segunda-feira, 30 de outubro de 2006

(quase) azul

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...

Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa, -- -------______-- --- Blue Rose, c. 1922
Um pouco mais de azul - e fora além. ------ ------------------------ ---- -- Piet Mondrian
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

-- Mário de Sá-Carneiro

Crianças 2


Criança, eu, riscos assumidos, amizades eternas, palavras doces e memórias, vinda de colo de mãe e pai, conservados agora em amor e cuidados (quem cresce ou vive sem amor?). Saltar a cerca, passar o rio, correr para me apanharem, vivemos todos em jogos de gato e rato. E gostamos. Tinha um triciclo - possivelmente no sotão de casa dos meus pais - com uma campaínha, que tocava desalmadamente como se ao fugir de casa para longíssimo - tanto quanto pudesse pedalar até me apanharem - estivesse no Marquês de Pombal em hora de ponta...
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Caía, claro, na velocidade da fuga, por caminhos irregulares, por caminhos marginais, não perdi essa vertente, não que os caminhos laterais sejam necessariamente os verdadeiros, mas são, sempre, uma tentação. E uma criança nunca resiste a uma tentação.
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Caía também ao trepar a árvores que então me pareciam altíssimas, perto do céu, onde gostava de ler os meus livros, pensar nos meus sonhos, ver o mundo ao contrário, e obviamente, esfolar os joelhos, como todas as crianças que se prezam. Entre a repreensão da roupa rasgada e o beijo no dói-dói da filha minorca, havia sempre um colo aguardado com ânsia.
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Não caibo já no meu triciclo, mesmo que passasse a comer menos ainda, seria difícil. Trepar às árvores, como saltar as cercas, ainda são aventuras que agora partilho com filhos e sobrinhos. Aventuras de pequeninos que acreditam que valem bem umas esfoladelas e um puxão de orelhas pela adrenalina de viver.
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Afinal, fugimos para nos encontrarmos connosco e com os nossos sorrisos. Talvez, se tentar, ainda consiga encaixar no triciclo, desenferrujar a campaínha e passar mesmo no Marquês de Pombal, manifestação pela infância, viva e não melancólica. Os historiadores têm destas coisas, gostam de viver a vida plena enquanto estudam os mortos. E têm, geralmente, bom sentido de humor...

domingo, 29 de outubro de 2006

Bom dia

Vincent Van Gogh, Weatfield with Rising Sun

sábado, 28 de outubro de 2006

Crianças 1

"Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido
Chegava o mês de Maio e era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido
E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer
Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer"

Ruy Belo

sexta-feira, 27 de outubro de 2006

O romance da raposa

"Havia três dias e três noites que a Salta-Pocinhas - raposeta matreira, fagueira, lambisqueira - corria os bosques, farejando, batendo mato, sem conseguir deitar a unha a outra caça além duns míseros gafanhotos, nem atinar com abrigo em que pudesse dormir um soninho descansado"


Uma das histórias da minha infância. Uma das minhas procuras de sempre (ficou-me até hoje, as nossas identidades são, muito mais que pensamos, construídas).

Faz falta imaginar? Continuo a correr, nestes dias por quem me levou pela mão até à toca de um sonho de uma raposa bem ruiva, de espírito mordaz e actuação eficiente. Sonhamos com o que nos falta? Com o imaginário que nos deram ou com o que nos fez falta? Terei lido histórias suficientes ao João, que as lê já sózinho? Nunca é demais ler aos nossos filhos. Nunca me leram de mais. Leitora compulsiva desde cedo, letras como asas, estrelinhas que saltam do pijama e dançam na luz cada vez mais fraca do candeeiro que apaga o dia por mãos que amamos e que são sempre protectoras. Estou-me a lembrar de todos os recentes amiguinhos que conheci na blogosfera, a Matilde, o JP, a Lobita, o Pedro, estou-me a lembrar (tantas vezes me lembro) de Soeiro Pereira Gomes e dos seus "homens que nunca foram meninos", na belíssima dedicatória de Esteiros. Estou-me a lembrar - tantas memórias hoje, outras tantas homenagens, do trabalho de António José Forte com as Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian.

(ontem ao passar na Avenida de Berna reparei, "eu que não me comovo por tudo e por nada" que o edifício do serviço de bibliotecas tinha sido demolido e estava lá um vago de páginas e de trabalhos de décadas da nossa cultura, com uma parede [muro] de riscas de cores, como a pedir perdão)

É sempre de recordar que a raposa Salta-Pocinhas recorria a diversos recursos para conseguir sobreviver num mundo que não lhe era meigo, o que nos devia alertar o suficiente para que as leituras para as raposinhas não sejam feitas sempre da mesma forma, os nossos sentidos e os nossos corpos não funcionam todos igualmente, a natureza não tira fotocópias, há que levar o sonho para perto dos corações. Ler com os olhos, com as mãos, com os ouvidos.

