terça-feira, 28 de novembro de 2006

Afundar

Turner, 1805
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Mais uma palavra mal tratada. Como as pessoas, as palavras podem ser doces ou amargas, bem ou mal tratadas, evoluir ou regredir, ser amadas ou odiadas.
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Afundar um barco, afundarmo-nos na melancolia, afundarmo-nos em trabalho. (Mergulhar?) afundar é mais forte. Digo as palavras conforme as escrevo, gosto mais de ler que de dizer, de viver que de pensar. E no entanto sou tão incoerente como qualquer dicionário daqueles que demoram uma vida a ler e estão sempre errados, sempre com certezas, sempre fora de contexto, sempre limitados a uma visão, perspectiva, cultura.
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Afundar-nos em sonhos, mergulhar no que não pode ser verdade, abraçar a vida, acreditar. Como uma criança que se naufraga nos braços que lhe dão calor. Mesmo fora de tempo e de sítio, baralhando a ordem natural das coisas, fora do expectável, num poço de amor e não de ódio.
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Acreditar muito, de olhos fechados, que é possível. Porque, às vezes, até é.

domingo, 26 de novembro de 2006

Imortalidade

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"- O que é a loucura?
- É a base de todas as paisagens."
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Mário Cesariny
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(09-08-1923 - 26/11/2006)

sábado, 25 de novembro de 2006

Liberdade, igualdade, fraternidade


Sábia Mafalda. Há duas horas atrás adormecia um bebé. Pensava, entre chuchas e biberons na pessoa que ali estaria em potência, na pessoa que sairia daquela Carlota. Pensava noutro casal amigo que se prepara para adoptar uma criança, sem fazer questão de raça ou de qualquer outra característica. Pensava obviamente demais, o que nos faz, o que nos fez? Nós que acreditamos em utopias e achamos que a humanidade e o idealismo transbordam das nossas almas e das nossas palavras, nós os das certezas, nós os crescidos com complexo de Peter Pan, que vemos filmes para crianças feitos para adultos melancólicos e nos orgulhamos em citar Alice e o Principezinho e no fundo, mãozinha na consciência, somos tão preconceituosos como o mais assumido dos racistas, tão egoístas como os que apontamos a dedo.
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Na minha última aula, falava o meu professor (um Professor verdadeiro, dos que faz pensar, o que também já vai sendo raro) da importância em naturalizar a arte na educação. E nas dificuldades que algo tão simples traria ao nosso sistema educativo. Todos iguais em quê, se à partida as circunstâncias são mesmo todas diferentes? Tanto que tenho falado sobre isso em conversas soltas, tanto que me desconheço a criticar hábitos diferentes e a apontar o dedo a formas de estar diversas daquela em que me sinto bem. A coexistência é difícil, as comunidades humanas são encruzilhadas complexas, respeitar é complexo. Também o respeito pela diferença é feito de escolhas.
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Os Resistência cantam que quando um homem nasce nasce selvagem, olho para os meus braços agora sem Carlota e penso que não. Demasiadas marcas em todos nós, nenhum homem é igual nem quando nasce. Não devia ser um drama, infelizmente é. Porque se cultiva a diferença como defeito, não como valor de liberdade. Porque a diferença passiva, oprimida ou complexada é terrível e não trabalhamos em conjunto pela diferença activa, pela escolha válida, pela aceitação do outro.
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Educação pela arte. Naturalizar potências que podem estar e permanecer castradas pela educação. Talvez ajude. Talvez abra horizontes. E antes, os direitos básicos? Faria sentido. O carinho? Sempre. O respeito? Óbvio. Será? Os pontos de interrogação, essas facas curvas que nos obrigam a pensar entre dois suspiros de criança que adormece. No futuro, aquele pedaço de tempo que nunca vivemos na prática, o provir eterno e cheio de dúvidas, lutamos por ficção científica.
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Começar por gostar de viver talvez seja um bom princípio. Quem gosta de viver cultiva a harmonia. Quando rodamos as cores do arco-íris obtemos uma cor única, a da paz, o que é mais belo, a diferença ou a igualdade? Talvez o direito de opção. Rodemos pois a paleta...

