sábado, 30 de dezembro de 2006

...,2006,2007,...

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"I would like to discuss whether time itself has a beginning, and whether it will have an end."
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Stephen Hawking, The Nature of Space and Time

sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

Sem nexo

Novamente estrela do mar, princípio e fim, alfa e omega, menos infinito e mais infinito. Pensar demais, estar em branco, mãos que procuram, corpos frágeis, corpos doces, final de ano, final de alma, à espera de nada, querer a casa dos avós, abraços e colo, olhares de criança que se prendem em torno do mundo e vão de rasto, doridos. Questionar. Porque trará a vida os dias errados sempre quando precisávamos de outros? As mãos que nos tocam, os colos que nos seguram, as tocas de raposa.
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Cheira a eucalipto, o som da água que ferve - sempre lá dentro, não sabemos onde - os desenhos em três folhas e dois braços que caíram sobre uma cama soltos de cansaço. Abraços perdidos, anos de abraços perdidos. Cheira a eucalipto e é cedo demais para amar o que quer que seja, ama-se tudo, vive-se numa corrida, não se espera por nada, corre-se e agarra-se o que se quer muito antes que os braços.
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O branco inunda e fere e procuro sem porquê o fogo que falta para cair o edifício grande (branco deste lado) para rasgar as paredes que sobram e inundam como água todo o espaço que tínhamos para correr. Os braços continuam lá.
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Vistam-me de qualquer cor, dispam-me do mundo, quero viver agora, nos braços certos, na casa verdadeira, sem o branco forte demais, sem a dúvida da hora que chega, sem o coração muito pequeno para saber falar. E sempre uma mão cor-de-rosa de criança a pedir colo que nem sei se sou eu.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

Se a mente a deixar ser...


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"E a cidade cá está para o entreter
Indiferente e fria, disposta a esquecer
Que a ansiedade é um minotauro
Que se alimenta de solidão
E que a ternura é uma bruxa
Que faz milagres
Se a mente a deixar ser..."

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Reflexões em Strings, Escher, Voando Sobre um Ninho de Cucos e Jorge Palma. Não tem que fazer sentido. Podemos traçar linhas coerentes dentro do caos, nós, os habitantes das margens. E sobreviver.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2006

Movimentos no escuro



"Solta o cabelo, rapariga,

pois o riso não espera

e o resto não importa"

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A editora Relógio d'Água tem destas coisas. O resto não importa. Apostar em projectos arrojados, soltar o cabelo, que o riso não espera. José Miguel Silva poetou cinema, em título que se descobre no interior de uma capa sóbria, onde tudo está arrumado menos as palavras soltas. Os filmes escolhidos e os sentimentos semeados levam-nos a crer que a poesia é a única forma de expressão para comentar cinema. Muito bonito, em dias em que precisamos de crer em coisas belas e soltar os cabelos e a vida. Sobretudo, de nos reconciliarmos com as palavras.

domingo, 24 de dezembro de 2006

Nem por ti, Rudolph



Se fosse lançada uma petição para libertar o Rudolph, quantas assinaturas teria durante o dia de hoje? Acontece que há PESSOAS que aguardam a nossa colaboração para ver os seus direitos garantidos. O militante nº 4480 assinou a Petição pela Acessibilidade Electrónica Portuguesa às 3:15 desta madrugada. Continuo a ver por lá muitos nomes de pessoas que conheço, com que me cruzo, com que trabalho, muitas pessoas directamente envolvidas, algumas sensibilizadas mas não ainda as suficientes. São precisas 6000 assinaturas. Bastaria portanto dirigir-me hoje com um portátil ao Colombo... Imagino que por lá passem nas próximas horas os restante 1520. Perderiam dois minutos a pegar num teclado, em nome dos direitos humanos? E outros dois a passar palavra a dois amigos? Talvez tente. Mas gostaria que assinassem por ter lido e ponderado. Boas Festas.

sábado, 23 de dezembro de 2006

Just around the corner

Pensei não voltar aqui até passarem estes dias tão estranhos. Mas a tentativa de vivência normal torna-se frustrada demais, a alegria forjada cerca-nos, multidões carregam o que querem e o que nunca irão olhar duas vezes, amam por obrigação do poder de compra ou de crédito, enquanto, num desespero de procura de sossego, tento tomar um café e ler o jornal, tento olhar o céu demasiado azul e demasiado sorridente, esquecer o frio que corta, que me gela as mãos enquanto acendo um cigarro caído no fundo da mala dos sonhos, que os sonhos nestes dias são outros.

É difícil escrever sobre o Natal. Deixou de ser um feriado religioso. Deixou de ser um festejo familiar, viva a sociedade do amor em que a velocidade da condução é datada e proporcional à obrigação de estar presente a tomar posse de territórios afectivos.

É difícil pensar no Natal não pensando nos sós e nos tristes. É difícil não criticar o consumismo. Mas também é difícil não exagerar nos nossos juízos. Na verdade, porque não hão-de famílias ver ou ser vistas pela árvore da Praça do Comércio? Pão e circo? Claro. Mas se mais nada lhes é dado e lhes apetece, porque teremos o intelectualismo barato de os criticar? Rituais, culturas, presentes e crianças, crianças e poesia, poderão nada significar para alguns mas se para outros servirem para sorrir, pois que sorria meio mundo. E será que esse meio mundo que sorri não chora por dentro, será que o frio está só nas mãos sem luvas, será que não dói mais sermos nós em verdade numa realidade alienígena?
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"(...) Ela, que para nós representava apenas a avó, tinha sido também a filha, tinha sido a irmã, tinha sido a esposa, tinha sido a mãe … No seu pobre coração, quantos lutos sobrepostos, quantas saudades acumuladas! Por isso, enquanto os outros riam e conversavam alegremente, a mão dela emagrecida e enrugada tremia de comoção ao tocar no copo, e dos seus olhos cansados despegavam-se silenciosamente duas lágrimas, que ela embebia no guardanapo enquanto a sua boca procurava sorrir e titubear palavras de resignação, de conforto, de felicidade. Essas lágrimas eram como a evocação do espírito dos ausentes e do espírito dos mortos para aquele banquete. A festa era então interrompida por silêncios graves, pensativos, durante os quais cada um se recolhia em si mesmo e olhava um pouco ao passado e um pouco ao futuro. (…) Só nós, as crianças, é que gozávamos nesta festa uma alegria imperturbável e perfeita, porque não tínhamos a compreensão amarga da saudade nem as preocupações incertas do futuro. Para nós tudo na vida tinha o carácter imutável e eterno. O destino aparecia-nos ridentemente fixado, como no musgo as alegres figuras do presépio. Supúnhamos que seriam eternamente lisas as faces de nossa mãe, eternamente negro o bigode de nosso pai, eternamente resignada e compadecida a decrépita figura de nossa avó, toucada nas suas rendas pretas, no fundo da grande poltrona. Não tínhamos compreendido ainda todo o sentido do Natal. (…) Não, a vida não é uma festa permanente e imóvel, é uma evolução constante e rude. O Natal é a festa das lágrimas para todos aqueles para quem ele não é a festa da inexperiência."
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A verdade é que são os frágeis que festejam o Natal de forma mais impune. Deixemo-los festejar. Não é por aí que vem mal ao mundo. Mas pela intolerância pode vir...
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Cartoon de Bill Waterson
Excerto de Ramalho Ortigão, "O Natal Minhoto" in Farpas Escolhidas.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