***

Voltando ao Romance da Raposa...

Faltam-me, pois, os míseros gafanhotos (bom, talvez não gafanhotos, necessariamente), mas um pequeno-almoço de jeito, um abrigo para onde possa fugir do mundo, e o soninho que seria bem-vindo, em tempo de guerra.

No entanto - segredo-vos - parece-me que encontrei a raposa ruiva, e isso basta-me, neste momento, para ser feliz...

terça-feira, 24 de outubro de 2006

Maiores que o pensamento, sempre!


É bom ter amigos. É bom orgulharmo-nos deles, talvez seja muito feminino, muito maternal. Mas a verdade é que tenho mesmo muito orgulho nos meus amigos, que são, realmente, a minha família. O Filipe é um deles. E a sua equipa familiar, casa (lar) onde é impossível não estarmos bem pelo ambiente de carinho e de acolhimento, em fases de lágrimas ou de sorrisos. Ombros, os nossos amigos. Lutas, solidariedades, entre pares vivemos (não entre primos...). Família.

Além de ser um amigo notável é um excelente professor. Falo com propriedade, tive aulas com ele, raros têm sido os professores que me têm aparecido com sabedoria e humildade destas, com as aulas preparadas deste modo, com o espírito aberto para partir à descoberta, incorporando o conceito de aprendizagem naturalmente e como um caminho a partilhar entre todos).

Também um excelente fotógrafo, vejam a exposição anunciada acima. E leiam, quando passarem pela BN (no nosso país continuam a ser ignoradas para edição as teses de qualidade): Nacionalismo e pictorialismo na fotografia portuguesa na 1a metade do século XX: o caso exemplar de Domingos Alvão / Filipe André Cordeiro de Figueiredo, Lisboa: 2000.

domingo, 22 de outubro de 2006

Estrela do mar


"Numa noite em que o céu tinha um brilho mais forte
e em que o sono parecia disposto a não vir
fui estender-me na praia sozinho ao relento
e ali longe do tempo acabei por dormir
Acordei com o toque suave de um beijo
e uma cara sardenta encheu-me o olhar
ainda meio a sonhar perguntei-lhe quem era
ela riu-se e disse baixinho: estrela do mar
Sou a estrela do mar
só a ele obedeço, só ele me conhece
só ele sabe quem sou no princípio e no fim
só a ele sou fiel e é ele quem me protege
quando alguém quer à força
ser dono de mim
Não sei se era maior o desejo ou o espanto
mas sei que por instantes deixei de pensar
uma chama invisível incendiou-me o peito
qualquer coisa impossível fez-me acreditar
Em silêncio trocámos segredos e abraços
inscrevemos no espeço um novo alfabeto
já passaram mil anos sobre o nosso encontro
mas mil anos são pouco ou nada para a estrela do mar"

Jorge Palma

sábado, 21 de outubro de 2006

Segunda fase

Há sempre uma fase de início e uma fase que se segue. Ontem começou uma segunda fase do meu trabalho de mestrado. Palavra de ordem: trabalho. Mas também outras, preciosas como pérolas, arremessadas em generosidade e ímpeto devido por quem anda, há mais tempo, em caminhos de escrita e de procura. Varandas sobre o mundo. Fases de incredulidade em que achamos que nunca vamos comseguir abrir a janela, numa infância em que há sempre uma mão maior que a nossa que chega ao fecha mais alto e nos permite, mais que ver, respirar o saber do mundo, superar o sonho e cheirar a manhã. (Re)nascer todos os dias, em perspectivas diferentes, todos os dias a janela é a nossa, mas a paisagem difere e enriquece, os nossos olhos também mudam, os sentidos iludem e acompanham-nos na viagem do conhecimento. Todos os dias da nossa vida, entramos numa segunda fase, porque temos todos um passado. Talvez não tão diferente como pensamos, que o indivíduo e a identidade são conceitos com as costas largas. Talvez não com tanta criatividade ou genialidade como, no fundo, gostaríamos (egoístas disfarçados, desesperados à procura de um sorriso ou de uma aprovação). Estamos sempre a escrever a mesma história, o mundo será assim tão diferente? A preto e branco, que as cores, essas, são nossas. Como num livro de colorir.

quinta-feira, 19 de outubro de 2006

Boris Vian

Reencontrado pela manhã, o que é certamente uma boa forma de começar o dia. Obrigado.

