertas para os valores verdadeiros e mais dispostos a lutar com vontade por eles.
Acreditar muito que cada dia é uma dádiva num momento em que tantas pessoas estão doentes, em que tantas pessoas morrem, em que tantas famílias choram os seus. Acreditar que no nosso pequenino mundo das casas em que nos encontramos confinados, o importante é mesmo saber que as pessoas que amamos estão bem e que estamos a contribuir para o seu bem estar e segurança. Estamos a ser parte da solução. E há solução, provavelmente não a dos homens, mas alguma maior que o nosso entendimento que virá a seu tempo como tudo o que é grande e bom e digno de ser acreditado.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Em tons de cinza

Em tons de cinza estes dias que correm ágeis por entre novas rotinas e novos (des)caminhos. Em meios tons, paleta desbotada, uma tristeza mendicante, uma ânsia de ficar aqui, quente e seguro, no canto da casa. Lá fora todas as ameaças e todas as tormentas, como numa intempéride inesperada e arrebatadora. De um estado a outro se passa num segundo. O medo é poderoso e a infância regressa toda de repente por cima de cinquenta anos, desbaratando o vivido pelo viver discreto e calado dos nossos dias de hoje. É cedo. Dia de compras. Logo mais chegarão "os números". Poderemos ver com algum tom de habituação quantos compatriotas nossos morreram de ontem para hoje. Poderemos até achar que foi um bom resultado. Em que nos estamos a tornar? Que vírus é este que nos atinge no coração, mesmo que cheios de intenções e orações mas afinal "um bom resultado 6%". É péssimo, é cruel, estão famílias num luto que nem lhes é permitido. E se fosse a nossa? Tenho um amigo ventilado nos Estados Unidos. Cada dia uma luta. Cada dia mais um dia de sobrevivência. Como uma peregrinação quaresmal em busca de paz. Porque me parece que no fim de tudo isto será apenas o que quereremos, caídos do cansaço da nossa impotência.

terça-feira, 7 de abril de 2020

A liberdade, sim, a liberdade!


A liberdade, sim, a liberdade!
A verdadeira liberdade!
Pensar sem desejos nem convicções.
Ser dono de si mesmo sem influência de romances!
Existir sem Freud nem aeroplanos,
Sem cabarets, nem na alma, sem velocidades, nem no cansaço!
A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais
A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida!
Como o luar quando as nuvens abrem
A grande liberdade cristã da minha infância que rezava
Estende de repente sobre a terra inteira o seu manto de prata para mim...
A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente,
A noção jurídica da alma dos outros como humana,
A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez
Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma
E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo!
Passos todos passinhos de criança...
Sorriso da velha bondosa...
Apertar da mão do amigo [sério?]...
Que vida que tem sido a minha!
Quanto tempo de espera no apeadeiro!
Quanto viver pintado em impresso da vida!
Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade,
Dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote
Da casa do campo da minha velha infância...
Eu bebia e ele chiava,
Eu era fresco e ele era fresco,
E como eu não tinha nada que me ralasse, era livre.
Que é do púcaro e da inocência?
Que é de quem eu deveria ter sido?
E salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?

Álvaro de Campos

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Silêncios

É hora do meu chá e páro um pouco. O verde rodeia a minha casa e ao fundo, o mar. Não sei quando irei ver o mar mais de perto. Nas minhas mãos, o mundo sob a forma de telemóvel, contendo sorrisos e palavras de todos os meus amigos e família. Temos falado bastante nestas semanas de separação (de facto o isolamento significa separaçã dos outros). Temos necessidade de comunicar.
O dia não está apetecível para passeios e mesmo assim gostaria de dar uma voltinha. Páscoa estranha esta, ainda há pouco contactava com um amigo que me dizia sentir-se num filme, assim eu me sinto.
Acordar, organizar o dia de trabalho, fazer o chá das 10h., regressar à escrita, ao final da manhã preparar a refeição da família, depois arrumar tudo com as suas ajudas. Da parte da tarde, livros para ler ou recensear, ou mais trabalho de escrita. Para me distrair uma série enquanto faço bicicleta.
Claro que nem todos os dias correm assim tão disciplinados, há dias em que me sinto desmotivada, há dias em que estou preocupada e não caibo na pele...
O serão implica o jantar em família e um filme ou série depois das notícias. Deito-me cedo, adormeço tarde. 
Pelo meio, silêncios, como agora em que os meus dedos escrevem e eu em  silêncio sem dizer nada, a deixá-los falarem sózinhos, e eu tão quieta, no meu canto, a olhar.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Cabelos sem vento.

