quarta-feira, 27 de junho de 2007

O trabalho do furão no interior da capoeira

Gosto muito de ler e ultimamente não tenho encontrado o tempo nem o espírito para passar noites a encontrar as realidades certas nas páginas mais inesperadas (o inesperado pode ser o acúcar ou sal das nossas vidas). Sabem aqueles livros que temos na estante e havemos de ler amanhã? Foi ontem (aconselho vivamente o original porque o calão francês traduzido pode chocar e ser descontextualizado): num estado que chega a um sistema de saúde demasiado aperfeiçoado, têm que se criar sistemas de sorteio para eliminar os excessos populacionais. Ok, ficção científica de projecção, "chegaremos lá?" dirão os cépticos, respondo eu: "vamos arriscar?"

Fecho o texto de Jean-Pierre Andrevon e abro o ano de 2007. Parece que já lá estamos. Ano em que pessoas continuam a ser enviadas para guerras cujas causas desconhecem ou são criadas artificialmente e em que temos os pais da pátria a compensar e confortar os destroços de guerra em que fica quem fica, que quem parte não sabe de mais nada. Uma mão lava a outra. Não temos consciência da programação global e dos sistemas em que estamos espartilhados. Gestão aleatória de pessoas e, como no futebol, já se sabe quem vai ganhar e as lesões estão contabilizadas à partida.

Hoje li, portanto, que havia famílias em Espanha a chorar os seus filhos (vem-me à memória a expressão e título Vidas Desperdiçadas, de Zygmunt Baumann, bom de ler para acordar). Lembrei-me das previsões de 1984 e do Admirável Mundo Novo. Para quando o respeito pelos seres humanos enquanto indivíduos e não enquanto massas que se deslocam comandadas por mão anónima, que os ventos da natureza, esses, ninguém sabe para onde sopram?
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Citizen Mary de luto pelos que choram, pelos que ficam, por todos nós que se não levantarmos a voz a tempo deixaremos que a humanidade se torne uma massa informe para alguém brincar sem saber porquê ou, pior ainda, a rir-se enquanto o castelo de cartas cai.

O problema é que as cartas desta vez somos nós.


segunda-feira, 25 de junho de 2007

E também contava histórias...

"Todo este país é muito triste... Aquele onde eu vivi outrora era menos triste. Ao entardecer eu fiava, sentada à minha janela. A janela dava para o mar e às vezes havia uma ilha ao longe... olhava para o mar e esquecia-me de viver. Assim, sem o relógio, tudo é mais afastado e misterioso. A noite pertence mais a si própria. Quem sabe se nós poderíamos falar assim se soubéssemos a hora que é? Eu não sei contos nenhuns, mas isso não faz mal. Só viver é que faz mal. Cada gesto interrompe um sonho. As mãos não são verdadeiras nem reais. São mistérios que habitam na nossa vida. É sempre longe na minha alma. Talvez porque, quando criança, corri atrás das ondas à beira-mar. Levei a vida pela mão entre rochedos, maré-baixa, quando o mar parece ter cruzado as mãos sobre o peito e ter adormecido como uma estátua de anjo para que nunca mais ninguém olhasse. Eu vivi entre rochedos e espreitava o mar. A orla da minha saia era fresca e salgada batendo nas minhas pernas nuas. Eu era pequena e bárbara. Hoje tenho medo de ter sido. Na vida aquece ser pequeno. À beira-mar somos tristes quando sonhamos. Não podemos ser o que queremos ser, porque o que queremos ser queremo-lo sempre ter sido no passado.

Um dia que eu dei por mim recostada no cimo frio de um rochedo vi ao longe, como uma coisa que eu só pensasse em ver, a passagem vaga de uma vela. Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha longínqua. Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali. Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido: pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de país com outras espécies de paisagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janelas. Cada hora ele construía em sonho esta falsa pátria, e ele nunca deixava de sonhar, de dia à sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite, estendido na praia, de costas e não reparando nas estrelas. Durante anos e anos, dia a dia, o marinheiro erguia num sonho contínuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha uma pedra de sonho nesse edifício impossível. Breve ele ia tendo um país que já tantas vezes havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se já de ter passado ao longo de suas costas. Sabia de que cor soíam ser os crepúsculos numa baía do norte, e como era suave entrar, noite alta, e com a alma recostada no murmúrio da água que o navio abria, num grande porto do sul onde ele passara outrora, feliz talvez, das suas mocidades a suposta.