quinta-feira, 23 de novembro de 2006

Utopia

Woodcut by Ambrosius Holbein for a 1518 edition of Utopia.
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"Cidade
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
Gente igual por fora
Onde a folha da palma
afaga a cantaria
Cidade do homem
Não do lobo, mas irmão
Capital da alegria
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Braço que dormes
nos braços do rio
Toma o fruto da terra
É teu a ti o deves
lança o teu desafio
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Homem que olhas nos olhos
que não negas
o sorriso, a palavra forte e justa
Homem para quem
o nada disto custa
Será que existe
lá para os lados do oriente
Este rio, este rumo, esta gaivota
Que outro fumo deverei seguir
na minha rota?"
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José Afonso

quarta-feira, 22 de novembro de 2006

Uma questão de género

Tenho muito mau feito. Contectei demasiado de perto nos últimos dias com sobrecargas grandes de situações humanamente inaceitáveis, incompetências, prepotências e outras palavras que me arrepiam.
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Levo tudo demasiado a sério. Interiorizo, incorporo, canibalizo as situações. Não suporto injusticas. Sinto-as na pele. Sou lutadora por profissão. O problema é que os meus pais me deram demasiadas camadas de sensibilidade nos acabamentos. Ou então não...
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Quando choramos limpamos as lágrimas, quando caímos levantamo-nos, quando estamos tristes sorrimos. Nada como baralhar a vida antes que ela dê cabo de nós (o que inevitavelmente fará, mas vamos fintando).
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Hoje, cansada e revoltada com estas questões, fiz o que não devia ter feito: desabafei e sobrecarreguei sem necessidade (porque o partilhar me está no sangue) pessoas que me rodeiam e que me amam muito. Todos me ajudaram, a todos o meu carinho, o meu amor, o meu obrigado.
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Inevitavelmente, the oscar goes to...
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Uma das pessoas que melhor me conhece e melhor me lê em todo o mundo: o meu filho João. Por me dizer frontalmente para não guardar os problemas em mim mas procurar as soluções (sábios, os miúdos, sobretudo este, quando estou em tempestade poucas pessoas com amor à vida me diriam destas).
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Também por me lembrar esta tira... e me fazer rir (obrigado, companheiro de caminhada, conheces-me mesmo muito bem).
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Assumidamente, uma questão de género...

terça-feira, 21 de novembro de 2006

Uma questão de perspectiva

Alexandre Rodchenko


Subo ao terraço mais alto, olho o mundo em tarde cansada que cai. Cada palavra é um eco, cada folha levada pelo vento uma carta náufraga. Pássaros soltos largam sonhos dos ninhos, eucaliptos fora. Os aromas. Brincar com as pedras e fazer desenhos no chão.
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Subo ao terraço mais alto, aventureira frágil num mundo conquistado e fácil que não é meu e onde me estranho. Falta-me a mão que guia a segurança dos passos que se tomam nas direcção todas, rosas dos ventos cobertas por lágrimas - serão lágrimas? - obrigando o olhar a saltar do terraço mais alto que almeja ser a varanda sobre o mundo.
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Subo ao terraço mais alto e penso que a altura é apenas distância e isolamento, a beleza, ilusória, os sonhos, crenças desesperadas de quem nada mais tem que desesperar. Os homens brincam aos regressos a casa, falam de coisas sérias como futebol e política, em cada carro, em cada passo, em cada terraço alto, em cada varanda segura como um conceito questionável.
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Subo ao terraço mais alto onde todos querem tentar voar e ninguém salta, ninguém arrisca, melhor ver a vida levemente, corajosamente debruçados, curiosos dos outros que não somos nós, que passam em baixo, distância segura, ilusão certa, felicidade garantida, pois que há uma varanda que nos segura e separa, de pedra fria, que nos permite ver o mundo do alto do terraço mais alto, fechados em nós, sempre, onde subimos, em segurança, onde nos mandaram subir e nem sabemos porquê...

segunda-feira, 20 de novembro de 2006

Little things DO make the difference

Das pessoas mais belas que tenho conhecido, a Josélia, mulher de coragem, cheia de vida, rodeada de amor e vontades fortes e agora, felizmente, a fazer-nos companhia na blogosfera!