Hoje cortei o cabelo em casa. Uma amiga também já o fez. Os filhos dela raparam o cabelo para crescer durante a querentena. Cá em casa hesita-se, cresce a barba, corta-se a barba? Encomenda-se uma máquina de cortar cabelo?
São pequenos detalhes do dia-a-dia que nos fazem perceber que tudo está mal. Tudo está ao contrário. Não é um País das Maravilhas onde caímos, mas um poço fundo com muita dor e muita tristeza, com muito risco, de onde muitas famílias irão sair enlutadas e muitos serviços e negócios arruinados. Nunca tínhamos pensado que os barbeiros/cabeleireiros pudessem estar todos fechados em Portugal. Nunca tínhamos pensado viver uma pandemia. Nunca tínhamos pensado na ausência da escola física. Nunca tínhamos pensado ficar tantos dias todo o dia com a nossa família nuclear, algo que de nos queixávamos - o pouco tempo, as crianças educadas pelos outrso - e que agora nos cai como uma bomba no colo. Encarar os muito próximos, em pijama, de longos cabelos desacertados, ar aborrecido, corpo inerte pela falta de andar.
Só com muito amor poderemos passear de mãos dadas com os cabelos ao vento num dia do futuro. Não sabemos ainda quando. Mas poderemos. Essa vontade é enorme, impaciente e consome-nos. Mas voltaremos a abraçar família e amigos. Por agora só os muito próximos, os mesmo-ao-lado. Se formos fortes encontraremos de longe todos os abraços nesses abraços de perto. E o caminhar livre na rua com os cabelos (cortados) ao vento chegará também, a seu tempo, com segurança, na direcção de um mar acolhedor, de um campo de flores, de uma esplanada cheia de amigos, de um mundo retomado devagarinho como uma criança assustada que teremos, ainda, que levar ao colo durante algum tempo.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Mergulhar num novo mês...

Tudo muda hoje, mudou a hora, vai mudar a quarentena, vai chegar a Páscoa, vamos continuar a mudar de vida todos os dias. Todos os dias acordamos e não saímos para o trabalho, desinfectamos tudo, como num filme ouvimos as mensagens das câmaras sobre a necessidade de ficar em casa, como num filme, vemos os nossos cabelos crescer, os nossos trabalhos atrasar, a nossa paciência para gráficos e estatísticas esgotar, saturados, cansados. Porém gratos por estarmos bem.
Lá fora chove - também isso mudou, o tempo, não o da nossa espera, o tempo do mundo, a natureza que chora por toda esta loucura - e chega-me uma luz límpida por meio das nuvens. Faço nova lista de compras de mercearia e farmácia, as únicas saídas de casa, os únicos contactos com o mundo exterior, as novidades que chegam para mudar uma casa cada vez mais imóvel com a passagem dos dias. Como se nunca tivéssemos vivido outra vida. E isso é o mais assustador de tudo, a potência de adaptação do homem à condição do medo.