Não se deve falar demasiado. A vida espreita-nos sempre. Toda a hora é materna para os sonhos, mas é preciso não o saber. Ao princípio ele criou as paisagens, depois criou as cidades; criou depois as ruas e as travessas, uma a uma, cinzelando-as na matéria da sua alma - uma a uma as ruas, bairro a bairro, até às muralhas dos cais de onde ele criou depois os portos. Uma a uma as ruas, e a gente que as percorria e que olhava sobre elas das janelas. Passou a conhecer certa gente, como quem a reconhece apenas. Ia-lhes conhecendo as vidas passadas e as conversas, e tudo isto era como quem sonha apenas paisagens e as vai vendo. Depois viajava, recordando, através do país que criara. E assim foi construindo o seu passado. Breve tinha uma outra vida anterior. Tinha já, nessa nova pátria, um lugar onde nascera, os lugares onde passara a juventude, os portos onde embarcara. Ia tendo tido os companheiros da infância e depois os amigos e inimigos da sua idade viril. Tudo era diferente de como ele o tivera - nem o país, nem a gente, nem o seu passado próprio se pareciam com o que haviam sido. Um dia, que chovera muito, e o horizonte estava mais incerto, o marinheiro cansou-se de sonhar. Quis então recordar a sua pátria verdadeira, mas viu que não se lembrava de nada, que ela não existia para ele. Meninice de que se lembrasse, era a na sua pátria de sonho; adolescência que recordasse, era aquela que se criara. Toda a sua vida tinha sido a sua vida que sonhara. E ele viu que não podia ser que outra vida tivesse existido. E da vida que lhe parecia ter sonhado, tudo era real e tinha sido. Nem sequer podia sonhar outro passado, conceber que tivesse tido outro, como todos, um momento, podem crer.

Não sei como era o resto. Há resposta para alguma coisa?"

Fernando Pessoa. O Marinheiro (extractos)

sábado, 23 de junho de 2007

Gratia

Sinónimo de qualidade, criatividade, persistência, irreverência? Seja como for gostei. É sempre bom aprender e deliciarmo-nos com trabalhos novos. Vale a pena espreitar o percurso e as intervenções de Mr. Bansky, art gratia artis...

No País das Maravilhas

Obrigado ao Bairro do Amor, Querubim Peregrino e Und3rblog pela nomeação.

Não sei se há , mas há muitos espaços que admiro pela consistência, criatividade e dinâmica, por exemplo:

A Minha Matilde & Companhia
Cinema Paraíso
Citador
Grilices
Guilhermina Suggia
Momentos&Documentos
Pimenta Negra

A estes e aos outros blogs que trabalham por uma escrita livre, criativa, informativa e crítica, os meus parabéns. Já é uma maravilha o facto de termos possibilidade de expressão alternativa!

Silly Season!

(postal com praia, casal sentado na lua a olhar para a realidade com um telescópio)
"Cultivated leisure is the aim of man."
Oscar Wilde

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Quem?

(obrigado, und3rblog, pela memória)

quinta-feira, 21 de junho de 2007

Hoje, Citizen Dog

imagem: capa do livro c de cão, banda desenhada de mark o'hare
Não falo da banda desenhada. É que há amigos mesmo fiéis e cidadãos por mérito, mesmo de quatro patas. Infelizmente nem sempre se tem sensibilidade e conhecimentos para dar valor ao profissionalismo. É de justiça, depois de alguns anos de contacto e de alguns dias de trabalho mais intenso, que divulgue o que pelos visto não é do conhecimento comum.
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Pode-se obviamente ler o texto legal (legal mesmo, somos fantásticos a legislar, o pior é o resto...): DL 74/2007. E parar para pensar. Quantas vezes já passámos por entradas de locais de utilização pública em que à porta se encontra um simpático e desactualizado sinal de proibida a entrada de cães? Pois é. Muitas. Ora esse sinalinho tem uma parte debaixo que os normovisuais parecem não querer ver. E essa parte debaixo deve dizer: "excepto cães-guia ou cães de assistência, de acordo com o DL 74/2007". Porque estão a trabalhar e têm carteira profissional adequada que o comprova. Em situações extremas e para quem não saiba, pode-se chamar uma autoridade e multar a entidade que se recuse a admitir a sua entrada.
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Os cães-guia são criados e educados em
escolas próprias, como os cães de assistência. São fundamentais para a autonomia dos seus utentes. E são educados para estar em qualquer local, utilizar qualquer transporte, ser - sim - transparentes enquanto estão a trabalhar. Um cão-guia ou de assistência está preparado para nunca atacar um ser humano. Um cão-guia ou de assistência sabe que se tem a "farda" vestida tem um comportamente diferente de quando está em folga ou em repouso. Não é para dar bolachinhas nem para fazer festinhas nem para distrair: não são brinquedos. O que não quer dizer obviamente que não se possam fazer perguntas aos seus donos e pedir licença para lhes tocar. Mas deve-se mesmo pedir licença. Ou alguém faz festinhas num carro sem primeiro ter a delicadeza de se dirigir ao proprietário?
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Há situações em que deparo com faltas de (in)formação graves. Esta é uma delas. Quem tiver a paciência de ler estas linhas pense duas vezes antes de desrespeitar um percurso, um trabalho, uma dignidade. Porque há humanos menos profissionais...