Procurado depois em saudade, saboreado ao café, aquele em que os princípes procuram açúcar no fundo. Eu não tenho sangue azul e não ponho açúcar no café, divergência de somenos importância, se o procuro na vida, não me levará certamente o autor a mal que não siga o conselho, ele, que não seguia conselhos de ninguém... "Le plus clair de mon temps, je le passe à l'obscurcir."

Que escrevia livros de grande beleza como:





E escrevia com sentido e com os sentidos:

"Mieux vaudrait apprendre à faire l'amour correctement que de s'abrutir sur un livre d'histoire."
Herbe rouge

"Sexuellement, c'est-à-dire avec mon âme."
L'écume des jours

terça-feira, 17 de outubro de 2006

Dias de sol, dias de chuva...

O Outono voltou em força, estação da beleza e das melancólicas rotinas. Pessoas chegam e partem da nossa vida, projectos têm princípio e fim. Outras e outros, felizmente, continuam. Trabalhar como escrever e viver: com o coração. Mesmo nas rotinas há chuva e sol, sol e chuva, baralhados pelo vento que nos leva rápido, parando-nos os sentidos, que somos gente e temos corpo. Pára-me uma palavra, uma frase inconsequente apanhada na rua como um riso, um beijo, um gesto, uma reflexão infantil ou adulta, um amigo que telefona porque está sem tempo para almoçar e eu também e por isso vamos parar o mundo e estar juntos. Alguém que telefona, como uma mãe. Uma troca rápida de emails. Lembro-me do meu aluno preferido que me tira o sono da manhã com a poesia do seu pensar fora do mundo dos grandes. O meu filho que toca violoncelo no quarto. Uma vizinha que chegou ao mesmo tempo carregada de compras e filhos e quem tira a chave primeiro, as crianças que largam gargalhadas como flores. Escrevo ao som do micro-ondas, equipamentos pós-modernos que fazem plim e nos tiram as mãos das teclas, escrevo com três dedos de cada mão, rápida, como os meus dias. Tenho orçamentos para acabar, uma reunião daqui a pouco, um livro para acabar de analisar. Estou cansada. É Outono, as aulas recomeçam na sexta-feira, apanharei chuva no caminho de Portalegre? Vou ver o atelier do Luís e ajudá-lo com as crianças. Vou à biblioteca da Escola. Vou beber o Alentejo todo, campos fora, rodas da carinha sujas e sorridentes. É Outono, já outros foram, no Outono passado quem era a Maria? Acabo este post depois de mais um telefonema. Quero almoçar amanhã, mesmo que seja sopa. Quero ir para o colo do meu pai. Quero os meus amigos todos vivos. Quero ser feliz no Outono (é quase um dever, por tão belo). Sorrio à verdadeira estação da renovação, a chuva não faz mal Ricardo, só o sol peca...

Sopa...


  • O meu almoço predilecto, quanto mais não seja porque o tempo escasseia e não vivo de rendimentos
  • uma expressão bem portuguesa (dar sopa)
  • um desastre quando se está cansado
  • uma arte, muitas vezes - recomenda-se a sopa de peixe da minha mãe - outras, nem por isso - as minhas são pela inspiração, tipo legumes aos molhos, como o alecrim, a bem da engorda do meu filho, criatura franzina
  • uma fumarada quando as mães têm teclados colados aos dedos e se esquecem delas ao lume
  • reconfortantes quando estamos cansados, é inverno e precisamos de algo que nos aqueça a alma
  • apelativas a estudos sociológicos - a "sopa dos pobres" no Estado Novo
  • enriquecedoras e vitaminadas no verão - adoro sopa fria, versão gaspacho de Almodovar
  • de mau contacto electrónico porém, convém evitar derrames, como com a generalidade dos líquidos... Enfim, nada que uma boa assistência técnica não resolva
  • e, claro, sopas de intervenção, todos começamos os nãos políticos como os da Mafaldinha...

domingo, 15 de outubro de 2006

Persistência



"I longed to arrest all beauty that came before me, and at length the longing has been satisfied. Its difficulty enhanced the value of the pursuit. I began with no knowledge of the art."