Com informações muito úteis, mensagens positivas e um sorriso sempre lindo a acompanhar.

Um enorme abraço, Josélia.

Desejo


Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar.
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Sophia de Mello Breyner

domingo, 19 de novembro de 2006

...



Dança como Nijinsky, chora as lágrimas de Man Ray, foge das mãos como areia, louca, esconde-se no oiro do campo, em molhos de sangue espalhados que tardam ver, abandona-se ao vento só para sentir, arranca as próprias raízes para caminhar no sonho que traça quando encontra a paixão em que foi desenhada. É a mais bela das flores, tem escritas a rubro todas as palavras e entrega-se, sempre. Entrega-se.

sábado, 18 de novembro de 2006

Em queda, livros.


Seria o poço dos sonhos de Alice? Não ia em busca do coelho branco, mas das lebres e dos galgos de Amadeo (afinal estão na sede, pisos 0 e 1). Engano fantástico de percurso que me permitiu conhecer este senhor das paragens de Kafka e ter, de facto, vertigens, com as publicações de 50 anos da Fundação Calouste Gulbenkian...

BOOK CELL - INSTALAÇÃO de MATEJ KRÉN (1958, Trenèín, Eslováquia)

Exposição de 19/07/2006 a 31/12/2006, das 10h00 às 18h00 no hall de entrada do CAMJAP.

"Book Cell reunirá edições da Fundação Calouste Gulbenkian ao longo dos seus 50 anos, reforçando a natureza site specific do trabalho com a incorporação de um dos mais preciosos filões da história da intervenção cultural desta instituição. A memória e o saber acumulados nos livros reunidos, fechados e inacessíveis, diversos e preciosos serão potencialmente recuperados no final, quando todos puderem regressar à sua função de ser lidos, mas terão sido entretanto trabalhados como matéria escultórica e como espírito do lugar em que o artista se propõe reter-nos: um recinto hexagonal com uma passagem definida por espelhos que asseguram a vertigem da queda, a desmultiplicação ad infinitum, o pânico da desorientação espacial próprios de um infinito virtual."

sexta-feira, 17 de novembro de 2006

Antes pelo contrário

Cadavre Exquis
Cruzeiro Seixas, Mário Césariny, Fernando J. Francisco

Não vamos dizer surrealismo. Vamos dizer poesia. Porque surrealismo é o que existe de mais parecido com a poesia. Não se ensina, não é possível. O surrealismo foi um convite à poesia, ao amor, à liberdade, à imaginação pessoal. O surrealismo reuniu o romantismo, o simbolismo, o futurismo, as tradições libertárias e outras correntes, e deu-lhes um sentido. Esse sentido não vai desaparecer, ficou explícito. Aquilo a que se chamou o surrealismo existiu sempre. O surrealismo português viveu e morrerá, talvez, clandestino.
No fundo escreve-se sempre o mesmo verso. Escrever poesia é uma espécie de invocação. Uma pessoa que está convencida da inutilidade do seu grito, não grita. A poesia que escrevi é uma coisa que me foi e ainda é útil. Se o é para os outros não sei. A questão da inutilidade não se põe. Já Valéry dizia que o poema é o acto de criar, é a criação de um espaço. É um exercício de libertação em que muito daquilo que nos ensinaram não serve para nada, antes pelo contrário.
-
Mário Césarinny