Tempo de esperança


Natal próximo, encruzilhadas de sentimentos, xadrez em problema insolúvel - rei afogado? O que estará nas caixas embrulhadas em desejo?
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Tempos de luta, não de pausas, que a vida não se compadece. Sempre lágrimas para enxugar, colos para dar, confiar, acreditar, entregarmo-nos, ser pacientes, olhar as caixas de Pandora com a vida lá dentro embrulhada em laços que afogam ou conduzem, prendem ou libertam (Strings?). Esperar por um Natal que tarda (Nightmare before Christmas ?). Tim Burton lida bem com a morte, com as mortes. "No one is dead!" Surpresa. Tudo é real quando acreditamos. Sai da tela como na Rosa Púrpura do Cairo, o Amor em pessoa, no Natal ou talvez não. Quando esperamos mais, quando menos esperamos, quando damos sem esperar nada mais que não o deixarem que esperemos. Sempre que é preciso. Toda a vida, que menos não é possível.
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Quando se acredita que um dia de frio o Pai Natal chegue e nos aqueça a alma. Pode não ser no Natal. Pode ser quando o mundo quiser dar uma oportunidade a quem ama sem época e sem condições. Pode ser que sim. Pode ser.
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Não dá muito jeito escrever posts e fechar os olhos em maré alta. Esperar? Convençamo-nos todos que sim. Quando se espera, pelo menos as portas não estão todas fechadas e, crianças, podemos sempre pensar que se os pés e a alma não nos atraiçoarem no caminho frio do último dia de Outono, alcançaremos o branco e puro Inverno, seremos então abraçados numa manta quente.
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Por amor, sempre.
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Eu, espero...

terça-feira, 19 de dezembro de 2006

Manuel Gusmão

Indicado por mão amiga, textos irresistíveis, muito trabalho - que a arte dá trabalho, o ensino também. Textos irresistíveis...

" (...) porque ele tinha nos braços uma jovem menina desatada sobre um tapete que flutuava sobre as águas lentas e em quem o medo perdia de qualquer forma a sua compostura e ela apesar de tudo aprendia o destino de ser aquilo em que se deveria transformar e transformar, porque não há destino, ontem não a vi, mas tão-só este fazer-se como o que então se fazia, estava fazendo, sem que nenhum deles o soubesse bem. Este fazer-se nisto ou noutro continuando, mais solto, novo, triste e contente muito, perdido de si dizem um e outro, mas achado como que por acaso e persistência, sim, mesmo que hesitante, seguindo em seu voo e cavalgada pelos séculos instantâneos das pétalas de uma rosa: «há em ti algo que como que fecha e abre, abre e fecha e, tinha ou não tinha ele em seus braços uma mulher que crescia em beleza para sua tonta alegria? Tinha. E sabia isso? Talvez o soubesse mas não como pensa que o sabe agora, e é isso que interessa. Poderá afirmar-se que sabia e não sabia. Ela tinha-lhe dado um nome que seria o seu, que ele usava como quem se ouve chamado numa mágica montanha, mesmo se mais tarde era também por ela que vinha esse nome a soar como um vaso quebrado.ela tinha-o como um búzio ao ouvido, um indistinto rumor que lhe falava obscuramente do que ela não sabia, nem talvez soubesse que havia a saber. Nem era ali que ia aprender. Nisso perdidamente unidos. Vocês dois não estão sozinhos na escuridão, dizia o outro. Ela perceberia que aquilo ele estava falando e nisso lhe respondia, mas saberiam do que falavam? supor que nisso estavam começando a aprender aquilo de que não sabiam estar longinquamente falando. O que é maneira de dizer, porque neste momento não falam. Respiram apenas, lenta a mente."

Manuel Gusmão, Dois Sóis.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

Hora do conto


Tarde já, hora do conto, pode ser oriental, em fuga, ao colo de um livro.
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Multidões de imperadores fazem compras de Natal, multidões esquecem multidões que deles precisam, multidões de gente crescida abafam os gritos de outros tantos pequeninos, tão pequeninos como a Liberdade de Quino e tão necessários como o céu azul ou as copas das árvores. Um quadro a vermelho sangue por onde fugimos quando não apetece mais.
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Gente a mais, gente a menos, sempre, por perto, tão dentro de nós. Gente estranha, como se noutro mundo. Sem amor.
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Quero acordar com um sorriso e acreditar na gente real e humana que acredita na beleza e beija o mundo com a sua vida.
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Quero acordar e seguir o caminho do aprendiz. Pintar o meu dia de cores de vida. Acreditar. Que só os Poderosos se afogam no mar das lágrimas que causam.
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Penso em Wang Fo. "Gente como esta não foi feita para se perder dentro dum quadro..."
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Marguerite Yourcenar, Comment Wang‑Fô fut Sauvé, Paris, Gallimard, 1979.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2006

Verde oliva de flor nos ramos

Somos filhos da madrugada,
Pelas praias do mar nos vamos,
À procura de quem nos traga,
Verde oliva de flor nos ramos.

Navegamos de vaga em vaga,
Não soubemos de dor nem mágoa;
Pelas praias do mar nos vamos,
À procura da manhã clara.
(...) Onde o vento cortou amarras,
Largaremos p'la noite fora;
Onde há sempre uma boa estrela,
Noite e dia ao romper da aurora,
Vira a proa minha galera,
Que a vitória já não espera;
Fresca, brisa, moira encantada,
Vira a proa da minha barca.
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José Afonso, Canto Moço.
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Renascer, sempre, no tempo frio o calor é nosso, o tempo das flores quando o quisermos. Quebrar amarras é periódico, rumar a novas paragens não é necessariamente mau, pode ser uma descoberta. Sigo para Portalegre, o frio vai-me acompanhar. Vozes ao telefone acompanham-me também, acolhem-me já, trabalhos em curso, ser equipa é ser amigo e solidário. Vou descobrir o que não se vê pela mão de quem não vê da mesma forma. De quem ouve e canta e cheira e toca na flor dos ramos, que o essencial é, em definitivo, invisível. Os corações falam sem voz. De azul puro se vestiu o céu, bela manhã de Outono para os filhos da madrugada que aproveitam os dias. Bela manhã de Outono para, como em todas as manhãs em que temos força, virar a galera e rumar onde o coração nos leve.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

Creio

"Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,
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Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é étero num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,
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Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,
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Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen."
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NATÁLIA CORREIA, Sonetos Românticos, 1990.
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(obrigado, Luís Galego, é bom que nos façam lembrar as coisas importantes)