Julia Margaret Cameron (1815-1879)

B. C.


B.C. é criação de Johnny Hart, a história é para brincar aos anacronismos, as palavras para derrotar o tempo e a lógica. Agora que a Banda Desenhada é dissecada nas aulas de português e por esses manuais fora, continuemos a saltar do óbvio (Calvin e Mafalda tornaram-se clássicos infantis, algo que me confunde, e são desconstruídos de uma forma que até dói) e a apreciar o que é irreverente, simples e incisivo. Johnny Hart desenha e escreve com um jeito de obrigação arrastada de quem conta uma velha anedota. Desenha em linhas simples, e faz passagens bruscas, passando a complexidade, de um modo geral, para jogos de palavras. Comunicativo e surpreendente, nada óbvio, como o próprio humor, nas suas leituras mais profundas.

Feliz año!

Feliz año, este año, para ti, para todos
los hombres, y las tierras, Araucanía amada.
Entre tú y mi existencia hay esta noche nueva
que nos separa, y bosques y ríos y caminos.
Pero hacia ti, pequeña patria mía,
como un caballo oscuro mi corazón galopa:
entro por sus desiertos de pura geografía,
paso los valles verdes donde la uva acumula
sus verdes alcoholes, el mar de sus racimos.
Entro en tus pueblos de jardín cerrado,
blancos como camelias en el agrio
olor de tus bodegas, y penetro
como un madero al agua de los ríos que tiemblan
trepidando y cantando con labios desbordados.
Recuerdo, en los caminos, tal vez en este tiempo,
o más bien en otoño, sobre las casas dejan
las mazorcas doradas del maíz a secarse,
y cuántas veces fui como un niño arrobado
viendo el oro en los techos de los pobres.
Te abrazo, debo ahora
retornar a mi sitio escondido. Te abrazo
sin conocerte: dime quién eres, reconoces
mi voz en el coro de lo que está naciendo?
Entre todas las cosas que te rodean, oyes
mi voz, no sientes cómo te rodea mi acento
emanado como agua natural de la tierra?
Soy yo que abrazo toda la superficie dulce,
la cintura florida de mi patria y te llamo
para que hablemos cuando se apague la alegría
y entregarte esta hora como una flor cerrada.
Feliz año nuevo para mi patria en tinieblas.
Vamos juntos, está el mundo coronado de trigo,
el alto cielo corre deslizando y rompiendo
sus altas piedras puras contra la noche; apenas
se ha llenado la nueva copa con un minuto
que ha de juntarse al río del tiempo que nos lleva.
Este tiempo, esta copa, esta tierra son tuyos:
conquístalos y escucha cómo nace la aurora.

Pablo Neruda

sábado, 14 de outubro de 2006

Historiadores com imaginação

Clio


Cito para começar um que me marcou a licenciatura e parte das opções de vida, outro que tive a honra de ouvir ontem, tendo já lido e apreciado o saber que espalha com a dignidade e simplicidade dos sábios humildes: António Manuel Hespanha e António Viñao Frago.
Do primeiro, recebi uma mensagem de humanidade perante os alunos, de trabalho disciplinado (90% de suor e 10% de inspiração sempre), de preocupações sociais, de intervenção da história na história, do ontem no hoje, a história como construtora de caminhos, Penélope. Fazer e Desfazer a História, que já não se edita, foi uma grande revista. A sua tese As Vésperas do Leviathan, vale, obviamente, a pena. Como acompanhar os seus artigos na revista História.
Do segundo, recebi a mensagem, ontem, que um historiador sem imaginação e sem disciplina não é um historiador. E a grandeza de um trabalho apaixonado sobre cadernos escolares e as pessoas dentro desses cadernos: os que os fazem, os que os escrevem, os que os corrigem, os que os leem. Também os estudos sobre sistemas educativos: Sistemas educativos y espacios de poder: teorías, prácticas y usos de la descentralización en España.
Dois Antónios - será do nome? Tenho também um irmão e um sobrinho Antónios, os meus dois avós eram Antónios, tenho dois grande amigos António e António, iguais em nome, em amizade, também na formação em história.
Imaginação, paixão, trabalho. Quem tiver ouvidos para ouvir que ouça... e questione.