quinta-feira, 16 de novembro de 2006

Amar uma vez por ano

Aterrorizada por esta observação atenta do meu amigo Preca, fiquei a pensar como seria ler um livro por ano. Ouvir uma música por ano. Amar uma única vez em 365 dias. Sorrir apenas porque é dia de Natal. Fazer a paz porque é um qualquer dia Mundial de fazer a paz. Somos assim tão domáveis? O que faz o Homem? A vontade (a paixão) de viver sem vegetar.
Chorar uma vez por ano, porque morreu alguém por quem tem que se verter uma lágrima. Viajar uma vez por ano. Ir ao cinema uma vez por ano. Passear na chuva uma vez por ano. Tudo o resto é nada e rotinas e vidas vagas. Porquê? Nada nem ninguém nos obriga a ser o que não queremos, se realmente quisermos ser nós.
Opções existem. Oportunidades criam-se. Tempo inventa-se. Não me falem do argumento financeiro porque essas pessoas que só folheiam livros sem ler e por obrigação têm gastos e gostos supérfluos muito mais caros. Compro na livraria mais próxima da minha casa livros antigos de capas desbotadas que custam menos que um maço de cigarros. Não, não são os de auto-ajuda, cada um que se ajude a si mesmo e vá à procura pelos seus próprios passos. Não há meios termos para a felicidade, é uma luta perpétua, como se não descansássemos a apanhar pedacinhos de alma todos os dias até o puzzle estar completo e o trabalho terminado. Quando nascemos só nos dão as mãos para procurar.
Não há dias de. Estava cansada ontem e li antes de dormir, um livro de um autor que não conhecia, de quem não gostei particularmente, mas que me surpreendeu, não considero que fosse uma hora de sono perdida, mas um caminho que analisei e com o qual aprendi. Virei o meu volante para outras paragens. Mas pintei mais um quadradinho de pensamento.
É preciso humildade. Dos valores que mais escasseiam, o saber não está em lugar nenhum, não é propriedade de ninguém e não tem categorias. Dá trabalho, é preciso disciplina, não confundir com memória, não confudir com raciocínio, não confundir com capacidade de análise.
Ler e escrever são um casal harmonioso, nada do que escrevemos é nosso, nenhuma procura é descontextualizada do tamanho das mãos que nos deram para procurar. Mas é preciso procurar mesmo. Ou viveremos, quem sabe, uma vez por ano, saídos de uma letargia facilitista e morna.
O que é igual a não-viver.

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

Felizes Permanências

Algumas coisas permanecem nas nossas vidas. Materialidades que se vão revestindo de pós-modernismo e fazem exactamente o mesmo, dando-nos a segurança do passo a tomar e a argumentação necessária para dele usufruir.

Desta precisei mesmo agora... noutra caixa, design preparado, códigos de barras a provar que a ciência continua dona da nossa confiança, desde que o dito analgésico analgesique devidamente...


Afinal...

[post escrito em estado letárgico, vivam os portáteis com ligações wireless, tenho uma otite à venda e muito trabalho à espera; o bom humor deve provir do cocktail de antibiótico, aspirina e afins que se destinam a tornar-me novamente um membro útil da sociedade]

quinta-feira, 9 de novembro de 2006

Como tu e eu

"Out of infinite longings rise
finite deeds like weak fountains,
falling back just in time and trembling.
And yet, what otherwise remains silent,
our happy energies—show themselves
in these dancing tears."
Rainer Maria Rilke, Initial

quarta-feira, 8 de novembro de 2006

Hespérion XXI

Ruben A. dizia "Não façam a cultura chata". Já não viveu para ver nem ouvir o maravilhoso trabalho de Jordy Savall, dos Hespérion XX - agora XXI, mudam-se os tempos, da Capella Real de Catalunya.



Tous les Matins du Monde (sont sans retour...)









Cancioneiro de Afonso X, Cantigas de Santa Maria










Esteve em Outubro na Casa da Música. Esperemos por mais uma visita a Portugal, entretanto, vamos sentindo, que o seu trabalho é para sentir. E menos divulgado que o merecido, historiador da música e cultura vividas.

Atrasada!