terça-feira, 31 de março de 2020

Em linha

Estamos mais do que nunca em linha. Falamos por telefone, por whatsapp, por messenger. Trabalhamos com o Zoom ou outras plataformas. No youtube assistimos a concertos ou peças de teatro. Reactivamos os nossos antigos blogs. Falamos por Skype. 
Estou em casa há 22 dias. Não abraço os meus irmãos nem os meus sobrinhos nem os meus amigos há 22 dias. Ontem fiz uma aula de Tai Chi online. Vai passar a ser regular, é bom porque não perdemos a prática e exercitamos o corpo dormente de estar sentado ou de andar pequenas distâncias, mesmo que se faça alguma ginástica básica ou se ande um pouco de bicicleta.
É com sofreguidão que adoptamos estas sugestões, que nos atiramos de cabeça, como se nos convidassem para fazer paraquedismo. É uma aventura nova dentro das paredes de casa e quase - quase - nos esquecemos de onde estamos.
Começo o dia por programar e orientar o que vai ser o almoço, a refeição em que falamos mais enquanto ouvimos os relatórios do dia sobre a pandemia. Antes e depois trabalhamos nos nossos computadores. O facto de sermos três adultos numa casa facilita porque avisamos se vamos ter video-chamadas de trabalho para não haver barulho. 
Há uma varanda com sol. Mesmo lá, o telemóvel leva a tal linha e, a olhar para o mar cada dia mais distante, falo com os meus amigos e familiares, consulto o twitter, respondo a emails. Ou desligo tudo e leio. Mas não é fácil porque o som das mensagens a entrar pelas páginas adentro e nós a ceder. É bom e um grande privilégio poder estar em linha. Mas é exigente emocionalmente.

segunda-feira, 30 de março de 2020

E chega a nós...

De uma ou outra forma, a estatística chega perto de nós. Depois de dois sustos próximos, estou muito preocupada com um amigo dos Estados Unidos que está em cuidados intensivos e ventilado desde ontem ao final do dia. Ler relatórios, ouvir estatísticas, ouvir conferências de imprensa, ver um  telejornal por dia... Mesmo a desgraça se torna rotina até nos bater à porta e acordar. Os Estados Unidos estão com uma política absurda e criminosa em relação aos cuidados que o seu povo merece numa situação como esta. Sem sistema de saúde alargado, mais deveriam ser os cuidados com quem não tem possibilidades de pagar testes ou assistência. Há uma moral e uma ética que passam os livros de Filosofia e deviam - deviam - ser aplicadas, sobretudo por quem tem mais responsabilidade, sobretudo pelos governantes, porque é neles, que, bem ou mal, as crises se centralizam. 
Felizmente o meu amigo tem possibilidades, seguro, assistência, apoio. Felizmente no hospital em que está a ser assistido havia ventilador disponível. Felizmente, felizmente. Mas como será a sua luta contra este vírus assassino? Ainda ontem, já no hospital, recebi dele a mensagem para ter cuidado que nunca se tinha sentido tão mal na vida. Dores, falta de ar até ao insuportável. É um homem relativamente novo, saudável tanto quanto eu saiba. Cego. 
Ontem adormeci tardíssimo a trocar mensagens de Singapura para Londres para Paris para Taiwan para Lisboa. Todos os do nosso grupo de investigação assustadíssimos e preocupadíssimos com ele. O mundo a abraçar-se de longe para tocar na esperança das suas melhoras. Ávidos de esperança.
Assim estamos, assim está o mundo. À espera de um milagre bom.

sábado, 28 de março de 2020

Expressar

Outro dia, estou em casa desde dia 9 de Março, portanto há 19 dias. Os picos dos meus dias são o reinventar de receitas para as muitas refeições que agora fazemos em família e que não podemos deixar que atinjam a saturação,mas a diversidade saudável. Outro ponto alto são os eventuais contactos com o exterior como as entregas. Hoje, aguardamos o Expresso. Todos nos levantámos cedo como para receber um parente que vem da Suíça e estamos em ânsias, com saudades mesmo, de um anónimo mensageiro de mota que nos venha entregar à porta da rua um jornal de que já temos a versão digital (visto que tivémos que o assinar) e de que iremos retirar logo o saco e as primeiras páginas de todos os cadernos, just on the safe side. 
Pensámos encomendar pão para a semana. Estamos muito entretidos a ver, como crianças num catálogo de brinquedos, as possíveis proveniências e modalidades de entrega. Talvez uns bolos para nos mimarmos em tempo de crise, embora eu tenha sempre bolos de fatia feitos em casa e façamos algumas vezes scones para o lanche. 
Pequenas diversões a um pânico real e a um tempo que não nos pertence. Só este pequeno espaço seguro e confortável, que se vai tornando mais confortável e psicologicamente seguro, da nossa casa.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Um chá e David Bowie