Panquecas


Enveredando pela culinária - que diga-se em abono da verdade, não é o meu forte - necessito de falar de panquecas.
É simples, basta ter uma casa de que várias pessoas têm a chave, outras tantas entrada franca, gerações e culturas diversas, ambiente acolhedor e informal. Todos devem sempre ter um sorriso e saber a localização dos copos, chávenas e máquina do café (no mínimo). Podem ser pequeninos e vir estudar para os testes da próxima semana, mesmo que a Maria goste mais de lhes contar histórias que tirar dúvidas de gramática (gosto ainda menos de regras que de cozinha...). Podem ser grandes que vêm buscar os pequeninos. Podem ser amigos que entraram para trabalhar. Podem ser pessoas que trazem dores e feridas e sorrisos e abraços e frigideiras o os ovos que faltavam e boa conversa de tudo e de nada. Podem ser onze de cada vez ou mais, trazer três cães consigo. Pessoas q.b., portanto, venham mais cinco. Podem falar russo, língua gestual portuguesa, português, podem até, só, sorrir. A mesa põe-se rapidamente porque cada pessoa sabe levar e trazer tudo para onde houver ou se criar o espaço. As panquecas, essas, só o Gustavinho, que eu não as sei virar e aquele rapaz tem dons inimagináveis!
Depois lê-se (História da Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar), fala-se, toma-se café ou leite conforme as idades, comem-se as ditas panquecas (pois, sim, devia ter começado por aí, leite, farinha, e ovos, vejam no google) com o que houver (compota da mãe Margarida, por exemplo). Claro, lá fica um bocado de gramática por estudar apesar de tudo, que interessam os determinantes perto das gargalhadas, cultura é também vivência de grupo, grupos abertos, tribos, sim, mas que se toquem em paz. Coexistir? Evidentemente (também podem entrar académicos, se gostarem o suficiente de panquecas e não se importarem de lavar os pratos no fim).
E é que não gosto mesmo de cozinha, mas por pessoas, digo-vos, sou apaixonada. Até porque "too much silence makes a mighty noise..." Shakespeare devia gostar, certamente, de panquecas.

quarta-feira, 11 de outubro de 2006

Aos molhos


"Publique a fama os vivas do Alecrim, que triunfou de tantos impossíveis."

António José da Silva, 1737.





Não há pois impossíveis, para mim ainda estão para vir, possíveis são sorrisos e cultura e crianças e gargalhadas fortes e muita música e muita qualidade. Hoje seria violenta com quem dissesse que não se trabalha em Portugal e nada se faz pela cultura. Que não os donos da nação, mas os seus filhos, os que hoje ensaiaram à porta aberta no D. Maria II, guerras de amor e de flores-de-cheiro, rebentos de mensagens a transmitir a (tantas, cada vez mais, mesmo em dias de aulas e trabalho) crianças, nós todos, afinal, a perseguir mensagens de quem sofreu e lutou e foi torturado pelas suas convicções e continuou a falar de amor e de batalhas válidas (as únicas) em que os bichos que somos se atraem e se consomem. Cansada, bato as últimas palmas hoje aos trabalhadores que também suam e são sérios, a cultura não é ópio nenhum, não havia por lá papoilas, nem merecem esse estigma, tanto vermelho merece bom tratamento e tanta fragilidade cuidados. Alecrim e Manjerona, mal-me-quer-bem-me-quer, brincar aos amores em tempo de guerra, pausar a vida para reverenciar um século XVIII que não era meigo, o XXI também não, mas em que o amor, o amor, merecia bem arriscar a vida, causa justa entre as mais justas. No fundo, a única, perdoem-me a simplicidade (ou a paixão).

segunda-feira, 9 de outubro de 2006

Trabalho

Tantas coisas dão trabalho, tantos trabalhos belos como paixões, cansativos, empenhados, alguns perdidos, a precisar de carinho e recuperação, não se perca o saber-fazer ou o saber-amar de cada engenho. Património perdido existe por este país fora, a precisar de mãos delicadas, respeito e saber. Restos de técnicas, instrumentos de trabalho caídos pelo chão, esquecidos em algum momento, abandonados, recuperada a fé por arqueólogos amadores, reconstruções de almas em curso. Persistentes, os historiadores portugueses? Com certeza. É preciso dar valor ao que valor tem, parafusos, pedras, papéis, azulejos que se reconstroem, painéis que se completam e retratam o trabalho que a vida dá, o carinho que custa levantar do chão o que está partido, perdido, desligado. Falar de novo com o passado longínquo ou recente para que tudo esteja no local próprio, cada peça do puzzle não interfira, o painel se reconstrua, na fábrica como no estar, valorizando sempre o que é importante. Não acredito no esquecimento. Antes a morte que tal sorte...

domingo, 8 de outubro de 2006

Boas gentes

Los muy tontos no saben lo que dicen
para decir tierra dicen madre
para decir madre dicen ternura
para decir ternura dicen entrega

Tienen tal confusion de sentimientos
que con toda razon
las buenas gentes que somos
les llamamos salvajes.

Gustavo Pereira in http://www.poesiasalvaje.com/

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Now you see it, now you don't...

O que nos deixam ver, o que olhamos, o que vemos.

Queremos ver?