domingo, 17 de junho de 2007

Vozes de burro...


... não mudam com o tempo.

Que tristeza.

À medida que o meu trabalho avançava ia consciencializando como os nomes podem ser preversos. Encontrei em debates do nosso Arquivo Histórico Parlamentar, no caso específico, nos diários das Cortes e Pares do Reino da Monarquia Constitucional uma estranha forma de utilização da palavra "cego", sempre usada em termos metafóricos, como o incapaz de ver a verdade, o óbvio, o mau leitor de mensagens, o deficiente na percepção de uma realidade. E ao pesquisar aquelas bases de dados eu procurava mesmo debates sobre cegos... Encontrei-os em temerosas designações e seus derivados (desvalidos da fortuna, privados de luz, infelizes que vivem nas trevas). Perdão? Cego é quem não tem a possibilidade de utilização do sentido da visão. Não é um insulto. É uma característica.

No meu trabalho e mesmo em debates recentes, deparei-me com o mesmo problema - também já dei com ele blogosfera fora. O problema de sensibilidades quanto à utilização de determinados termos, normalmente os tecnicamente correctos. E a utilização de caritativas metáforas para quem não as pede. Em troca da deturpação das designações de determinados estados, características ou patologias para discursos violentos e agressivos, fora de contexto e, a maior parte das vezes, inconsequentes.

Trabalhei na SIC durante um ano e conheci o jornalista Mário Crespo, de quem me ficou uma simpática impressão em termos humanos (trabalhar no stress e ser delicado com os colegas júniores é menos fácil e menos comum que se possa pensar). Enquanto jornalista não me sinto capaz de avaliar o seu percurso, mas enquanto cronista surpreendeu-me na semana passada. A sua crónica no Expresso é uma análise fabulosa da onda de discursos imprecisos e ofensivos que criaram raízes na nossa Assembleia da República, sem qualquer reparo. Mário Crespo reparou. Na utilização do termo "autista" vezes a mais e em contextos de agressão. Chama a atenção, e muito bem, para a necessidade de moderação dos discursos parlamentares em situações que deviam ser penalizáveis. Cito: "É monstruoso que representantes eleitos de uma nação, com repetida falta de humanidade, insistam em utilizar como um insulto um termo que é sinónimo de uma imensidade de tragédias pessoais. É extraordinário que sucessivas presidências da Assembleia da República não tenham ainda feito um reparo rectificador e uma vigorosa admoestação a quem ultraja toda uma comunidade que sofre, deixando que o insulto se banalize e passe a ser um mero descritor de falta de lucidez política."

Acrescenta: "Recomendo ao Parlamento inteiro uma visita ao site da Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo para começarem a dimensionar aquilo que têm estado a dizer."

Obrigado, cidadão Mário Crespo, pela chamada de atenção.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

E agora?


Quino, Que Presente tão Inapresentável...

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Sem dúvida!

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossivel,
Há sem duvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...
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Álvaro de Campos

terça-feira, 12 de junho de 2007

Já é tão amanhã!

