sábado, 30 de setembro de 2006

Tal era o mistério

Amigos. Palavra branca. Canção. Sonho. Crescimento. Hoje um amigo recordou-me um percurso e uma irreverência. Levou-me, assim, por um caminho dentro de um caminho. Serão isso os amigos, as veredas de paz dentro dos nossos caminhos? Possivelmente. Obviamente. Palavras brancas cheias de pureza e sorrisos e o sol todo. Hoje, a lembrar, em conversa, Manuel da Fonseca.
--
Creio que nos silêncios e nos poemas se conhecem os homens. Aqui ficam reflexos de Manuel da Fonseca, em excertos de uma entrevista ao Expresso (a última, em 20 de Março de 1993) em tertúlia com Herberto Helder. E um poema. De resto, nas suas palavras, o melhor é ler o(s) livro(s)...

  • "A gente começa a escrever porque são aquelas coisas que acontecem perante o ambiente em que nós nascemos. Quando nascemos somos contra, é próprio de quem nasce estar contra os que cá estão. Toda a arte está contra. Escrevo porque estou contra!"
  • "Não tenho a noção do tempo. Quero é estar à volta de uma mesa com uns amigos. Uma vida simples e pura. Ando muito a pé, tenho amigos estranhos, converso aqui e ali, oiço muito, e lá nos encontramos nas tabernas."
  • "[Os críticos] são uns senhores muito altos que não sabem do que falam, põem um adjectivo seguido de outro com um ponto de exclamação a meio, e nós não percebemos nada. O melhor é ler o livro!"

***

"Quando foi que demorei os olhos
sobre os seios nascendo debaixo das blusas,
das raparigas que vinham, à tarde, bricar comigo?...
... Como nasci poeta,
devia ter sido muito antes que as mães se apercebecem disso
e fizessem mais largas as blusas para as suas meninas.
Quando, não sei ao certo.

Mas a história dos peitos, debaixo das blusas,
foi um grande mistério.
Tão grande
que eu corria até ao cansaço.
E jogava pedradas a coisas impossíveis de tocar,
como sejam os pássaros quando passam voando.
E desafiava,
sem razão aparente,
rapazes muito mais velhos e fortes!
E uma vez,
de cima de um telhado,
joguei uma pedrada tão certeira,
que levou o chapéu do senhor administrador!
Em toda a vila,
se falou, logo, num caso de política;
o senhor administrador
mandou vir, da cidade, uma pistola,
que mostrava, nos cafés, a quem a queria ver;
e os do partido contrário,
deixaram crescer o musgo nos telhados
com medo daquela raiva de tiros para o céu...

Tal era o mistério dos seios nascendo debaixo das blusas!"
--

you are welcome to elsinore

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar


Mário Cesariny

sexta-feira, 29 de setembro de 2006

Aurora


Na Cinemateca, quarta-feira, 21:30, Sunrise: a song of two humans, de Murnau, 1927.

Tarda reviver a História do Cinema, nada é mais belo que o silêncio.