Vejam, pois, o início de um projecto bem construído:

http://omeupaisvistodoceu.blogspot.com/

sábado, 7 de outubro de 2006

Volver - uma ordem


A vida é feita de regressos, felizmente a sorrisos, quando caminhamos o suficiente e acreditamos. Para os mais incrédulos, basta ir ao cinema (pode ser o Londres, sem pipocas). Por conselho amigo fui, e muito bem acompanhada, com outros amigos, um deles cinéfilo aprendiz. Para primeira aproximação a Almodovar nada melhor que Volver, mesmo com 12 anos, sobretudo com 12 anos (considerando o elenco).

Sorrir com a morte, encarar a diferença mínima que separa o real do imaginário - os parques eólicos, são moinhos, são moinhos, são gigantes, são gigantes, certo? - entrar no vermelho e no feminino, coisas de mulher, espanha e música, pensar em problemas eternos do género como o assédio e a violência, a morte, o assassínio, a justiça, a capacidade de resolver, basta um jeito na camisola, uma saia justa e um acertar de cabelo despenteado e sensual. Uma canção, uma lágrima, um abraço. Coisas de mulher.

Coisas de Almodovar, simplesmente fabuloso, senti neste filme o que sempre senti com Hitchcock: a leveza de nos deixarmos manipular docemente, inevitavelmente, supreendidos no sorriso de uma entrega amorosa, levados no que deve ser um bom filme, em que tudo entra como música e nos percorre e transporta de forma brilhante.

Com um sorriso no final, Volver, descendo ao sério. À realidade. Ao que queremos. Ao que desejamos que seja. À sanidade da cabeça de um génio que nos ajuda a compreender melhor o mundo louco e nos descomprime, num eterno ataque de nervos e subtilezas.

Diverte de forma séria. Recomenda-se, sem limite de idades, géneros ou sensibilidades.

sexta-feira, 6 de outubro de 2006

Evasão escolar da informática

...escreve a Comissão Europeia, 'as condições dos professores portugueses para usarem as TIC são muito baixas, com o país a ocupar a 22.ª posição'. A partir deste cenário, a comissão sugere a necessidade de adoptar políticas no sentido de aumentar o número de computadores por escola, melhorar a qualidade do equipamento e formar docentes para as TIC."

Anacronismos na educação? Computadores são lápis. Os alunos sabem, os professores não estão preparados, outras prioridades existem, escola sobrecarregada também por aqui.

E no entanto, seria importante que fosse uma questão já resolvida. Diminuiria as distâncias e seria uma boa ferramenta de trabalho, se bem conhecida e rentabilizada. Novas escritas e nova comunicação, times are changing, deve a escola acompanhar? Sem culpabilizações, apenas com vontade.

http://informaticajuridicaedireito.blogspot.com/2006/09/esocportugal-escolas-continuam-ter.html

quinta-feira, 5 de outubro de 2006

Das calamidades naturais...

Iluminura de 1047 de Comentário ao Apocalipse de São João por Beato de Liébana, de 776.

Os quatro cavaleiros do apocalipse... Guerra, Peste, Fome e Homem. Calamidades que passaram a naturais, porque naturalizadas aos nossos olhares. Também porque o homem naturalizou a sua prática. E convivemos com elas sadiamente, bem nutridos e vestidos, passando à frente em bilheteiras, não cheguemos depois de alguém para ver uma exposição no CCB (curricula intelectuais?).

Captar a dor e disseminá-la como num jardim zoológico de desumanidades, em que 45% de público se passeia com um ar de intelectualidade recém-adquirida, mesmo não reparando que não havia detalhes técnicos das espécies fotográficas na legendagem, sendo que outros 45% humanizavam a raça, soltando expressões e olhares agonizantes para mostrar a sensibilidade gratuita antes de atravessar a rua e ir comer um bife, com comentários técnicos sobre a insensibilidade dos nossos dias e a escassez do molho de manteiga. Os restantes 10% eventualmente foram à procura, os pobres, ínfima parcela da ciência do estado, correndo pela aprendizagem dos olhares, das palavras, da avaliação, da preparação desse mundo tão distante de nosso para a construção do nosso imaginário de horrores, que monstros somos ou em que monstros nos tornámos?

Claro, os nomes das rosas mortas, as patentes, as palavras, os números em que misturavam assassinos e assassinados - ainda há quem tenha olhos no coração para reparar nos detalhes, convém aprendermos com quem sabe ver.

Ter consciência. Da terrível manipulação e prepotência em que vivemos, da importância inegável que é divulgar a informação, da consciência e distância que dela devemos ter.

