sexta-feira, 24 de fevereiro de 2006

O meu livro por um marcador!


Ideários, cheiros, lembranças, associações, num pedaço de cartão ou de tecido ou de metal - as variantes são inúmeras - mas sobretudo o amor da leitura simbolizado num marcador de livro.

Estigma é marca, diz Goffman, mas marca pode ser também paragem. Para pensar, para descansar, para reflectir, para escrever. Quantos marcadores usaria D. Quixote, homem de releituras, na sua biblioteca?

Gosto de marcadores e colecciono-os. Feitos à mão, estampados com objectivos comerciais de divulgação editorial, produzidos por entidades e associações diversas para angariar fundos, por artistas para marcar a sua criatividade em mais uma forma de olhar. Todos têm um ponto de união: a diferença entre a página querida ou a separação entre a página que já se leu e a que se segue. De qualquer forma, a identificação de um ponto de leitura ou de escrita, com uma componente estética forte, com uma componente afectiva maior ou menor.

São lanças que abrem as defesas dos textos a que ainda não chegámos. São asas, são mapas que nos conduzem para caminhos conhecidos e necessários - nunca tiveram urgência em reler algo?

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

Um carro cheio de amigos

É bom, em fim de dia, ter um carro cheio de amigos quando se regressa a casa. Dias de trabalho intensos, desgastantes. Quando o sol se abate com o nosso desejo de repouso, damos por nós com o carro cheio de amigos. Até um cão no porta-bagagens (evidentemente aberto...). Um filho que adoramos. Dois amigos, um que partilhou o seu dia de trabalho e os seus projectos connosco, outro que passou por perto para nos dar um exemplar do seu último - belíssimo trabalho - fotográfico. Um colega que vai aos correios e nos acompanha. A solidão só existe quando afastamos os outros. Ou então é o sol que nos sorri com tanto carinho à volta e uma vida tão cheia de ideiais, sentimentos, projectos, interesses. Tanto sol numa carrinha suja e velhota, com umas quantas amolgadelas, que sempre transportou alegria. Tantos e tão bons amigos!

I wait

I wait
1872
Julia Margaret Cameron.
(Calcutá, 1815 - Ceilão, 1879)

terça-feira, 14 de fevereiro de 2006

São Valentim

A Igreja Católica regista pelo menos dois santos com o nome de Valentim. Um seria bispo de Interamna; outro sacerdote em Roma. É possível que se trate do mesmo santo, que terá sido levado em martírio da sua cidade para a capital do Império. Além disso, segundo o “Martirológio Romano”, ambos foram decapitados na Via Flaminia e têm a sua festa a 14 de Fevereiro. Conta a lenda que Valentim era um padre que, no século III d.C., casava, em segredo, os jovens pares de namorados. O Imperador Cláudio II, reconhecendo que os melhores soldados eram solteiros, tinha proibido os mancebos de contraírem matrimónio. Valentim, ao ousar celebrar casamentos, foi descoberto, preso e condenado à morte por decapitação. Actualmente, a Igreja de Santa Praxedes, em Roma, guarda as relíquias do santo e é um destino de romaria de muitos pares de namorados.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2006

Gabriel Garcia Marquez - carta de despedida

"Se por um instante Deus se esquecesse de que sou uma marioneta de trapo e me oferecesse mais um pouco de vida, não diria tudo o que penso, mas pensaria tudo o que digo. Daria valor às coisas, não pelo que valem, mas pelo que significam. Dormiria pouco, sonharia mais, entendo que por cada minuto que fechamos os olhos, perdemos sessenta segundos de luz. Andaria quando os outros param, acordaria quando os outros dormem. Ouviria quando os outros falam, e como desfrutaria de um bom gelado de chocolate!
Se Deus me oferecesse um pouco de vida, vestir-me-ia de forma simples, deixando a descoberto, não apenas o meu corpo, mas também a minha alma. Meu Deus, se eu tivesse um coração, escreveria o meu ódio sobre o gelo e esperava que nascesse o sol. Pintaria com um sonho de Van Gogh sobre as estrelas de um poema de Benedetti, e uma canção de Serrat seria a serenata que ofereceria à lua. Regaria as rosas com as minhas lágrimas para sentir a dor dos seus espinhos e o beijo encarnado das suas pétalas...
Meu Deus, se eu tivesse um pouco de vida... Não deixaria passar um só dia sem dizer às pessoas de quem gosto que gosto delas. Convenceria cada mulher ou homem que é o meu favorito e viveria apaixonado pelo amor. Aos homens provar-lhes-ia como estão equivocados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem, sem saberem que envelhecem quando deixam de se apaixonar! A uma criança, dar-lhe-ia asas, mas teria que aprender a voar sozinha. Aos velhos, ensinar-lhes-ia que a morte não chega com a velhice, mas sim com o esquecimento.
Tantas coisas aprendi com vocês, os homens... Aprendi que todo o mundo quer viver em cima da montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está na forma de subir a encosta. Aprendi que quando um recém-nascido aperta com a sua pequena mão, pela primeira vez, o dedo do seu pai, o tem agarrado para sempre. Aprendi que um homem só tem direito a olhar outro de cima para baixo quando vai ajudá-lo a levantar-se. São tantas as coisas que pude aprender com vocês, mas não me hão-de servir realmente de muito, porque quando me guardarem dentro dessa maleta, infelizmente estarei a morrer..."

Do Livro do Desassossego

"Viver do sonho e para o sonho, desmanchando o Universo e recompondo-o distraidamente conforme mais apraza ao nosso momento de sonhar. Fazer isto consciente, muito consciente, da inutilidade de o fazer. Ignorar a vida com todo o corpo, perder-se da realidade com todos os sentidos, abdicar do amor com toda a alma. Encher de areia vã os cântaros da nossa ida à fonte e despejá-los para os tornar a encher e despejar, futilissimamente.
Tecer grinaldas para que, logo que acabadas, as desmanchar, totalmente e minuciosamente.
Pegar em tintas e misturá-las na paleta sem tela ante nós onde pintar. Mandar vir pedra para burilar sem ter buril nem ser escultor. Fazer de tudo um absurdo e requintar para fúteis todas as nossas estéreis horas. Jogar às escondidas com a nossa consciência de viver.
Ouvir as horas dizer-nos que existimos com um sorriso deliciado e incrédulo. Ver o Tempo pintar o mundo e achar o quadro não só falso mas vão."

Bernardo Soares

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2006