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

XIX=XXI

Também eu não sabia. Mas ao estudar os arquivos dos asilos de oitocentos e conhecendo algumas tristes realidades actuais cheguei a esta brilhante conclusão. Nunca fui boa a matemática, para grande tristeza do meu pai, e pouco tenho de racional. Infelizmente, e como agravante, parece-me que também fiquei com algum romantismo na educação, forte estigma. Acredito, assim, nas pessoas e na sua capacidade de melhorarem o mundo em que vivem. Também acredito no Pai Natal, na solidariedade, na inteligência emocional, na igualdade, nos direitos humanos e na Fada dos Dentes. Tenham pena de mim, desgostos diários atingem-me como bombas.
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Ao ler documentação diversa sobre os Asilos da Infância Desvalida, sobre Asilos-Escolas para Cegos, Surdos-Mudos e Loucos [era o termo] e ao ouvir atentamente desabafos vários dos nossos dias sobre as dificuldades de educação e integração de pessoas tão iguais a pessoas como qualquer de nós não encontro quaisquer diferenças [obviamente podemos considerar que uns têm os olhos verdes e falta de sentido de orientação e outros não andam ou não vêm, e também que alguns ficaram pela infância ou, como diz o meu amigo Ricardo "crescem, mas muito devagarinho"] .
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Por isso, claro, XIX=XXI ou XXI=XIX, que a ordem dos factores, neste caso, é mesmo arbitrária. Por isso cegos são conduzidos ainda hoje para ruas para onde não querem atravessar ou recebem esmolas na mão quando regressam de metro para casa, vindos da faculdade ou dos seus empregos. Encontram a entrada barrada em restaurantes e táxis quando acompanhados de cão-guia. Ou assumem a tolerância do esforço quando alvos de perguntas patéticas de profissionais da saúde em relação aos filhos como se lhes sabem tirar a temperatura...
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No meio disto tudo avançam as assinaturas na bendita petição. Mas continuam os websites abaixo do inacessível, continuam as escadas a saltar por cima das cadeiras de rodas, continuam as escolas a rejeitar crianças porque (...) e porque (...) e porque (...) não estão preparadas (=não querem).
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A equação é simples, o resultado directo, continuam a existir habitantes das margens, numa expressão que li num livro que adoro, As Crisálidas (voltarei a falar dele por aqui, espelha o que é uma sociedade desumana e prepotente em que as diferenças são consideradas falhas de identidade, nunca mais-valias).
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De que vale lutar pelo que quer que seja antes de se lutar pela informação e pela educação? Sem conhecimento não pode haver acção racional. Talvez não seja mesmo de romantismo que andamos a precisar. Em suma, o meu pai tem razão. A Matemática talvez dê mesmo mais armas que a História.

domingo, 10 de dezembro de 2006

Numa palavra como um fio

Numa, apenas uma, cortante, intensa, que acorde e tire os pássaros da memória, arranque o conforto do silêncio. Uma palavra única, quando o corpo pára, quando de dentro vem o grito que se não solta, inconformado. Uma palavra apenas num olhar, num toque, num cântico, num frio que passa e que dói, no tempo que já não é. Uma palavra que cai aos pés do desânimo no poço mais fundo de nós, no tronco mais escuro da árvore que se abraça porque mais ninguém perto. Uma palavra repetida e oca, vazia de tudo, uma falta, alguém que se perdeu pelo caminho de todos. Uma dúvida. Uma paixão. Um medo. Uma vida. Como um fio que ata o que se não disse e o que se não quis ouvir. Talvez uma ponte.

sábado, 9 de dezembro de 2006

Caminhos de paz


À mesma hora... Saída do Pessoal Operário da Camisaria Confiança e Mal de Espanha?
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Não é justo. Mas é bom ver que Aurélio da Paz dos Reis não está esquecido, que os ciclos da Cinemateca continuam a ter critério. Só não sei se me consigo clonar a tempo na terça-feira para ver o meu preferido dos preferidos, dividida, como apaixonada que sou por tudo o que me toca.
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Aurélio foi uma descoberta dos meus tempos de IADE, fotografia, cinema, irreverência, flores, idealismo, sensibilidade. Tudo o que cabe num homem com gosto pela vida e pelo mundo que tudo fez para mudar. Sempre em olhares pessoais, sempre com gosto pela inovação, sempre envolvendo demais o coração em todas as causas que vivia.
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Vale a pena ter o CD do Centro Português de Fotografia. Não há muita bibliografia publicada, nunca ninguém pegou nele - tanto quanto saiba - para estudar exaustivamente. Uma tese calharia bem. Fica o repto para os conhecedores...

terça-feira, 5 de dezembro de 2006

Petição pela Acessibilidade Electrónica Portuguesa

Há oito anos foi desencadeado um movimento sobre a primeira petição electrónica no nosso país – a petição pela acessibilidade da Internet portuguesa -, que deu origem à Resolução do Conselho de Ministros nº 97/99, de 26 de Agosto, estabelecendo regras relativas à acessibilidade pelos cidadãos com necessidades especiais aos conteúdos de organismos públicos na Internet.
No ano de 2007, Ano Europeu da Igualdade de Oportunidades para Todos, em que Portugal assume a Presidência do Conselho da União Europeia, está disponível a segunda petição, seguindo as linhas gerais da secção 508 da Lei da Reabilitação (http://www.section508.gov) dos Estados Unidos, que inclui também a acessibilidade do software, equipamentos de telecomunicações, produtos de áudio e vídeo, equipamentos electrónicos de escritório e computadores, e da Lei italiana sobre Promoção do Acesso às Tecnologias da Informação para Deficientes (http://www.pubbliaccesso.it/english/) que define regras de acessibilidade para a Web, equipamento electrónico usado no trabalho, materiais educacionais usados nas escolas, nomeadamente software educativo multimédia.

Esta segunda petição tem como motes:

Legendas Ocultas
Descrição Audio
Interpretação Gestual
O Que Não Vê, Ouve
Comando Verbal

Já assinou?

segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

Sobre saltos


Há dias em que saltamos por cima da vida. No entanto ela está espelhada sob os nossos sonhos. Fechar os olhos, talvez. Capturá-la num abraço. Ou enquadrá-la, quando somos mágicos.

Fotografia de Cartier-Bresson, Paris, 1932.

sábado, 2 de dezembro de 2006

Sobre a origem da poesia

"A origem da poesia se confunde com a origem da própria linguagem. Talvez fizesse mais sentido perguntar quando a linguagem verbal deixou de ser poesia. Houve esse tempo? Quando não havia poesia porque a poesia estava em tudo o que se dizia? Quando o nome da coisa era algo que fazia parte dela, assim como sua cor, seu tamanho, seu peso? Quando os laços entre os sentidos ainda não se haviam desfeito, então música, poesia, pensamento, dança, imagem, cheiro, sabor, consistência se conjugavam em experiências integrais, associadas a utilidades práticas, mágicas, curativas, religiosas, sexuais, guerreiras?"

Arnaldo Antunes, 12 Poemas para dançarmos.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2006

Um sonho num sonho

Este beijo em tua fronte deponho!
Vou partir. E bem pode, quem parte,
francamente aqui vir confessar-te

que bastante razão tinhas, quando
comparaste meus dias a um sonho.
Se a esperança se vai, esvoaçando,
que me importa se é noite ou se é dia...
ente real ou visão fugidia?
De maneira qualquer fugiria.
O que vejo, o que sou e suponho
não é mais do que um sonho num sonho.
Fico em meio ao clamor, que se alteia
de uma praia, que a vaga tortura.
Minha mão grãos de areia segura
com bem força, que é de ouro essa areia.
São tão poucos! Mas, fogem-me, pelos
dedos, para a profunda água escura.
Os meus olhos se inundam de pranto.
Oh! meu Deus! E não posso retê-los,
se os aperto na mão, tanto e tanto?
Ah! meu Deus! E não posso salvar
um ao menos da fúria do mar?
O que vejo, o que sou e suponho
será apenas um sonho num sonho?