Ficam-me desta tarde os olhos, as mãos, as rugas, os olhares sobre olhares, as faltas, a fome, mote do texto de introdução, por sinal bem escrito, assumida, finalmente, como calamidade natural, a matar silenciosa e discreta por entre as mortes assinadas por mão humana. Nem sempre a dor tem uma arma do outro lado do espelho.

Claro, há sempre o amor e a esperança de um gesto eficiente e lúcido que se perde pelo futuro, mãos pequenas onde as grandes caíram, como uma culpa ou um castigo por estar vivo. É essa a minha escolha:

Yong Abu, por Yannis Kontos

Como seria?


_______2006 ___________ou ____________ 2006?


Na realidade, foi assim:

Benoliel, Joshua, A proclamação da República, o povo em frente à Câmara Municipal, 1910.

O futuro é feito de escolhas.

E depois acontece.

quarta-feira, 4 de outubro de 2006

Mio Cid

El ciego sol, la sed y la fatiga.
Por la terrible estepa castellana,
al destierro con doce de los suyos
-polvo, sudor y hierro-, el Cid cabalga.

M. Machado
Amado pelo povo, impetuoso, fruto da época e da circunstância, mas respeitador de crenças outras, injustiçado, Rodrigo Dias de Vivar, El Cid Campeador ou Mío Cid, como era carinhosamente apelidado pelos seus, lutou por tudo e todos a que jurou fidelidade, compriu os seus compromissos e acabou desterrado, ele que tantas terras conquistara, impedido de ser acolhido, ele que tanto acolhera e tolerara. Não nos sentimos todos assim quando partimos para a guerra? A história repete-se, claro, as circunstâncias são os homens que as fazem e com elas cercam outros homens, tirando-lhes opções, não necessariamente liberdade, que essa é maior que tudo e é interior. Lutar sempre, ser fiel a si mesmo e aos seus ideiais, viver por paixão, combater os inimigos por justiça, por si ou por outrém, mesmo que no final a rejeição seja o prémio, morrer com o sorriso plácido de ter cumprido, numa vida, uma tarefa. O Senhor de Valencia fez paz depois da guerra, acolheu e reconstruiu espaços de culto que se batiam, cultivou o encontro de diversidades (co-exist, onde é que eu já li isto?) e dinamizou saberes.
Aprende-se a viver com a história? Certamente. Cada dia nosso é uma contenda, espadas virtuais, grilhetas pesadas de rotinas, não somos livres de cavalgar em campo aberto, cometer actos heróicos e ficar com o nome em cantares, não estamos no século XII mas no XXI, fazer o quê? Avançar contra os nossos inimigos: aterrorizar com coragem a rotina, o tédio, a ignorância, a indiferença, a falta de profissionalismo, o facilitismo, a arrogância, a prepotência.
Cada dia se conquista mais um pouco de liberdade e de paz.
E é por nós que lutamos.

terça-feira, 3 de outubro de 2006

Flores Vermelhas


Que amor não me engana
Com a sua brandura
Se de antiga chama
Mal vive a amargura

Duma mancha negra
Duma pedra fria
Que amor não se entrega
Na noite vazia

E as vozes embarcam
Num silêncio aflito
Quanto mais se apartam
Mais se ouve o seu grito

Muito à flor das águas
Noite marinheira
Vem devagarinho
Para a minha beira

Em novas coutadas
Junto de uma hera
Nascem flores vermelhas
Pela Primavera

Assim tu souberas
Irmã cotovia
Dizer-me se esperas
O nascer do dia


José Afonso


Viagem


Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).

Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.

Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.


Miguel Torga - 1962

Sorrisos ao café


Bom dia aos que são pais, tios, avós, irmãos mais velhos e mais novos.

Bom dia aos que continuam saudavelmente adolescentes, a procurar identidades, a apaixonar-se pela vida, a sorrir (agora sim, há sol na minha janela), a VIVER, portanto.

Se puderem, não cresçam...

segunda-feira, 2 de outubro de 2006

Livre




“Sai de novo para o mundo.
Fechada à chave a humanidade janta.
Livre, vagabundo
dói-lhe um sorriso nos lábios, canta“.

