sábado, 18 de setembro de 2010

Outono

Prematuro, inesperado, com nuvens discretas e sistemáticas, polidas, rosas e brancas, acinzentando-se para o final em grandes gotas de chuva, lágrimas despejadas na terra seca do Verão de outras paragens. Molhou-me as memórias fotográficas de um ano corrido em aeroportos e lutas com folhas e ideias e ideias de folhas outras, ainda no porvir da escrita. Um vestido de flores pequeninas e um cego com dois dentes na Piazza Duomo. Uma Alice por idioma. Um nonsense sistemático em perseguição de qualquer coisa que se possa chamar uma vida. Pensar em coisas boas, pensar em coisas boas. O sorriso de gato na cara do meu filho sob a chuva de Edinburgo, uma noite a cair teimosamente na praia que não queríamos deixar às gaivotas, mais longe ainda, as bolas de berlim vendidas em folha de lata pela Lurdes e a mãe sempre a pentear-nos as ideias mais remotas e a sorrir com o sorriso que o pai adora. Outros finais de dia, outros Outonos. Vou visitar o seu sorriso persistente e encontrar nele o sol que hoje falta, o calor que começa a fugir pelas pastas da escola, a força de ter força mesmo quando as nuvens mais pequenas trazem tempestades ciclópicas.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Ensaio sobre a Cegueira

São só meninos como os outros e estão sentados em torno a uma tavola rectangular mas em que se não identificam cabeceiras, pois a luz está dentro e não fora dos seus olhos, e o essencial é omnipresente. "Ciao, Maria", enquanto o trabalho já começou, uma semana de formação para voltarem para casa com mais umas dicas tiflológicas para o seu ambiente, para a coordenação com os outros, com os pais, com os colegas, com o mundo. Consigo mesmos.

As abelhas feitas na véspera estavam colocadas minuciosamente nos hexágonos, cada um reconhecia o seu trabalho devagarinho, pelo tacto, pelo cheiro, pelo mapa de si mesmos, dos seus pensamentos, aprendendo a reconhecer a memória da coreogrfia dos gestos ou o que os crescidos chamam agora de neuroestetica.

Os gémeos tinham ido a uma consulta, estavam Stefi, France, Alle, Simo e Alfie, nomes de guerra, as tiflólogas de que não sei o nome e Paola, a mulher que dirige serviços trabalhando mais que todos os que orienta, a alma do Istituto dei Ciechi de Milão.

"Paola, Paola". O pão partido como na Última Ceia pintada numa parede algumas ruas ao lado. Os legumes identificados: tomate, basílico, orégãos, alho. Depois azeite e sal. Bruschetta. Fred acendeu o forno. Manejar facas sem ver quando se tem 6 anos pode ser complicado, mas mais belo ainda que o cozinhado final foi o convite feito à sala do lado, em que a compreensão do mundo era toda outra - não só pela visão, mas pela interiorização do conhecimento, diferente, própria, única, emocional, diversa, rica - para partilhar o resultado.

Hoje não fiquei para almoçar com os bambini de Paola, tive que sair mais cedo do Istituto porque o sal me cozinhava o pensamento de partir, de não os ver mais, só por dentro, só por dentro. Aprender a lidar com as distâncias. Uma senhora lia O Livro do Desassossego quando saí, com prefácio de Tabucchi. Cheguei a casa e liguei-me ao mundo da claridade, saí do buio doce e aconchegante. Fui aos correios para acordar. Voltei. Saramago morreu. Memorial do Convento, Ensaio sobre a Cegueira e, talvez, uma história de amor.

Hoje está sol depois da tempestade. É um dia igual aos outros. Pessoas que partem, pessoas que ficam. Dentro de nós. Luce su luce. Sempre.

sábado, 29 de maio de 2010

O não-lugar donde não chego a (v)ir.

Tempo escuro, a chuva que há-de vir acorda-me antes do seu próprio som. De partida sem chegada da paragem anterior, o que é um mês senão um conceito entre papéis e palavras ecoadas? Quatro semanas colada ao teclado a organizar os trabalhos de Hércules na altura em que fez uma tese e perdeu a aposta. 

Ou talvez não. As flores cor-de-rosa substituíram a casa caiada de branco-deste-lado do casal da quintinha. As construções amontoam-se e fazem a minha janela parecer apertada, falta-me a janela pequenina do avião. Quero ir à Micronésia como Oliver Sacks, estudar a ilha sem cor. Quero perceber os outros do seu ponto de vista mesmo quando a vista é uma ausência. 

Guardo uma camisola mais quente na mala. Carrego a máquina fotográfia, limpo os cartões, movimentos sem percepção, automáticos, como se a mala se fosse formando sózinha até eu estar lá dentro com quem queria levar. A minha mãe perguntou-me ontem se sobrava um cantinho para ela. Claro que sim, Mãe. Claro que sim.

segunda-feira, 15 de março de 2010

O tempo de nos entregarmos ao nosso próprio destino...


Alice, na versão de 1903, perseguida pelas cartas da Raínha.

Mad as a hatter... peso roupa e malas antes de partir, escolho livros, volto a pesar, escrevo uma Babel de emails e sigo o coelho mais atrasado do mundo em todas as suas tarefas.

Ainda não parei este ano - como é possível - para escrever um post sobre os meus dias e os meus sentires do mundo. A terra tremeu, chuvas caíram do céu, o sol voltou, estreou a Alice de Burton, uma Alice muito a tempo de agarrar os seus dias e a pedir que leiam os originais e o estudo póstumo senão metade do filme está perdido.

Volto ao início deste ano e penso como passou este inverno, como a minha mãe recuperou bem da sua perna partida, como os meus sobrinhos e o meu filho crescem, como agora deixei de ter bandos de pardalitos pela casa para ter homens e mulheres mais altos que eu. Penso nas minhas opções deste ano, no que me custou deixar um local que foi a minha casa durante tanto tempo e onde contactava com pessoas tão especiais todos os dias para estudar o passado que permitiu que as pessoas especiais chegassem hoje aos direitos e harmonizações sociais que desejavelmente teriam...

Conheci um galgo chamado Schicksal. Como é veloz e ágil e belo, o destino... Os nossos medos? Leiam Carroll... tudo não passa de um castelo de cartas!