"There's a starman waiting in the sky
He'd like to come and meet us
But he thinks he'd blow our minds
There's a starman waiting in the sky
He's told us not to blow it
Cause he knows it's all worthwhile"

D. Bowie 

Faltam-me os sons da rua, o vento na cara, os carros, as vozes, o arredar de cadeiras na esplanada, o mar a bater nas rochas, os risos das crianças. Falta-me o espaço que tenho a mais em tempo. Um espaço onde pude explorar o mundo durante 53 anos - com algumas interrupções, sim, já tive alguns períodos de isolamento por saúde, mas nada como isto.
Quando algo falta procuramos um colo, neste caso um chá quente que me leve a navegar por um conforto psicológico que ajuda a um reencontro da paz. O segundo factor de paz é a música, hoje não estou a ouvir clássica, por agora estou a rever alguns clássicos como Bowie, the Doors, Pink Floyd, Queen, entre muitos outros, a reencontrar-me em letras antigas. Há que variar para o espírito se manter atento e não entorpecer em dias que são cada vez mais iguais, cada vez mais difíceis.
Cozinhar é algo que me distrai, assim como tratar da casa. Porque são tarefas a que normalmente não dedico tanto tempo e são mais físicas, implicam minúcia sem grande concentração.
Novas rotinas: quando sairão os números de hoje? Quando sairemos de casa amanhã?

quinta-feira, 26 de março de 2020

Às compras logo pela manhã...

Pela fresca, cá em casa só um é que sai, lista de compras feita por todos, começavam a apertar os iogurtes, os legumes, a fruta, o pão. O resto está controlado, apenas o essencial para depois nos mantermos por aqui. Desinfectar sacos de compras, lavar embalagens, arrumar, mudar roupa, arrumar, desinfectar de novo.
Todos os dias quatro refeições para três pessoas. Não podemos sair, há que manter a imaginação a funcionar - e a racionalidade - para que a criatividade se mantenha e também a saúde, com o sistema imunitário com o máximo de defesas possível.
Nunca escrevi tantas emails, tantas mensagens, nunca fiz tantas chamadas de vídeo, Deus abençoe os meus amigos e a minha família, nunca troquei tantas fotos e vídeos. Necessidade de estar junto. Necessidade de abraçar de longe. De saber os outros bem.
Somos um bicho comunitário. Não fomos mesmo feitos para viver sós.
Com os ingredientes que temos...

quarta-feira, 25 de março de 2020

Esperar/desesperar

As esperas são assim. Algo de nós parado ou com formigueiros de reagir. Algo de nós impaciente, ago de nós revoltado. Não é um descanso escolhido ou merecido, é um não-descanso forçado, confinado. Temos que nos enfrentar diariamente, e aos que partilham casa connosco. O espaço não será tão proximamente o nosso. Será o NOSSO plural. Temos que encontrar dentro de nós um ponto de fuga, a bem da nossa sanidade e da dos que nos rodeiam. Criar a harmonia interior para transmitir a paz aos outros. O/s outro/s nunca foi tão importante porque passou/passaram a ser as únicas pessoas do mundo com quem contactamos, a bem de todas as outras pessoas do mundo.
É estranho e belo sacrificarmo-nos pelos outros e por nós mesmos. Tem algo de dramático evidentemente mas muito de aprendizagem pessoal. É um caminho com um fim, com um fito, com um desejo.
Movidos pela força desse desejo que tudo fique bem, fazemos ginástica de manhã, tomamos um chá à janela, arejamos e arrumamos a casa, programamos as refeições do dia, sentamo-nos ao computador. O plural não desarreda de mim e estou a falar no singular. Passámos a ser tanto nós que o eu ficou muito pequenininho num canto, em reserva, para quando puder voltar a ser.

terça-feira, 24 de março de 2020

Uderzo, as mortes e as mortes.