Edgar Allan Poe


De boas intenções



Descansar, comer, dormir, serenar... Verbos desconhecidos quando a vida é uma luta, as causas uma paixão. Irrequietos seres nós, os que gostamos de viver, não sei se existem equilíbrios, eu não os tenho certamente, ou encontro-os em tudo o que faço, nos amigos que me preenchem e amam, nas palavras que leio e escrevo, nas pessoas com que trabalho, na aprendizagem que consiste em olhar simplesmente, depois de um dia cheio, para uma lua que cresce sobre o mar e faz crer que há um sentido para nos esgotarmos em ser e fazer os outros felizes. Tinha prometido descansar, só agora o posso fazer e estou a escrever para mim mesma que faz sentido ter estado acordada até agora a construir trabalhos e projectos e partilhas, enquanto fumo o último cigarro do dia e vejo o fumo subir pelo sono e sonho que se cruzam, penso no frio que me mantém acordada, nos dedos gelados que tocam nas teclas, no meu filho que acordará cedo de manhã e quererá ver o sol, no trabalho, sempre, na construção de vidas em esforço. Sorrio, inconsciente, corpo a querer cair no amanhã renovado e belo. Ao som do mar que não chega por aqui, só se vê, de uma nesga da minha janela e da minha alma.

terça-feira, 28 de novembro de 2006

Afundar

Turner, 1805
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Mais uma palavra mal tratada. Como as pessoas, as palavras podem ser doces ou amargas, bem ou mal tratadas, evoluir ou regredir, ser amadas ou odiadas.
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Afundar um barco, afundarmo-nos na melancolia, afundarmo-nos em trabalho. (Mergulhar?) afundar é mais forte. Digo as palavras conforme as escrevo, gosto mais de ler que de dizer, de viver que de pensar. E no entanto sou tão incoerente como qualquer dicionário daqueles que demoram uma vida a ler e estão sempre errados, sempre com certezas, sempre fora de contexto, sempre limitados a uma visão, perspectiva, cultura.
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Afundar-nos em sonhos, mergulhar no que não pode ser verdade, abraçar a vida, acreditar. Como uma criança que se naufraga nos braços que lhe dão calor. Mesmo fora de tempo e de sítio, baralhando a ordem natural das coisas, fora do expectável, num poço de amor e não de ódio.
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Acreditar muito, de olhos fechados, que é possível. Porque, às vezes, até é.

domingo, 26 de novembro de 2006

Imortalidade

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"- O que é a loucura?
- É a base de todas as paisagens."
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Mário Cesariny
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(09-08-1923 - 26/11/2006)

sábado, 25 de novembro de 2006

Liberdade, igualdade, fraternidade


Sábia Mafalda. Há duas horas atrás adormecia um bebé. Pensava, entre chuchas e biberons na pessoa que ali estaria em potência, na pessoa que sairia daquela Carlota. Pensava noutro casal amigo que se prepara para adoptar uma criança, sem fazer questão de raça ou de qualquer outra característica. Pensava obviamente demais, o que nos faz, o que nos fez? Nós que acreditamos em utopias e achamos que a humanidade e o idealismo transbordam das nossas almas e das nossas palavras, nós os das certezas, nós os crescidos com complexo de Peter Pan, que vemos filmes para crianças feitos para adultos melancólicos e nos orgulhamos em citar Alice e o Principezinho e no fundo, mãozinha na consciência, somos tão preconceituosos como o mais assumido dos racistas, tão egoístas como os que apontamos a dedo.
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Na minha última aula, falava o meu professor (um Professor verdadeiro, dos que faz pensar, o que também já vai sendo raro) da importância em naturalizar a arte na educação. E nas dificuldades que algo tão simples traria ao nosso sistema educativo. Todos iguais em quê, se à partida as circunstâncias são mesmo todas diferentes? Tanto que tenho falado sobre isso em conversas soltas, tanto que me desconheço a criticar hábitos diferentes e a apontar o dedo a formas de estar diversas daquela em que me sinto bem. A coexistência é difícil, as comunidades humanas são encruzilhadas complexas, respeitar é complexo. Também o respeito pela diferença é feito de escolhas.
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Os Resistência cantam que quando um homem nasce nasce selvagem, olho para os meus braços agora sem Carlota e penso que não. Demasiadas marcas em todos nós, nenhum homem é igual nem quando nasce. Não devia ser um drama, infelizmente é. Porque se cultiva a diferença como defeito, não como valor de liberdade. Porque a diferença passiva, oprimida ou complexada é terrível e não trabalhamos em conjunto pela diferença activa, pela escolha válida, pela aceitação do outro.
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Educação pela arte. Naturalizar potências que podem estar e permanecer castradas pela educação. Talvez ajude. Talvez abra horizontes. E antes, os direitos básicos? Faria sentido. O carinho? Sempre. O respeito? Óbvio. Será? Os pontos de interrogação, essas facas curvas que nos obrigam a pensar entre dois suspiros de criança que adormece. No futuro, aquele pedaço de tempo que nunca vivemos na prática, o provir eterno e cheio de dúvidas, lutamos por ficção científica.
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Começar por gostar de viver talvez seja um bom princípio. Quem gosta de viver cultiva a harmonia. Quando rodamos as cores do arco-íris obtemos uma cor única, a da paz, o que é mais belo, a diferença ou a igualdade? Talvez o direito de opção. Rodemos pois a paleta...

quinta-feira, 23 de novembro de 2006

Utopia

Woodcut by Ambrosius Holbein for a 1518 edition of Utopia.
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"Cidade
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
Gente igual por fora
Onde a folha da palma
afaga a cantaria
Cidade do homem
Não do lobo, mas irmão
Capital da alegria
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Braço que dormes
nos braços do rio
Toma o fruto da terra
É teu a ti o deves
lança o teu desafio
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Homem que olhas nos olhos
que não negas
o sorriso, a palavra forte e justa
Homem para quem
o nada disto custa
Será que existe
lá para os lados do oriente
Este rio, este rumo, esta gaivota
Que outro fumo deverei seguir
na minha rota?"
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José Afonso

quarta-feira, 22 de novembro de 2006

Uma questão de género

Tenho muito mau feito. Contectei demasiado de perto nos últimos dias com sobrecargas grandes de situações humanamente inaceitáveis, incompetências, prepotências e outras palavras que me arrepiam.
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Levo tudo demasiado a sério. Interiorizo, incorporo, canibalizo as situações. Não suporto injusticas. Sinto-as na pele. Sou lutadora por profissão. O problema é que os meus pais me deram demasiadas camadas de sensibilidade nos acabamentos. Ou então não...
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Quando choramos limpamos as lágrimas, quando caímos levantamo-nos, quando estamos tristes sorrimos. Nada como baralhar a vida antes que ela dê cabo de nós (o que inevitavelmente fará, mas vamos fintando).
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Hoje, cansada e revoltada com estas questões, fiz o que não devia ter feito: desabafei e sobrecarreguei sem necessidade (porque o partilhar me está no sangue) pessoas que me rodeiam e que me amam muito. Todos me ajudaram, a todos o meu carinho, o meu amor, o meu obrigado.
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Inevitavelmente, the oscar goes to...
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Uma das pessoas que melhor me conhece e melhor me lê em todo o mundo: o meu filho João. Por me dizer frontalmente para não guardar os problemas em mim mas procurar as soluções (sábios, os miúdos, sobretudo este, quando estou em tempestade poucas pessoas com amor à vida me diriam destas).
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Também por me lembrar esta tira... e me fazer rir (obrigado, companheiro de caminhada, conheces-me mesmo muito bem).
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Assumidamente, uma questão de género...