Ler



Ler nas férias, ler livremente, ler sempre, com os olhos do rosto, na ponta dos dedos, ouvindo ideias que se conceptualizam e tornam letras ou sonhos ou ideias novas. Projectos de louvar, o da República Popular da Cultura, como este. Ler é fundamental, não a beleza, ler é a beleza das ideias e dos sonhos que se constroem, é a varanda para a liberdade de pensamento.
--
Quem escreve, faz amor com o público - que direitos de autor? - quando é real, o amor não se paga, não se prostitui, dá-se, entregam-se as letras como os corpos e recebem-se sorrisos e ideias e novos livros de volta. Escrever para outrém é sempre um ponto de não retorno, belo porque constitui uma abdicação do egoísmo de pensar sem dar, não há mesmo pensamento fora da escrita, que nunca a escrita seja, pelas nossas mãos, uma prisão. Antes que anoiteça e nos esqueçamos de ser crianças todos os dias e de viver todas as vidas num dia só...
--
"...quero jogar pingue-pongue com o meu irmão João, quero ler Júlio Verne, quero ir à Feira Popular andar no carrocel do oito, quero ver o Costa Pereira defender um penalti do Didi, quero trouxas de ovos, quero pastéis de bacalhau com arroz de tomate, quero ir para a biblioteca do liceu excitar-me às escondidas com a «Ruiva» de Fialho de Almeida, quero tornar a apaixonar-me pela mulher do faraó nos «Dez Mandamentos» que vi aos doze anos e a quem fui intransigentemente fiel um verão inteiro, quero a minha mãe, quero o meu irmão Pedro pequeno, quero ir comprar papel de trinta e cinco linhas à mercearia para escrever versos contadas pelos dedos, quero voltar a jogar hóquei em patins, quero ser o mais alto da turma, quero abafar berlindes."
António Lobo Antunes, "Antes que Anoiteça" in Crónicas

quinta-feira, 28 de setembro de 2006

Speacker's Corner


Marx, Engels, Lenine, Orwell, até o corpo de Cromwell já lá estiveram, como podemos estar todos em Hyde Park, no Speacker's corner e falar introspectivamente ou para o mundo, ao sol ou à chuva, sobre tudo (sobretudo) o que sintamos que sim.
Liberdade de expressão procura-se desde que os homens são homens. Sempre houve mais fracos e mais fortes, manipuláveis, manipuladores, gestores e geridos. Escapes de pão e circo, como esta fantasia que tudo podemos dizer. Claro que podemos, sobretudo se satisfizermos o ego e for tão inconsequente que em nada abale a forma como gira o planeta. E agora?
Já devíamos saber mais que isto, que quem tem a informação tem o poder, a subsistência da mente livre é difícil, na totalidade, impossível, procuramos, apenas, ter consciência que gritar nem sempre é a melhor solução, agir em silêncio pode mudar algo de forma mais discreta e eficaz. Mas com tantas lutas em que nos envolvemos no dia-a-dia, com tantas causas que nos dizem, de forma mais ou menos directa, respeito, de vez em quando é bom puxar um banquinho e, como Mafalda, fazer apelos à paz.
Como neste speacker's corner virtual em que escrevo os meus gritos ou descrevo o meu esbracejar diário em direcção, espero, a um mundo que seja consciente sem perder a capacidade de sonhar.

quarta-feira, 27 de setembro de 2006

Um pedaço de mar


Há presentes que soam a beijo e a mar, com sabor a sal e a amizade forte. Não tive férias este ano, por razões diversas de ordem pessoal e profissional. Tive, no entanto, a sorte enorme de ter a alma de férias, bem tratada, por amigos novos e valiosos como pérolas, hoje, a felicidade de receber um envelope com conchas apanhadas na praia, "um pedaço de mar", que já tinha ouvido ao telefone, em fundo, junto da voz que dava notícias.

Não se intervem só na vida pública, intervem-se sobretudo - cada vez mais penso isso - nos gestos de ternura e pequenas/grandes atenções e doçuras que temos para com quem está - ou não - ao nosso lado, pensar em quem não está, em quem não pode, em quem não vai. Acarinhar e dar carinho de volta, dar e receber, partilhar o mar e os seus pedaços, em rasto de amizade, caminhos de ser gente, ofertas do coração que não se sabem agradecer e nos deixam mudos, até porque o sal que veio nas conchas encheu-me o olhar e, pensando melhor, vale a pena não ter férias e tomar banho de sorrisos e mimos, de sensibilidade e sabedoria.