Parece deveras estranho chorar-se alguém numa altura da nossa história em que centenas, milhares de mortes todos os dias. Porque destacar alguém em especial? Mas a verdade é que os nossos sentimentos e o nosso imaginário têm a sua sensibilidade própria e há pessoas que, pelo seu trabalho e criatividade, pelo seu génio, fazem parte de nós. 
Recito os álbuns de Astérix sem hesitação desde pequena. Foi dos primeiros motivos de riso em família. Foi uma proximidade com os meus irmãos, mais velhos que eu, porque li cedo e era algo que partilhávamos. Os meus pais, sobretudo o meu pai, adorava. Sou historiadora e apreciadora de banda desenhada desde cedo: são álbuns de excelente qualidade. Quem queira apreciar ainda melhor, leia no original. 
Lamento a morte de Uderzo como lamentei a de Goscinny como lamento a de tantos criativos que me construíram o pensar. Porque somos muito esculpidos pelo que lemos, e porque no que lemos nos refugiamos em tempos de guerra como o que agora vivemos. Uderzo estava a ajudar-me - vai continuar - a passar esta quarentena, a mim e a quantas mais pessoas pelo mundo? Merece, sim, as nossas lágrimas e as nossas orações, mesmo quando nós nas trincheiras, mesmo quando o mundo a desabar. Porque, apesar de tudo, calha sempre uma citação em latim dos piratas e sorrimos...

segunda-feira, 23 de março de 2020

Intervalo

Há sempre intervalos. Ontem foi dia de intervalo de escrita pessoal. Estamos a viver uma pandemia e há ocorrências, há sustos. Logo quando nos estávamos a habituar a estar em casa e a viver gentilmente uns com os outros veio um pedido de socorro de uma das nossas casas de apoio. Felizmente não foi nada de grave, felizmente nada que não se resolvesse, felizmente nada de COVID. Mas relembrou-nos como esta pandemia é cruel porque não podemosa abraçar as pessoas que amamos, porque não lhes podemos acudir directamente, porque os idosos são os mais frágeis perante esta situação e também são os mais frágeis psicologicamente. Certo que há uma camada de idades que continua a ir à rua e fala como se D. Quixote e que contra eles nada pode. Mas no fundo estão apavorados. Apavorados. Temos que apoiar os nossos idosos. Temos que os ligar às tecnologias, têm que falar connosco todos os dias, têm que nos ver, têm que receber emails com fotografias dos netos e de flores e de arco-íris e músicas bonitas. Temos que os lembrar que estamos aqui na mesma, mas de outra forma. E estamos aqui na mesma. Só um pouco mais cansados...

sábado, 21 de março de 2020

Primavera

"Primavera que Maio viu passar
Num bosque de bailados e segredos,
Embalando no anseio dos teus dedos
Aquela misteriosa maravilha
Que à transparência das paisagens brilha."

Sophia

Sophia tem sempre razão. Aquela misteriosa maravilha é a vida. Maio é onde queremos chegar com o seu brilho. Há sol na minha janela hoje (tantas janelas, tantas mais quanto os dias que estou encerrada). Nuvens, mas sol. Provavelmente a Primavera começou ontem, no dia oficial mas a minha Primavera começa hoje. Devo dizer que o Inverno é a minha estação favorita. Nada como um belo dia de Inverno com o céu muito azul e o frio na cara. Mas a Primavera é como uma criança que nos conquista. É o renovar, é, esperemos, a esperança de novas realidades.
Tenhamos esperança nesta Primavera que por aí chegou mascarada de nuvens, pode ser que nos traga dores de crescimento mas depois a serenidade.