terça-feira, 21 de novembro de 2006

Uma questão de perspectiva

Alexandre Rodchenko


Subo ao terraço mais alto, olho o mundo em tarde cansada que cai. Cada palavra é um eco, cada folha levada pelo vento uma carta náufraga. Pássaros soltos largam sonhos dos ninhos, eucaliptos fora. Os aromas. Brincar com as pedras e fazer desenhos no chão.
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Subo ao terraço mais alto, aventureira frágil num mundo conquistado e fácil que não é meu e onde me estranho. Falta-me a mão que guia a segurança dos passos que se tomam nas direcção todas, rosas dos ventos cobertas por lágrimas - serão lágrimas? - obrigando o olhar a saltar do terraço mais alto que almeja ser a varanda sobre o mundo.
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Subo ao terraço mais alto e penso que a altura é apenas distância e isolamento, a beleza, ilusória, os sonhos, crenças desesperadas de quem nada mais tem que desesperar. Os homens brincam aos regressos a casa, falam de coisas sérias como futebol e política, em cada carro, em cada passo, em cada terraço alto, em cada varanda segura como um conceito questionável.
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Subo ao terraço mais alto onde todos querem tentar voar e ninguém salta, ninguém arrisca, melhor ver a vida levemente, corajosamente debruçados, curiosos dos outros que não somos nós, que passam em baixo, distância segura, ilusão certa, felicidade garantida, pois que há uma varanda que nos segura e separa, de pedra fria, que nos permite ver o mundo do alto do terraço mais alto, fechados em nós, sempre, onde subimos, em segurança, onde nos mandaram subir e nem sabemos porquê...

segunda-feira, 20 de novembro de 2006

Little things DO make the difference

Das pessoas mais belas que tenho conhecido, a Josélia, mulher de coragem, cheia de vida, rodeada de amor e vontades fortes e agora, felizmente, a fazer-nos companhia na blogosfera!

Com informações muito úteis, mensagens positivas e um sorriso sempre lindo a acompanhar.

Um enorme abraço, Josélia.

Desejo


Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar.
_
Sophia de Mello Breyner

domingo, 19 de novembro de 2006

...



Dança como Nijinsky, chora as lágrimas de Man Ray, foge das mãos como areia, louca, esconde-se no oiro do campo, em molhos de sangue espalhados que tardam ver, abandona-se ao vento só para sentir, arranca as próprias raízes para caminhar no sonho que traça quando encontra a paixão em que foi desenhada. É a mais bela das flores, tem escritas a rubro todas as palavras e entrega-se, sempre. Entrega-se.

sábado, 18 de novembro de 2006

Em queda, livros.


Seria o poço dos sonhos de Alice? Não ia em busca do coelho branco, mas das lebres e dos galgos de Amadeo (afinal estão na sede, pisos 0 e 1). Engano fantástico de percurso que me permitiu conhecer este senhor das paragens de Kafka e ter, de facto, vertigens, com as publicações de 50 anos da Fundação Calouste Gulbenkian...

BOOK CELL - INSTALAÇÃO de MATEJ KRÉN (1958, Trenèín, Eslováquia)

Exposição de 19/07/2006 a 31/12/2006, das 10h00 às 18h00 no hall de entrada do CAMJAP.

"Book Cell reunirá edições da Fundação Calouste Gulbenkian ao longo dos seus 50 anos, reforçando a natureza site specific do trabalho com a incorporação de um dos mais preciosos filões da história da intervenção cultural desta instituição. A memória e o saber acumulados nos livros reunidos, fechados e inacessíveis, diversos e preciosos serão potencialmente recuperados no final, quando todos puderem regressar à sua função de ser lidos, mas terão sido entretanto trabalhados como matéria escultórica e como espírito do lugar em que o artista se propõe reter-nos: um recinto hexagonal com uma passagem definida por espelhos que asseguram a vertigem da queda, a desmultiplicação ad infinitum, o pânico da desorientação espacial próprios de um infinito virtual."

sexta-feira, 17 de novembro de 2006

Antes pelo contrário

Cadavre Exquis
Cruzeiro Seixas, Mário Césariny, Fernando J. Francisco

Não vamos dizer surrealismo. Vamos dizer poesia. Porque surrealismo é o que existe de mais parecido com a poesia. Não se ensina, não é possível. O surrealismo foi um convite à poesia, ao amor, à liberdade, à imaginação pessoal. O surrealismo reuniu o romantismo, o simbolismo, o futurismo, as tradições libertárias e outras correntes, e deu-lhes um sentido. Esse sentido não vai desaparecer, ficou explícito. Aquilo a que se chamou o surrealismo existiu sempre. O surrealismo português viveu e morrerá, talvez, clandestino.
No fundo escreve-se sempre o mesmo verso. Escrever poesia é uma espécie de invocação. Uma pessoa que está convencida da inutilidade do seu grito, não grita. A poesia que escrevi é uma coisa que me foi e ainda é útil. Se o é para os outros não sei. A questão da inutilidade não se põe. Já Valéry dizia que o poema é o acto de criar, é a criação de um espaço. É um exercício de libertação em que muito daquilo que nos ensinaram não serve para nada, antes pelo contrário.
-
Mário Césarinny

quinta-feira, 16 de novembro de 2006

Amar uma vez por ano

Aterrorizada por esta observação atenta do meu amigo Preca, fiquei a pensar como seria ler um livro por ano. Ouvir uma música por ano. Amar uma única vez em 365 dias. Sorrir apenas porque é dia de Natal. Fazer a paz porque é um qualquer dia Mundial de fazer a paz. Somos assim tão domáveis? O que faz o Homem? A vontade (a paixão) de viver sem vegetar.
Chorar uma vez por ano, porque morreu alguém por quem tem que se verter uma lágrima. Viajar uma vez por ano. Ir ao cinema uma vez por ano. Passear na chuva uma vez por ano. Tudo o resto é nada e rotinas e vidas vagas. Porquê? Nada nem ninguém nos obriga a ser o que não queremos, se realmente quisermos ser nós.
Opções existem. Oportunidades criam-se. Tempo inventa-se. Não me falem do argumento financeiro porque essas pessoas que só folheiam livros sem ler e por obrigação têm gastos e gostos supérfluos muito mais caros. Compro na livraria mais próxima da minha casa livros antigos de capas desbotadas que custam menos que um maço de cigarros. Não, não são os de auto-ajuda, cada um que se ajude a si mesmo e vá à procura pelos seus próprios passos. Não há meios termos para a felicidade, é uma luta perpétua, como se não descansássemos a apanhar pedacinhos de alma todos os dias até o puzzle estar completo e o trabalho terminado. Quando nascemos só nos dão as mãos para procurar.
Não há dias de. Estava cansada ontem e li antes de dormir, um livro de um autor que não conhecia, de quem não gostei particularmente, mas que me surpreendeu, não considero que fosse uma hora de sono perdida, mas um caminho que analisei e com o qual aprendi. Virei o meu volante para outras paragens. Mas pintei mais um quadradinho de pensamento.
É preciso humildade. Dos valores que mais escasseiam, o saber não está em lugar nenhum, não é propriedade de ninguém e não tem categorias. Dá trabalho, é preciso disciplina, não confundir com memória, não confudir com raciocínio, não confundir com capacidade de análise.
Ler e escrever são um casal harmonioso, nada do que escrevemos é nosso, nenhuma procura é descontextualizada do tamanho das mãos que nos deram para procurar. Mas é preciso procurar mesmo. Ou viveremos, quem sabe, uma vez por ano, saídos de uma letargia facilitista e morna.
O que é igual a não-viver.

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

Felizes Permanências

Algumas coisas permanecem nas nossas vidas. Materialidades que se vão revestindo de pós-modernismo e fazem exactamente o mesmo, dando-nos a segurança do passo a tomar e a argumentação necessária para dele usufruir.

Desta precisei mesmo agora... noutra caixa, design preparado, códigos de barras a provar que a ciência continua dona da nossa confiança, desde que o dito analgésico analgesique devidamente...


Afinal...