coelhinho branco da história de Alice no País das Maravilhas, com relógio
E ninguém deu por nada, sol e sombra - desculpem o meu imaginário ribatejano - que se confundem quando os sapatos ficam esquecidos à meia-noite transparente de dia nenhum e os reencontros adiados em procuras. Também, para quê viver sempre dias iguais? As rotinas matam, uns dias libertamo-nos pela ilusão, outros pelo trabalho, as noites servem para escrever, para ler, para amar (para dormir?), para fumar mais um pouco de stress enquanto não for proibido o fruto de todos os males.
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Ponteiros apontam o que vemos ou que queremos, controlam ou deixam descontrolar. Estou atrasado (bem mais grave no feminino), muito atrasado, para viver. Como numa lengalenga de dissabores, as nossas vidas enchem-se de minutos cada vez mais apertados até nos encontrarmos libertos num abraço sem tempo, num espaço ficcionado (do lado de cá do muro, tudo parece mais rígido, contornemos).
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Em suma, aquela história do primeiro dia do resto das nossas vidas não é mais que uma ironia, mesmo um cinismo, o tempo não existe, o tempo é o que queremos fazer dele, ou o que queremos fazer de nós. Formigas no carreiro? Sem percurso traçado, por favor. Rotinas não seguram, raízes, sim. E essas são eternas.

sábado, 9 de junho de 2007

O senhor Jacinto

Cruzei-me há pouco - não foi numa rua da baixa - com um artesão.
Como trabalho com alguma materialidade um pouco estranha para o comum dos nossos tempos de pressa e poucos olhares à diferença, é difícil tratar da manutenção de alguns objectos de apoio. Neste caso era um relógio falante. Os relógios usados por quem não tem o sentido da visão podem ser de interface táctil (uma tampinha é levantada e há referências para localização da posição relativa dos ponteiros) ou sonoro (um duplo mecanismo que pode ter um output analógico ou digital em números visíveis e sonoro, com quatro botões externos para além do tradicional: botão para ouvir as horas, botão para entrar em modo de acertos e configurações, botão para acertar as horas, e os minutos, sendo estes dois usualmente os responsáveis por acertar também o alarme e mais algumas funções que podem variar consoante os modelos).
Obviamente que é difícil encontrar quem faça a sua manutenção, só o facto de terem um mecanismo duplo se torna complexo, a quantidade de vezes que se recusam sequer a mudar-lhes as pilhas é inacreditável, a quantidade de vezes que lhes invertem o mecanismo de voz é assombrosa. Há profissionais criativos e cada vez mais entrámos na cultura do "não sei nem me interessa" ou do "assim deve estar bem".
E depois há o Senhor Jacinto.
O Senhor Jacinto estudou até à quarta classe, fazendo sempre trabalhos para ajudar os pais. Depois foi entregue a um Mestre ourives, e passado uns aninhos já tinha a paixão dos relógios. Foi muitas vezes contactado, ainda é, por escolas com fama de excelência nesta área, e que desenvolvem, infelizmente, profissionais dos tempos modernos... consumistas - que os profissionais sem tempo têm tempo para aprender toda a vida.
O Senhor Jacinto arranjou o relógio da Senhora Ilda, que andava na carteira da Maria há algum tempo, em alarme de desespero, porque a sua proprietária não vê horas nos relógios onde a gente vê. A Maria confirmou - gata escaldada - que o mecanismo estava na forma correcta e acertou de ouvido o alarme para verificar se estava mesmo tudo bem (o convívio com outras formas de ver o mundo faz-nos interiorizar posturas e sensibilizar comportamentos), o Senhor Jacinto olhou da oficina e saíu: acerta o relógio como os cegos, pois acerto, eu tenho um com o toque do galo, gosto mais da voz espanhola que da brasileira, os tácteis, os antigos da Camisaria Moderna, hoje, menina - obrigado, Senhor Jacinto - ninguém tem respeito por nada, nem por si mesmo. Não há técnica porque não há respeito.
A respeito de relógios então, o Senhor Jacinto dissertou. E eu a lembrar-me do glorioso Jacinto da Cidade e as Serras e a pensar que a aprendizagem deste meu Jacinto tinha sido bem mais rápida. E ele a dissertar farpas que nem Eça e Ramalho. Sabe, ladrões sempre houve, e mentirosos. Mas hoje são burros porque nem por si têm respeito. Não se morde a mão que nos dá de comer, sobretudo se for a nossa. Por isso quando me pergunta porque me interessei também por estes mecanismo, porque fazem parte da minha Arte, claro. Ou se fazem as coisas com respeito porque são elas que nos dão a subsistência ou é melhor estar quieto e deitar tudo fora. E acredite, menina - obrigado mais uma vez, Senhor Jacinto - a maior parte das pessoas deitam-se fora e nem percebem. Como as crianças que nos telejornais só ouvem os políticos a chamar mentiroso uns aos outros. E querem que cresçam a respeitar quem, se nem os pais têm outro diálogo que não o da mão levantada e da falta de paciência.
Ontem ouvi e li duas notícias sobre educação e os muitos comentários foram abaixo deste do Senhor Jacinto: a má utilização da Internet pelas crianças (ou pelos adultos, que nunca há só um lado da questão) e a violência escolar a saltar de novo em jogos mortais. E passa tudo por este respeito que o meu amigo da manhã mencionou (não foi numa rua da baixa mas ele simpatiza comigo e eu simpatizo com ele). Perda de valores, mesmo os individuais. Não parar (os relógios) para pensar. Não reflectir nos mecanismos (os relógios, novamente) que podem estar por trás de uma circunstância. Não pensar (os relógios e a ignorância voluntária de alguns técnicos) que os mecanismos que nos levam a agir de determinada forma podem ser desconhecidos.
Não ter respeito por nós, não ter respeito pelos outros, não dar valor à vida, não dar valor ao profissionalismo, não dar valor ao trabalho, não dar valor à aprendizagem, não dar valor - manchar mesmo gravemente - a liberdade que temos de crescer, de agir e de nos expressar correctamente (e não falo da forma mas do conteúdo).
O Senhor Jacinto a Ministro da Educação. Urgentemente.