sexta-feira, 20 de março de 2020

A Brave New World

Hoje de manhã tive uma entrega da Nespresso. As lojas fecharam rapidamente quando começou a contaminação e tivémos que fazer logo um pedido online para não correr o risco de ficar sem cafá, algo reconfortante e de que todos gostamos cá em casa.
É mesmo a Brave New World. Senti-me num filme de ficção científica. Um senhor de máscara no meu visor de segurança a anunciar uma entrega, eu a pedir paciência e um bocadinho de tempo para calçar os sapatos de rua, descer no elevador cheia de nojo da respiração dos outros ou de me encostar ao que quer que fosse. A senhora que limpa a escada estava justamente no rés-do-chão a desinfectar o outro elevador. "Bom dia". À porta, o rapaz das entregas, com ar de medo. Confirmou o nome e a encomenda, assinou ele por mim para eu não tocar em nada a não ser na caixa, foi embora. Entreguei o saco das cápsulas recicladas. 
Regressei ao elevador. A senhora que limpava o patamar agora, sorriu de novo. Tem, de certeza, mais de 60 anos. "Como está?" "Vamos andando o melhor que podemos!" Subi no elevador em que tinha descido. Cheguei a casa, tirei os sapatos à entrada, coloquei-os na varanda, retirei as caixas de café da caixa de cartão, dobrei-a e foi para o lixo logo. Lavei as mãos e passei-as por desinfectante. Ainda me sinto suja e como se tivesse saído de uma enorme aventura cheia de passos para completar. 
***
Fiz Qigong e estou a tomar um chá com mel. Aqui em casa há videoconferências numas divisões, pessoas na varanda a tomar café noutras. O gato, indiferente a tudo, está na minha cadeira. Teve que sair para eu escrever e agora dorme na sua cama, ao meu lado. Penso, sempre, em Itália e nos amigos que lá tenho. Dizem que começou a Primavera mas está um dia de chuva triste. Amanhã, pode ser que venha o sol.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Cinza

Dia cinzento, o primeiro do estado de emergência, Li no Twitter que estamos dedilhando a lira enquanto Roma arde. Não sei se é assim. Nero tinha a coragem dos inconscientes. Temo pelos que amo, temo por mim. De qualquer forma corre um vento ágil e suave nas minhas janelas e o meu gato mia irritado com as indecisões humanas. Tenho que ler, tenho que escrever, trenho que transcrever.
Ontem estive em contacto com muitos mais amigos, hoje logo de manhã a mesma coisa. O mundo na palma da mão, nunca carreguei o telefone tantas vezes. As pessoas estão unidas, querem o bem dos outros. Irrita-me bastante a inconsciência dos Trumps e dos Johnson deste mundo, expondo os seus povos ao que não merecem viver. Itália continua em drama. Esperemos que por cá o estado de emergência baixe a linha de crescimento do contágio. Esperemos que as pessoas cumpram. Não custa? Custa, sim, e eu estou habituada a trabalhar em casa. Claro que custa. Mas o preço é a vida, nossa e dos outros, Não há propriamente escolha. A ética não é só para ser teorizada, é para ser vivida.
Hoje é o dia do Pai e falta-me o meu.

quarta-feira, 18 de março de 2020

Amigos

Nos últimos dias tenho falado com muitos amigos. Ter muitos amigos é uma das melhores coisas que a vida nos pode trazer. Neste momento tenho saudades de todos eles, preocupação por todos eles. Estão bem, alguns em casa, alguns a trabalhar. Alguns são pessoas de risco face ao vírus, outros são pessoas mais saudáveis e num quadro de bastante possibilidade de passar bem por esta crise sanitária.
Hoje de manhã compras de carne, legumes, fruta, pão e iogurtes. Poucas pessoas - tem que se ir cedo - tudo calmo, poucas faltas (algumas... areia para gatos, sal grosso, detalhes pequenos em prateleiras que já andaram bem mais vazias).
Há que organizar o trabalho em casa, as refeições, revezar a vez na varanda com sol e vista para o mar, revezar a vez na bicicleta de exercício.
Tenho dois livros sem ser de trabalho em leitura, daqueles que achamos que nunca vamos ter tempo para ler. Tenho um trabalho de ponto de cruz a meio.
Tenho sono porque hoje foi a primeira noite em que não dormi bem. Adormeci tarde e sobressaltada e acordei cedo.
Hoje faz anos uma amiga que não irei abraçar.
O Presidente da República, à noite, falará ao país, apostaria que para impor o estado de emergência. Suponho que inevitável, desde que salve vidas será bem vindo.
Alguma ansiedade entrecortada pelas incoerências do meu gato e alguns telefonemas e mensagens amigas com humor.
Assim estamos. Há 15 dias em casa (eu).