[post escrito em estado letárgico, vivam os portáteis com ligações wireless, tenho uma otite à venda e muito trabalho à espera; o bom humor deve provir do cocktail de antibiótico, aspirina e afins que se destinam a tornar-me novamente um membro útil da sociedade]

quinta-feira, 9 de novembro de 2006

Como tu e eu

"Out of infinite longings rise
finite deeds like weak fountains,
falling back just in time and trembling.
And yet, what otherwise remains silent,
our happy energies—show themselves
in these dancing tears."
Rainer Maria Rilke, Initial

quarta-feira, 8 de novembro de 2006

Hespérion XXI

Ruben A. dizia "Não façam a cultura chata". Já não viveu para ver nem ouvir o maravilhoso trabalho de Jordy Savall, dos Hespérion XX - agora XXI, mudam-se os tempos, da Capella Real de Catalunya.



Tous les Matins du Monde (sont sans retour...)









Cancioneiro de Afonso X, Cantigas de Santa Maria










Esteve em Outubro na Casa da Música. Esperemos por mais uma visita a Portugal, entretanto, vamos sentindo, que o seu trabalho é para sentir. E menos divulgado que o merecido, historiador da música e cultura vividas.

Atrasada!

Desastrada, distraída, incompetente, este post devia ter entrado uma hora antes, fazemos de conta, sim?, que é dia 7 de Novembro ainda e festejamos o aniversário da minha amiga Susana, das pessoas mais bonitas que conheço. É difícil falar de amigos - dá sempre muito mais jeito falar de inimigos, podemos usar lugares comuns, expressões tradicionais, vernáculo. Falar de amigos é muito complicado, mas como a Susana é psicóloga, vai-me perceber bem. Ela sabe que eu sou um bocadinho criança. Por isso gosto do seu colo de amiga, do seu amparo. Claro, sabe também que a acho uma mulher muito inteligente (é psicóloga, convém falar de inteligência emocional por aqui...). Sabe que lhe agradeço tudo o que me ensina em cada dia. Que lembro, hoje (dia 7, dia 7) as aulas, os projectos, a orientação, os risos, as brincadeiras, os desabafos. Porque, realmente, adoro falar nos meus amigos, a minha família, a minha alegria. Com a Susana nunca temos que estar bem ou mal, podemos estar. Se precisarmos de um ombro contamos com ela, se precisarmos de uma companhia, de uma voz, de um sorriso, é a ela também que nos devemos dirigir. Quando estou triste ou sobrecarregada entra um mail giro para descomprimir, um telefonema, uma chamada de ordem: "quando tomamos café?", para a semana, sim?, ou a versão mais tradicional do "já almoçaste?" "tens dormido?" (variações dum mesmo tema, tens cuidado com os teus pintaínhos). Na altura certa, sempre - nunca sei como sabes, miúda. Tanto que corremos sem chegar a lado nenhum, és sempre calma. Tanto que nos queixamos e lamuriamos, estás sempre disposta a ouvir, paciência infinita, minha querida amiga. Sabes viver, és feliz, és lutadora. Quem diria, surpreendente Susana, que a menina tímida que me apresentaram um dia (o folheto da EPAL, lembras-te?) e com quem trabalhei e aprendi tantas coisas, tinha uns alicerces que suportam o mundo e mais meia dúzia de amigos. Que tenhas um ano muito feliz, a vida é para celebrar. E tu, minha amiga, irmãzinha, mereces tudo!

segunda-feira, 6 de novembro de 2006

Pode alguém ser quem não é?

Último ano de faculdade, acidente de viação. Fractura das vértebras c3/c4. Cegueira total. Quando coloquei o post ontem, hoje - perdem-se os dias e as horas quando se trabalha, com pessoas, quando comunicar é uma necessidade - não sabia que viria ter comigo um caso que julgava perdido por falta de apoio. Equipa maravilha, a minha, costumamos brincar com isso, post de desabafo hoje, ternura por irmãos (tens razão, Preca, a família não está no mesmo tecto), difíceis os dias quando se não é nada, quando temos que inventar tudo, reinventar pessoas, buscar no mais fundo de nós a coragem que não temos para dar a quem a tem em muito maior escala, tamanho do mundo mesmo. Da Dinamarca, de Lisboa, de Carcavelos, do Algarve, de Espanha, de Inglaterra, dos Estados Unidos, de Alfragide, respostas múltiplas, talvez mais que as lesões do acidente, estradas perigosas, já todos perdemos alguém pelo caminho das duas ou quatro rodas. Este amigo novo ganhou duas para sempre. Reconstruir o quê, como, com quê? Não é pergunta de desespero, penso enquanto escrevo, partilho, pode ser que alguém leia, pode alguém ser quem não é?
Balanço, existe voz, existe audição, existe, muita, vontade. Existe a tecnologia, terá que ser testada, não existem - obrigado público aos pais da pátria da parte dos filhos da nação - subsídios para ajudas técnicas a partir de agora. Dinheiro porquê, se as trocas são afectivas e as procuras conjuntas? Um caso, uma pessoa, que terá que reaprender ritmos de movimento, de comunicação, de contacto. Perdas irreversíveis de formas de amar - não são sempre iguais, felizmente.
Que ética, nada... É um caso, este, que podia ser eu ou quem me lê. No ano passado fiz cerca de 700 km por semana. Porque não terei sido eu? Trabalho com gente. Orgulho-me de ser gente. Opções como viver ou morrer, lutar ou partir são pessoais e não as julgo, não me julguem a mim também, se faz favor, as pedras são arriscadas de atirar, não haja ventos contrários.
Vi EXIT no DocLisboa. Vi Volver há pouco tempo. Vi Mare Adentro há algum já. Viver ou morrer, ficar ou partir. Ele quer ficar. E pode ficar, há espaço para todos. Nem sempre há humanidade. Não quer ser um peso, quer trabalhar, precisa de comunicar, tecnologias, ficção científica - uma das minhas paixões - a entrar-me pelo telefone dentro, hoje, às 16:58. Voz afectada, compromisso oral leve, será difícil? Ligeira mobilidade no mão esquerda, será suficiente? Há quem trabalhe remotamente usando varrimento de écran comandado por voz. Há quem utilize sopro para controlar o computador e, quem sabe, esteja a esta hora a escrever um post como eu, dedos parados para sempre, partilha activa na mesma medida.
São gigantes. Hoje tive a certeza que são gigantes contra quem lutamos. Não importa. Quem quer viver que tenha vida longa. O que faz uma pessoa? O movimento? A cor dos olhos? As capacidades física ou intelectuais? Quebras... Isso é o difícil. Todos estamos preparados para perder faculdades com o passar dos anos, brincamos com isso, nunca para deixarmos um corpo preso a uma alma cheia de juventude e de vontade, nunca para deixarmos de ser quem queremos ser, quem nos orgulhamos de ser. Ou estaremos? Tanto para aprender, sempre. "Eu quero." Sim. Pode alguém ser quem não é? Vamos à guerra, Miguel.

Impressão Digital (a preto e branco)

"Os meus olhos são uns olhos,
e é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos,
onde outros, com outros olhos,
nao vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos, diz flores!
De tudo o mesmo se diz!
Onde uns vêem luto e dores,
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.
Pelas ruas e estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros gnomos e fadas
num halo resplandecente!!
Inutil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos!
Onde Sancho vê moinhos,
D.Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos!
Vê gigantes? São gigantes!"