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Estilhaços ou espaços?

janela de carro partida, abrindo sobre um fundo de paisagem natural verde
De balas, de vidros, de palavras, de memórias, tudo o que nos rodeia é passível de sofrer explosões ou implosões com as devidas - às vezes merecidas - consequências. Por vezes centramo-nos de mais nas explosões e estilhaços do verniz de alguma memória. Inconsequentes nós, não lhes demos mais importância que a que merece o desprezante fluir do tempo, as vãs aragens que afinal não pesam toneladas.
Inconsequentes as acções que partem, importantes as que reconstroem. A diferença entre um murro e um beijo, um pontapé e um sorriso, a palavra errada ou a palavra certa.

Pesamos sempre correctamente os estilhaços das nossas memórias? Não me parece. A maior parte das vezes caem tão rápido e cicatrizam tão depressa quanto a pouquíssima projecção que tiveram. Valorizemos antes os enormes tubos de cola que são as acções de entrega, de partilha, de solidariedade, de amor, de carinho, de atenção, de cuidados delicados, osrestauro de alma e de corpo que só quem é especial consegue.

Estilhaços colam-se? Melhor deitar fora e a janela fica de novo bonita, incólume, íntegra e mais forte. Quem parte tem mais riscos de se magoar que quem é partido. Janelas rasgadas deixam ver melhor o verde-esperança. Há tempo e espaço para tudo. Até para ser feliz.

terça-feira, 5 de junho de 2007

E agora, José?

"Como aponta o próprio Drummond, em seu poema Mãos Dadas, “Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças (...) O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”. Às angústias das inquietas indagações que o poeta faz a si próprio, em “E agora, José?”, respondemos de acordo com uma velha e conhecida canção popular: “Depende de nós”!"

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Vale a pena ler mais blogs e menos jornais...

domingo, 3 de junho de 2007

Porta para o Verão


"Num Inverno pouco antes da Guerra das seis semanas o meu gato, Petrónio o Árbitro, vivia comigo numa velha casa rústica em Connecticut. (...) Quando ainda era gatinho, todo penugem e ronrons, Pete tinha elaborado uma filosofia simples. Eu tinha a meu cargo o alojamento, as rações e o tempo; ele tinha a seu cargo tudo o resto. Mas considerava-me especialmente responsável pelo tempo. Os Invernos de Connescticut são bons apenas para os postais natalícios; invariavelmente nesse Inverno Pete ia examinar a sua própria porta, recusava-se a sair por causa daquela desagradável coisa branca do outro lado (não era nenhum tolo), depois instava comigo para que abrisse uma porta de gente.
Ele tinha a ideia que pelo menos uma dessas portas devia conduzir ao Verão. Isso significava que de cada vez eu era obrigado a acompanhá-lo a cada uma das onze portas, mantê-la aberta até ele se convencer que por ali também era Inverno, depois passar à porta seguinte, enquanto as suas críticas ao meu desgoverno se tornavam mais amargas a cada desapontamento.
Então ele ficava dentro de casa até que a pressão hidráulica o forçava imperativamente a sair. Quando ele voltava o gelo nas suas patas soava como tamancos no soalho e ele lançava-me olhadelas furiosas e recusava-se a ronronar até ter digerido a coisa... e eu ficava perdoado até à vez seguinte.
Mas nunca desistiu de procurar a porta para o Verão."