Desastrada, distraída, incompetente, este post devia ter entrado uma hora antes, fazemos de conta, sim?, que é dia 7 de Novembro ainda e festejamos o aniversário da minha amiga Susana, das pessoas mais bonitas que conheço. É difícil falar de amigos - dá sempre muito mais jeito falar de inimigos, podemos usar lugares comuns, expressões tradicionais, vernáculo. Falar de amigos é muito complicado, mas como a Susana é psicóloga, vai-me perceber bem. Ela sabe que eu sou um bocadinho criança. Por isso gosto do seu colo de amiga, do seu amparo. Claro, sabe também que a acho uma mulher muito inteligente (é psicóloga, convém falar de inteligência emocional por aqui...). Sabe que lhe agradeço tudo o que me ensina em cada dia. Que lembro, hoje (dia 7, dia 7) as aulas, os projectos, a orientação, os risos, as brincadeiras, os desabafos. Porque, realmente, adoro falar nos meus amigos, a minha família, a minha alegria. Com a Susana nunca temos que estar bem ou mal, podemos estar. Se precisarmos de um ombro contamos com ela, se precisarmos de uma companhia, de uma voz, de um sorriso, é a ela também que nos devemos dirigir. Quando estou triste ou sobrecarregada entra um mail giro para descomprimir, um telefonema, uma chamada de ordem: "quando tomamos café?", para a semana, sim?, ou a versão mais tradicional do "já almoçaste?" "tens dormido?" (variações dum mesmo tema, tens cuidado com os teus pintaínhos). Na altura certa, sempre - nunca sei como sabes, miúda. Tanto que corremos sem chegar a lado nenhum, és sempre calma. Tanto que nos queixamos e lamuriamos, estás sempre disposta a ouvir, paciência infinita, minha querida amiga. Sabes viver, és feliz, és lutadora. Quem diria, surpreendente Susana, que a menina tímida que me apresentaram um dia (o folheto da EPAL, lembras-te?) e com quem trabalhei e aprendi tantas coisas, tinha uns alicerces que suportam o mundo e mais meia dúzia de amigos. Que tenhas um ano muito feliz, a vida é para celebrar. E tu, minha amiga, irmãzinha, mereces tudo!

segunda-feira, 6 de novembro de 2006

Pode alguém ser quem não é?