António Gedeão e Pablo Picasso. Causas.

domingo, 5 de novembro de 2006

Freelancer

From a cultural standpoint, freelancing is viewed as either above or below the social system. In keeping with Scott's original coinage, some Americans and most Europeans view freelancing as a socially elevated occupation. However, many Asian countries appear to follow Hormung by holding low regard for freelancers, often associating the practice with personal failure (an inability to find work with a major employer) and even criminality (ninja = one who uses the art of remaining unperceived)
(retirado em estilhaços da wikipedia)

Idealistas ou pontos de fuga? Deixar o sistema ou juntar-se a outro? Facilitismo? É bom não ter quem mande em nós. Ilusão, e das grandes, claro, que os contratos não são de entidades empregadoras, sociedades ou casamentos. Sózinhos assumidos, freelancers no trabalho e/ou na vida, entregam-se e dependem, os contratos têm sempre duas faces como as moedas, as entregas apenas uma mão que se estende.

De cansaços ninguém quer saber, com os nossos sentimentos lidamos nós mesmos, com a vontade combatemos todos os dias, que tabuletas diversas se nos apresentam e, ninguém, mesmo ninguém, ajuda a escolher, ou pode escolher, por nós. Pela esquerda ou pela direita, quem sabe se por cima dos telhados ou cavando um túnel no chão, voar se imposssível não nos fora - Ícaro deu-se mal, deve ter morrido feliz. Eu que acredito no Pai Natal, na Fada dos Dentes e no Noddy, acho que compensa lutar pelo que se acredita e fugir de facilitismos, com todas as dores que possam vir por arrasto. Viriam de qualquer forma, assim que venham por um motivo escolhido.

Faz de conta


Joan Miró
(1893 - 1983)
Bird Rising, Bird Descending in a Starry Night

"Faz de conta que és abelha
Eu serei a flor mais bela
Faz de conta que sou cardo
Eu serei somente orvalho
Faz de conta que sou potro
Eu serei sombra em Agosto
Faz de conta que sou choupo
Eu serei pássaro louco,
pássaro voando e voando
sobre ti vezes sem conta
Faz de conta, faz de conta."

Eugénio de Andrade

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

Ternas alquimias




Não interessa como se faz o caminho, importante é ir e estar. Dia feliz passado na Fil, em encontro de tecnologias, das que servem para integrar e aproximar os homens, nas suas diferenças e potencialidades. Lembro-me agora de palavras de ternura escritas por quem sabe que os corpos têm valor na sua individualidade, que as vozes são todas as mesmas, os olhares todos completos, os sentidos e sentires sempre os suficientes.

Jorge Casimiro, grande poeta...

"Nas rotas do teu corpo
cumprem- se traços de gazela
escultura irreal
como irreal
é a cidade que te habita
talhada a golpes de maço
com a delicadeza de quem esculpe libélulas transparências
arranha- céus frágeis que baloiçam firmes ao vento
soltos à nortada de um suspiro
um respirar nocturno
e nas montras iluminadas viajam formas fugidias
fadas e monstros
duendes em transe
poção de druida
velho mago inspirado
que lança palavras secretas
ao poço de um último poema
em gestos voláteis de ternas alquimias"

As que unem os homens... (com)passos diversos, rumo, sempre, a um mundo mais verdadeiro.

Post para Galileo e para todos os que acreditam na verdade

Julgamento de Galileo, Douglas Linder

My dear Kepler, what would you say of the learned here, who, replete with the pertinacity of the asp, have steadfastly refused to cast a glance through the telescope? What shall we make of this? Shall we laugh, or shall we cry? - Carta de Galileo Galilei a Johannes Kepler
Poema para Galileo

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.

Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…
Eu sei… eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!

Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar- que disparate, Galileo!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação-
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se tivesse tornado num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas- parece-me que estou a vê-las -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e descrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai Galileo!
Mal sabem os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.

Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto incessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa do quadrado dos tempos.

António Gedeão
(porque há manhãs em que se sorri para a chávena de café e se acredita que os Galileos existem e até sorriem; os outros... caem ininterruptamente do alto inacessível das suas alturas)

Méliès tinha razão em sonhar.

Vale a pena sonhar. Vale a pena a beleza. Trabalhar, sempre, que os sonhos constroem-se. Pessoais, uma questão de perspectiva ou de ritmo [a vida em fotogramas devia ser engraçada]. Sonhos despojados de medos, cheios de encantos e de surpresas. Só há uma vida que se saiba. E é para sorrir. Talvez a Lua seja mesmo assim. E quem sabe se a Terra será redonda? Também, que importa? Tudo não passa de um castelo de cartas. Pelo menos, no meu País das Maravilhas.

quinta-feira, 2 de novembro de 2006

Nós que aqui estamos (longe do Líbano)

"Em uma guerra não se matam milhares de pessoas.
Mata-se alguém que adora esparguete,
outro que é gay,
outro que tem uma namorada.
Uma acumulação de pequenas memórias..."

Cristian Boltanski, citado por Marcelo Mazagão no filme Nós que Aqui Estamos.
--


[Nunca se beija em vão, mas não se devia beijar em dor.]




[Nunca se deviam tomar caminhos não escolhidos. ]


[Nunca se devia reflectir com ampulheta na alma e arma ao ombro.]

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Vinicius de Moraes

Fantástico homem, operário em construção, diplomata em fuga de formalismos, o brasileiro branco mais negro que já viveu. Homenagem merecida por outros tantos senhores da cultura brasileira.

Documentário urgente a amantes de poesia, música, história, cultura, intervenção, amantes em geral...

Afinal, "Quem pagará o enterro e as flores, se eu me morrer de amores?"

segunda-feira, 30 de outubro de 2006

(quase) azul

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se enlaçou mas não voou...

Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol - e fora brasa, -- -------______-- --- Blue Rose, c. 1922
Um pouco mais de azul - e fora além. ------ ------------------------ ---- -- Piet Mondrian
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

-- Mário de Sá-Carneiro

Crianças 2


Criança, eu, riscos assumidos, amizades eternas, palavras doces e memórias, vinda de colo de mãe e pai, conservados agora em amor e cuidados (quem cresce ou vive sem amor?). Saltar a cerca, passar o rio, correr para me apanharem, vivemos todos em jogos de gato e rato. E gostamos. Tinha um triciclo - possivelmente no sotão de casa dos meus pais - com uma campaínha, que tocava desalmadamente como se ao fugir de casa para longíssimo - tanto quanto pudesse pedalar até me apanharem - estivesse no Marquês de Pombal em hora de ponta...
--
Caía, claro, na velocidade da fuga, por caminhos irregulares, por caminhos marginais, não perdi essa vertente, não que os caminhos laterais sejam necessariamente os verdadeiros, mas são, sempre, uma tentação. E uma criança nunca resiste a uma tentação.
--
Caía também ao trepar a árvores que então me pareciam altíssimas, perto do céu, onde gostava de ler os meus livros, pensar nos meus sonhos, ver o mundo ao contrário, e obviamente, esfolar os joelhos, como todas as crianças que se prezam. Entre a repreensão da roupa rasgada e o beijo no dói-dói da filha minorca, havia sempre um colo aguardado com ânsia.
--
Não caibo já no meu triciclo, mesmo que passasse a comer menos ainda, seria difícil. Trepar às árvores, como saltar as cercas, ainda são aventuras que agora partilho com filhos e sobrinhos. Aventuras de pequeninos que acreditam que valem bem umas esfoladelas e um puxão de orelhas pela adrenalina de viver.
--
Afinal, fugimos para nos encontrarmos connosco e com os nossos sorrisos. Talvez, se tentar, ainda consiga encaixar no triciclo, desenferrujar a campaínha e passar mesmo no Marquês de Pombal, manifestação pela infância, viva e não melancólica. Os historiadores têm destas coisas, gostam de viver a vida plena enquanto estudam os mortos. E têm, geralmente, bom sentido de humor...

domingo, 29 de outubro de 2006

Bom dia

Vincent Van Gogh, Weatfield with Rising Sun

sábado, 28 de outubro de 2006

Crianças 1

"Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido
Chegava o mês de Maio e era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido
E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer
Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer"

Ruy Belo

sexta-feira, 27 de outubro de 2006

O romance da raposa

"Havia três dias e três noites que a Salta-Pocinhas - raposeta matreira, fagueira, lambisqueira - corria os bosques, farejando, batendo mato, sem conseguir deitar a unha a outra caça além duns míseros gafanhotos, nem atinar com abrigo em que pudesse dormir um soninho descansado"


Uma das histórias da minha infância. Uma das minhas procuras de sempre (ficou-me até hoje, as nossas identidades são, muito mais que pensamos, construídas).