terça-feira, 17 de março de 2020

Morte

Ontem morreu o primeiro Português infectado pelo Coronavírus. Em situações de epidemia/pandemia a morte salta em nosso torno, todos aguardávamos ansiosos, estranhamente ansiosos, se esta notícia viria, quando, inevitavelmente, viria. Todos, como nas antigas epidemias em que as pessoas se fechavam em cidades, em castelos, em isolamento, faziam a festa, criavam, escreviam, pintavam, fugiam de todas as maneiras ao inevitável da condição humana. Todos repetindo esta desesperada perseguição da mãe História, da morte sobre os humanos, seja sob que forma seja, mas mais assustadora, sempre, quando anunciada ao nosso lado. RIP.

segunda-feira, 16 de março de 2020

Quinze dias

Com coronavírus em Portugal. Comecei a manhã por fazer exercícios de Qigong. Depois a contabilidade da casa. Preparo agora o meu trabalho da faculdade, tenho uma revisão de um trabalho para fazer e um paper. Tenho transcrições para fazer e dados para começar a tratar.
Parou de chover. O meu gato requer a minha atenção. Há uma nota de aflição no ar, os historiadores sabem da imprevisibilidade das coisas. Apetecia-me sol, apetecia-me um campo com flores, apetecia-me respirar fundo e que tudo tivesse passado. Os idos de Março foram ontem, os cuidados continuam.

domingo, 15 de março de 2020

Domingo

Se quiser ir à Missa, que a veja online. Inédito. Acabo de falar com os meus antigos colegas de faculdade, chegando à conclusão que sim, os historiadores sabem - infelizmente - destas coisas. A questão de estarmos no campo ou pela cidade também veio à mesa da família. A salubridade e liberdade do campo é incomparávelmente mais apelativa mas os meus sogros moram ao nosso lado e precisam de apoio. Por outro lado não se sabe quando e como entraremos em quarentena - que me parece inevitável. Estão a sequenciar o genoma. Não há datas para nada, as famílias em casa, os frigoríficos envaziam à velocidade da luz, É preciso pensar na ração para os animais, na areia do gato. É preciso pensar em tudo mais vezes, com mais cuidado e com atenção aos inesperados. Sou de história, sei que eles acontecem. Prevenir. Vigiar (não punir nem ser punidos). Domingo. Vou procurar um filme para ver.

sábado, 14 de março de 2020

O COVID-19 e os regressos.

Quase quatro anos depois... Releio as minhas palavras de fecho do post anterior e chego à conclusão que não sabemos de nada dos nossos dias. Como está o mundo em 2020? Uma pandemia de Coronavírus tem meio mundo em quarentena e a outra metade para lá se encaminha. Muitos mortos, muitos infectados, alguns - felizmente - recuperados. Não há vacina. 
Para epidemias e pandemias não há como médicos para saber e historiadores para analisar. Muito trabalhámos sobre dados de tifo, cólera, febre amarela, pneumónica. Mas agora somos nós que fazemos parte dos dados. São as nossas famílias, os nossos amigos, o mundo cresceu, tornou-se global, falo quase diariamente com amigos de todo o mundo. 
Somos nós, sou eu, como tantos outros, que estou em quarentena porque sou de um grupo de risco (coração + hipertensão  + autoimune). 
Falamos ao telefone, usamos as redes sociais, ouvimos palavras que nos soam estranhas. Como se tivéssemos acordado num casulo, num corpo de outrém, noutro tempo e espaço.
Revemos as dispensas, os medicamentos, revemos as notícias dos que amamos, registamos pensamentos, voltamos à escrita infantil dos blogs, diários sem chave, idealistas. Trabalhamos com uma concentração estranha, falsa.
Só quero que isto acabe - sentimento global. Voltarei. Vou aqui à divisão do lado fazer o almoço.
Tão pequeno e tão grande o nosso mundo por estes dias. Que não nos falte a esperança.