sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Trabalho

Há vários tipos de trabalho. Não considero trabalho o que faço. É mais uma construção, vagarosa, um processo, um caminho, um abrir de sulcos no meu próprio ventre. Tudo o que tenho construído, se algo está de pé, sai do meu próprio coração e erradica sobretudo da escrita associada à observação. Para o melhor e para o pior. Porque é a mim que me observo, não como Narciso, mas num lamento de mais não alcançar com as palavras que demoram a crescer e, muitas, morrem antes de ver a luz do dia.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Ponto por ponto

Acabo de transcrever um pequeno texto para Braille. Assustadoramente fácil, mesmo num dia frio em que as mãos gelam sobre as pequenas teclas da máquina - sim, foi escrito em máquina. 
Interrogo-me a quem terá pertencido esta máquina... Há objectos do quotidiano que transitam de geração, outros entre amigos ou entre a docilidade de relações amorosas, ofertas, doações, heranças. E depois há objectos sem história conhecida que nos caem no colo e nos preenchem projectos.
Esta máquina Braille é alemã, provavelmente dos anos 20 do século 20 (gosto de escrever números iguais, saltei o romano propositadamente). Leipzig tinha editoras e tinha um grande asilo para cegos. Logo, fabricava instrumentos de trabalho e de ensino. Faz sentido. Mas como foi feito o seu percurso para Portugal? Quem a vendeu, encomendou, usou? Quem, finalmente, a despejou na feira em que a encontrei, sózinha e escura para quem passava, pedaço descarnado de ferro com sete teclas, e brilhante e luminosa para mim, que tanto precisava dela? Foi o chamado bom encontro e quem a vendia teve a simpatia de descontar no preço o trabalho que lhe daria carregar o objecto pesado e inútil novamente para casa ou para o armazém. Quem usa máquinas Braille? Como se pode criar uma relação de empatia, de camaradagem com um adereço de trabalho sem história conhecida, cheio de história muda, que agora se dedica a fazer histórias, quem sabe, para uma criança cega vir a ler um dia?