Faz falta imaginar? Continuo a correr, nestes dias por quem me levou pela mão até à toca de um sonho de uma raposa bem ruiva, de espírito mordaz e actuação eficiente. Sonhamos com o que nos falta? Com o imaginário que nos deram ou com o que nos fez falta? Terei lido histórias suficientes ao João, que as lê já sózinho? Nunca é demais ler aos nossos filhos. Nunca me leram de mais. Leitora compulsiva desde cedo, letras como asas, estrelinhas que saltam do pijama e dançam na luz cada vez mais fraca do candeeiro que apaga o dia por mãos que amamos e que são sempre protectoras. Estou-me a lembrar de todos os recentes amiguinhos que conheci na blogosfera, a Matilde, o JP, a Lobita, o Pedro, estou-me a lembrar (tantas vezes me lembro) de Soeiro Pereira Gomes e dos seus "homens que nunca foram meninos", na belíssima dedicatória de Esteiros. Estou-me a lembrar - tantas memórias hoje, outras tantas homenagens, do trabalho de António José Forte com as Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian.

(ontem ao passar na Avenida de Berna reparei, "eu que não me comovo por tudo e por nada" que o edifício do serviço de bibliotecas tinha sido demolido e estava lá um vago de páginas e de trabalhos de décadas da nossa cultura, com uma parede [muro] de riscas de cores, como a pedir perdão)

É sempre de recordar que a raposa Salta-Pocinhas recorria a diversos recursos para conseguir sobreviver num mundo que não lhe era meigo, o que nos devia alertar o suficiente para que as leituras para as raposinhas não sejam feitas sempre da mesma forma, os nossos sentidos e os nossos corpos não funcionam todos igualmente, a natureza não tira fotocópias, há que levar o sonho para perto dos corações. Ler com os olhos, com as mãos, com os ouvidos.

***

Voltando ao Romance da Raposa...

Faltam-me, pois, os míseros gafanhotos (bom, talvez não gafanhotos, necessariamente), mas um pequeno-almoço de jeito, um abrigo para onde possa fugir do mundo, e o soninho que seria bem-vindo, em tempo de guerra.

No entanto - segredo-vos - parece-me que encontrei a raposa ruiva, e isso basta-me, neste momento, para ser feliz...

terça-feira, 24 de outubro de 2006

Maiores que o pensamento, sempre!


É bom ter amigos. É bom orgulharmo-nos deles, talvez seja muito feminino, muito maternal. Mas a verdade é que tenho mesmo muito orgulho nos meus amigos, que são, realmente, a minha família. O Filipe é um deles. E a sua equipa familiar, casa (lar) onde é impossível não estarmos bem pelo ambiente de carinho e de acolhimento, em fases de lágrimas ou de sorrisos. Ombros, os nossos amigos. Lutas, solidariedades, entre pares vivemos (não entre primos...). Família.

Além de ser um amigo notável é um excelente professor. Falo com propriedade, tive aulas com ele, raros têm sido os professores que me têm aparecido com sabedoria e humildade destas, com as aulas preparadas deste modo, com o espírito aberto para partir à descoberta, incorporando o conceito de aprendizagem naturalmente e como um caminho a partilhar entre todos).

Também um excelente fotógrafo, vejam a exposição anunciada acima. E leiam, quando passarem pela BN (no nosso país continuam a ser ignoradas para edição as teses de qualidade): Nacionalismo e pictorialismo na fotografia portuguesa na 1a metade do século XX: o caso exemplar de Domingos Alvão / Filipe André Cordeiro de Figueiredo, Lisboa: 2000.

domingo, 22 de outubro de 2006

Estrela do mar


"Numa noite em que o céu tinha um brilho mais forte
e em que o sono parecia disposto a não vir
fui estender-me na praia sozinho ao relento
e ali longe do tempo acabei por dormir
Acordei com o toque suave de um beijo
e uma cara sardenta encheu-me o olhar
ainda meio a sonhar perguntei-lhe quem era
ela riu-se e disse baixinho: estrela do mar
Sou a estrela do mar
só a ele obedeço, só ele me conhece
só ele sabe quem sou no princípio e no fim
só a ele sou fiel e é ele quem me protege
quando alguém quer à força
ser dono de mim
Não sei se era maior o desejo ou o espanto
mas sei que por instantes deixei de pensar
uma chama invisível incendiou-me o peito
qualquer coisa impossível fez-me acreditar
Em silêncio trocámos segredos e abraços
inscrevemos no espeço um novo alfabeto
já passaram mil anos sobre o nosso encontro
mas mil anos são pouco ou nada para a estrela do mar"

Jorge Palma

sábado, 21 de outubro de 2006

Segunda fase

Há sempre uma fase de início e uma fase que se segue. Ontem começou uma segunda fase do meu trabalho de mestrado. Palavra de ordem: trabalho. Mas também outras, preciosas como pérolas, arremessadas em generosidade e ímpeto devido por quem anda, há mais tempo, em caminhos de escrita e de procura. Varandas sobre o mundo. Fases de incredulidade em que achamos que nunca vamos comseguir abrir a janela, numa infância em que há sempre uma mão maior que a nossa que chega ao fecha mais alto e nos permite, mais que ver, respirar o saber do mundo, superar o sonho e cheirar a manhã. (Re)nascer todos os dias, em perspectivas diferentes, todos os dias a janela é a nossa, mas a paisagem difere e enriquece, os nossos olhos também mudam, os sentidos iludem e acompanham-nos na viagem do conhecimento. Todos os dias da nossa vida, entramos numa segunda fase, porque temos todos um passado. Talvez não tão diferente como pensamos, que o indivíduo e a identidade são conceitos com as costas largas. Talvez não com tanta criatividade ou genialidade como, no fundo, gostaríamos (egoístas disfarçados, desesperados à procura de um sorriso ou de uma aprovação). Estamos sempre a escrever a mesma história, o mundo será assim tão diferente? A preto e branco, que as cores, essas, são nossas. Como num livro de colorir.

quinta-feira, 19 de outubro de 2006

Boris Vian

Reencontrado pela manhã, o que é certamente uma boa forma de começar o dia. Obrigado.

Procurado depois em saudade, saboreado ao café, aquele em que os princípes procuram açúcar no fundo. Eu não tenho sangue azul e não ponho açúcar no café, divergência de somenos importância, se o procuro na vida, não me levará certamente o autor a mal que não siga o conselho, ele, que não seguia conselhos de ninguém... "Le plus clair de mon temps, je le passe à l'obscurcir."

Que escrevia livros de grande beleza como:





E escrevia com sentido e com os sentidos:

"Mieux vaudrait apprendre à faire l'amour correctement que de s'abrutir sur un livre d'histoire."
Herbe rouge

"Sexuellement, c'est-à-dire avec mon âme."
L'écume des jours