Último ano de faculdade, acidente de viação. Fractura das vértebras c3/c4. Cegueira total. Quando coloquei o post ontem, hoje - perdem-se os dias e as horas quando se trabalha, com pessoas, quando comunicar é uma necessidade - não sabia que viria ter comigo um caso que julgava perdido por falta de apoio. Equipa maravilha, a minha, costumamos brincar com isso, post de desabafo hoje, ternura por irmãos (tens razão, Preca, a família não está no mesmo tecto), difíceis os dias quando se não é nada, quando temos que inventar tudo, reinventar pessoas, buscar no mais fundo de nós a coragem que não temos para dar a quem a tem em muito maior escala, tamanho do mundo mesmo. Da Dinamarca, de Lisboa, de Carcavelos, do Algarve, de Espanha, de Inglaterra, dos Estados Unidos, de Alfragide, respostas múltiplas, talvez mais que as lesões do acidente, estradas perigosas, já todos perdemos alguém pelo caminho das duas ou quatro rodas. Este amigo novo ganhou duas para sempre. Reconstruir o quê, como, com quê? Não é pergunta de desespero, penso enquanto escrevo, partilho, pode ser que alguém leia, pode alguém ser quem não é?
Balanço, existe voz, existe audição, existe, muita, vontade. Existe a tecnologia, terá que ser testada, não existem - obrigado público aos pais da pátria da parte dos filhos da nação - subsídios para ajudas técnicas a partir de agora. Dinheiro porquê, se as trocas são afectivas e as procuras conjuntas? Um caso, uma pessoa, que terá que reaprender ritmos de movimento, de comunicação, de contacto. Perdas irreversíveis de formas de amar - não são sempre iguais, felizmente.
Que ética, nada... É um caso, este, que podia ser eu ou quem me lê. No ano passado fiz cerca de 700 km por semana. Porque não terei sido eu? Trabalho com gente. Orgulho-me de ser gente. Opções como viver ou morrer, lutar ou partir são pessoais e não as julgo, não me julguem a mim também, se faz favor, as pedras são arriscadas de atirar, não haja ventos contrários.
Vi EXIT no DocLisboa. Vi Volver há pouco tempo. Vi Mare Adentro há algum já. Viver ou morrer, ficar ou partir. Ele quer ficar. E pode ficar, há espaço para todos. Nem sempre há humanidade. Não quer ser um peso, quer trabalhar, precisa de comunicar, tecnologias, ficção científica - uma das minhas paixões - a entrar-me pelo telefone dentro, hoje, às 16:58. Voz afectada, compromisso oral leve, será difícil? Ligeira mobilidade no mão esquerda, será suficiente? Há quem trabalhe remotamente usando varrimento de écran comandado por voz. Há quem utilize sopro para controlar o computador e, quem sabe, esteja a esta hora a escrever um post como eu, dedos parados para sempre, partilha activa na mesma medida.
São gigantes. Hoje tive a certeza que são gigantes contra quem lutamos. Não importa. Quem quer viver que tenha vida longa. O que faz uma pessoa? O movimento? A cor dos olhos? As capacidades física ou intelectuais? Quebras... Isso é o difícil. Todos estamos preparados para perder faculdades com o passar dos anos, brincamos com isso, nunca para deixarmos um corpo preso a uma alma cheia de juventude e de vontade, nunca para deixarmos de ser quem queremos ser, quem nos orgulhamos de ser. Ou estaremos? Tanto para aprender, sempre. "Eu quero." Sim. Pode alguém ser quem não é? Vamos à guerra, Miguel.

Impressão Digital (a preto e branco)

"Os meus olhos são uns olhos,
e é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos,
onde outros, com outros olhos,
nao vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos, diz flores!
De tudo o mesmo se diz!
Onde uns vêem luto e dores,
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.
Pelas ruas e estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros gnomos e fadas
num halo resplandecente!!
Inutil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos!
Onde Sancho vê moinhos,
D.Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos!
Vê gigantes? São gigantes!"


António Gedeão e Pablo Picasso. Causas.

domingo, 5 de novembro de 2006

Freelancer

From a cultural standpoint, freelancing is viewed as either above or below the social system. In keeping with Scott's original coinage, some Americans and most Europeans view freelancing as a socially elevated occupation. However, many Asian countries appear to follow Hormung by holding low regard for freelancers, often associating the practice with personal failure (an inability to find work with a major employer) and even criminality (ninja = one who uses the art of remaining unperceived)
(retirado em estilhaços da wikipedia)

Idealistas ou pontos de fuga? Deixar o sistema ou juntar-se a outro? Facilitismo? É bom não ter quem mande em nós. Ilusão, e das grandes, claro, que os contratos não são de entidades empregadoras, sociedades ou casamentos. Sózinhos assumidos, freelancers no trabalho e/ou na vida, entregam-se e dependem, os contratos têm sempre duas faces como as moedas, as entregas apenas uma mão que se estende.

De cansaços ninguém quer saber, com os nossos sentimentos lidamos nós mesmos, com a vontade combatemos todos os dias, que tabuletas diversas se nos apresentam e, ninguém, mesmo ninguém, ajuda a escolher, ou pode escolher, por nós. Pela esquerda ou pela direita, quem sabe se por cima dos telhados ou cavando um túnel no chão, voar se imposssível não nos fora - Ícaro deu-se mal, deve ter morrido feliz. Eu que acredito no Pai Natal, na Fada dos Dentes e no Noddy, acho que compensa lutar pelo que se acredita e fugir de facilitismos, com todas as dores que possam vir por arrasto. Viriam de qualquer forma, assim que venham por um motivo escolhido.