António José Forte

domingo, 1 de outubro de 2006

Alba notanda lapillo


Marcar o dia com uma pedra branca, dizia-se em Roma. Como se os dias tivessem um único tom... No entanto, o branco é a soma de todas as cores. Talvez os Auguri fossem sábios, o voo da aves é, apesar de tudo, mais incerto. No final, o sorriso da lua que cresce é branco e faz matizes de luz no mar. É branca a alma de quem ama. São brancos os sonhos, e as nuvens que passam sem tirar o calor do sol.
Todas as cores numa só. Estranho mundo em que nos deixamos viver. Que pula e avança demasiado em sobressalto, tantas pedras no caminho (delas farei um castelo, dizia alguém sábio). As pedras juntas e as cores fazem o sonho e o branco, igual ao da espuma das ondas nos pés das crianças que têm, tantas vezes, medo de ir mais longe, esperando sempre uma mão que os segure na praia.
Horizonte onde deve, em objectivo, nunca em fim. Para que cada dia deseje o novo, e o branco das pedras todas onde caminhamos encontre um rumo, maré cheia, lua alta em reflexo de mãe.

Fora de tempo




Fora de tempo pôs-se o sol
e a lua fora de tempo também
fora de tempo nasceram dois
filhos da mesma mãe

Fora de tempo brotaram da terra
flores e espinhos também
fora de tempo ficaram longe
mais longe do que convém

Fora de tempo o que era quente
gelou até matar tudo
se um cantava no silêncio
fora de tempo ouviu-se um grito mudo

O tempo também se engana
nas casas onde mora
o mau tempo que faz dentro
nem sempre é tão bom de fora

Fora de tempo o que era água
teimou em ser areal
fora de tempo já se notava
que um vê bem e o outro mal

Fora de tempo tudo voltou
ao tempo que era atrás
e dentro do tempo um partiu mais cedo
e o outro ficou para amar


Luís Represas

Gente feliz com lágrimas 2

Abandonar a alma, as memórias, algumas raízes, partes de nós. Partir e deixar partir, construir sobre destroços e sentirmos sempre que fomos nós com uma fisga, miúdos, na sombra da infância que já foi.

Cada minuto deixa consigo o peso do que fazemos ou da inércia. Cada minuto de vida dói, sendo consciente. Sorrir com lágrimas, claro. Nas escolhas mais pequenas há sempre abandonos, a liberdade faz-se de opções, fica sempre algo fora das mãos pequeninas demais quando se agarra outro algo. Sentir é crescer, ser consciente, gerir, difícil é sentir e escolher com a pureza e impulsividade da infância, quando se luta pelo beijo da mãe entre cinco irmãos, quando se come o pão do lanche como um refugiado na cozinha que é, afinal, a mais protegida do mundo e só soubémos agora.

Ser feliz com lágrimas e ser feliz assim mesmo é saber gerir sentimentos sem magoar - só a nós, às vezes, só a nós... - situações, palavras, olhares, quereres, causas. Optar sem saber porquê, porque só respiramos naquele caminho por muito que doa. Morder como quem beija a vida que agarramos como se nunca mais houvesse um nascer do sol a saborear, cor de pêssego na madrugada fria.

Saber o que se quer, ou ter dúvidas, optar ou adiar - também é uma decisão.

Ser gente, feliz, com lágrimas de gente.

Gente feliz com lágrimas

"Aterrorizou-o um pouco a ideia de ficar ali, abandonado à presença de tantos estranhos. De dormir entre gente vinda de todas as terras do seu país, falando a mesma língua, mas gente que não entendera ainda uma única das suas frases e jamais entenderia uma ideia, uma palavra que fosse de cada uma das suas frases...
Para não ter de continuar a responder-lhes e a não ser compreendido, decidiu agarrar na almofada e comprimi-la à volta dos ouvidos. A sua vida ia assim mergulhar num subterrâneo sem fundo nem altura. Nunca mais ele voltaria a ser igual a si mesmo. Então, abriu muito os olhos. Queria conhecer e ao mesmo tempo despedir-se, decifrar e compreender as formas que se modelavam no escuro do dormitório. Amá-las com ódio e odiá-las com amor, talvez. Vendo-as, não estranhou o arrepio e por isso voltou a cerrar os olhos com força. Surpreendeu-o então o facto de o rosto da mãe se ter iluminado, como numa aparição. Havia uma auréola de santa, ou tão-só uma estrela que parecia palpitar no coração da noite. Levado por tal ilusão, tentou sorrir-lhe. Contudo o sorriso dela era também feito de sombra. Não pôde resistir às sombras. Um sorriso assim doía mais do que a dor de estar vivo. Valia talvez um pranto ou um riso convulso. Ao sentir a boca torcer-se e fazer apelo a esse pranto, Nuno procurou suster toda a emoção dentro de si. Prometeu que não ia nunca chorar sobre as lágrimas e sobre a terra da infância. E que ia ser feliz."

João de Melo, Gente Feliz com Lágrimas, 1989.