Faz de conta


Joan Miró
(1893 - 1983)
Bird Rising, Bird Descending in a Starry Night

"Faz de conta que és abelha
Eu serei a flor mais bela
Faz de conta que sou cardo
Eu serei somente orvalho
Faz de conta que sou potro
Eu serei sombra em Agosto
Faz de conta que sou choupo
Eu serei pássaro louco,
pássaro voando e voando
sobre ti vezes sem conta
Faz de conta, faz de conta."

Eugénio de Andrade

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

Ternas alquimias




Não interessa como se faz o caminho, importante é ir e estar. Dia feliz passado na Fil, em encontro de tecnologias, das que servem para integrar e aproximar os homens, nas suas diferenças e potencialidades. Lembro-me agora de palavras de ternura escritas por quem sabe que os corpos têm valor na sua individualidade, que as vozes são todas as mesmas, os olhares todos completos, os sentidos e sentires sempre os suficientes.

Jorge Casimiro, grande poeta...

"Nas rotas do teu corpo
cumprem- se traços de gazela
escultura irreal
como irreal
é a cidade que te habita
talhada a golpes de maço
com a delicadeza de quem esculpe libélulas transparências
arranha- céus frágeis que baloiçam firmes ao vento
soltos à nortada de um suspiro
um respirar nocturno
e nas montras iluminadas viajam formas fugidias
fadas e monstros
duendes em transe
poção de druida
velho mago inspirado
que lança palavras secretas
ao poço de um último poema
em gestos voláteis de ternas alquimias"

As que unem os homens... (com)passos diversos, rumo, sempre, a um mundo mais verdadeiro.

Post para Galileo e para todos os que acreditam na verdade

Julgamento de Galileo, Douglas Linder

My dear Kepler, what would you say of the learned here, who, replete with the pertinacity of the asp, have steadfastly refused to cast a glance through the telescope? What shall we make of this? Shall we laugh, or shall we cry? - Carta de Galileo Galilei a Johannes Kepler
Poema para Galileo

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.

Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…
Eu sei… eu sei…
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!

Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar- que disparate, Galileo!
- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação-
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se tivesse tornado num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas- parece-me que estou a vê-las -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e descrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai Galileo!
Mal sabem os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.

Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto incessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa do quadrado dos tempos.

António Gedeão
(porque há manhãs em que se sorri para a chávena de café e se acredita que os Galileos existem e até sorriem; os outros... caem ininterruptamente do alto inacessível das suas alturas)

Méliès tinha razão em sonhar.

Vale a pena sonhar. Vale a pena a beleza. Trabalhar, sempre, que os sonhos constroem-se. Pessoais, uma questão de perspectiva ou de ritmo [a vida em fotogramas devia ser engraçada]. Sonhos despojados de medos, cheios de encantos e de surpresas. Só há uma vida que se saiba. E é para sorrir. Talvez a Lua seja mesmo assim. E quem sabe se a Terra será redonda? Também, que importa? Tudo não passa de um castelo de cartas. Pelo menos, no meu País das Maravilhas.

quinta-feira, 2 de novembro de 2006

Nós que aqui estamos (longe do Líbano)

"Em uma guerra não se matam milhares de pessoas.
Mata-se alguém que adora esparguete,
outro que é gay,
outro que tem uma namorada.
Uma acumulação de pequenas memórias..."

Cristian Boltanski, citado por Marcelo Mazagão no filme Nós que Aqui Estamos.
--


[Nunca se beija em vão, mas não se devia beijar em dor.]




[Nunca se deviam tomar caminhos não escolhidos. ]


[Nunca se devia reflectir com ampulheta na alma e arma ao ombro.]

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Vinicius de Moraes

Fantástico homem, operário em construção, diplomata em fuga de formalismos, o brasileiro branco mais negro que já viveu. Homenagem merecida por outros tantos senhores da cultura brasileira.

Documentário urgente a amantes de poesia, música, história, cultura, intervenção, amantes em geral...

Afinal, "Quem pagará o enterro e as flores, se eu me morrer de amores?"