Gestos de amor e humanidade, hoje para mim, já não estou cansada de repente porque tenho conchas da praia onde não estive e me banhei nas ondas pela mão de um amigo.

terça-feira, 26 de setembro de 2006

Paisagens


Estamos no meio da cidade, ou nos arrabaldes urbanos, cinzentos, onde dormimos, mas tão perto da beleza que esquecemos vezes a mais... É de noite e não faz sentido, mas não há horas para amar recordações. Fui pela primeira vez à Lagoa Azul numa visita de estudo da minha escola, onde agora estuda uma sobrinha minha, porque o tempo esculpe continuidades. As dimensões do belo e da descoberta mudam tanto quando se é criança ou adolescente, quando se passa ou não dessas idades que são, realmente, estados de espírito. É bom encharcar os olhos na beleza sem horas, nos reflexos que baralham e espantam, nos espelhos de água em que crescemos sem dar por isso e nos tornamos mais altos, não necessariamente mais adultos. Elogios da infância enquanto estado, o regressar sempre a onde estamos bem, mesmo que por acaso. Sair da rotina e caminhar sem destino para reencontrarmos e recriarmos, dentro de nós, as descobertas, reflectir outras vidas, outras dimensões de nós.

Kids


Comecei a ler com banda desenhada, claro Astérix, Lucky Luke, Iznogoud. Como não sorrir com o mundo de faz-de-conta em que gostaríamos de continuar a morar, em que moramos quando queremos, ciganos da nossa infância, solitários a procurar gente e justiça, por vezes perdendo a paciência e dando umas palmadas na vida quando nos faz birra porque sim.
Há cowboys solitários que perdem a compostura e crianças que não crescem que continuam a insistir em viver à sua forma, desrespeitando as leis e armando em capitães de areia, fazendo rir as sabedorias da natureza que assiste, impávida, ao ser humano no seu melhor, versão Goscinny ou não. Lagos de lágrimas, toneladas de sorrisos, estrelas no olhar, as crianças são o que de melhor existe no mundo, não vale nunca zangarmo-nos com elas porque, afinal, nos tiram mesmo do sério e se olharmos bem, é em nós próprios que damos as palmadas injustas a quem só quer, realmente, brincar... Melhor, sempre, dar um beijo.*

segunda-feira, 25 de setembro de 2006

Heróis


Shulz tinha um humor tocante, saído dos nossos dias e dos nossos sentimentos. Todos queremos ser heróis e nos sentimos salvadores da pátria incompreendidos. No fundo, conforta-nos saber que não estamos sós, que somos amados, apoiados, queridos pelos mais próximos, pelos que vão entrando na nossa vida e dividem os pesos quando estamos cansados.
No início de mais uma semana, a última do mês de Outubro, natureza, crianças e grandes estão em convulsão de mudanças e renovações, grandes voos e aventuras nos fazem tremer, com o ar levemente afectado de quem se prepara para uma travessia.
Solitários no meio de todos, aviadores que não saem do chão, crianças que reflectem e outras que, mesmo ao lado, se vestem de heróis, apenas, para pedir um abraço que não os deixe cair, uma mão que os ajude a atravessar o Atlântico ou a rua.

domingo, 24 de setembro de 2006

Apetece...


Apetecem as luzes da cidade, o Tejo adormecido, pessoas felizes na rua tardia, carros com música fora de horas, esplanadas com crianças no meio de caminhos a construir gargalhadas sem sono e jogos de futebol sem balizas.

Apetece demorar a felicidade de um sorriso, só para ver o acendedor de candeeiros, mesmo que cansado, iluminar os sonhos de quem é.

sábado, 23 de setembro de 2006

Sobre um país desconhecido e tão próximo

The undiscover'd country from whose bourn
No traveller returns, puzzles the will
And makes us rather bear those ills we have
Than fly to others that we know not of...
W. Shakespeare

A morte, estuda-se - sou de história -, aprende-se - todos os que estão vivos já perderam ou perderão alguém pelo caminho -, vê-se e cheira-se - as flores em toneladas, a terra remexida, os restos de tubos, as fotografias, a crueldade das chaves das urnas -, sonha-se - por antecipação ou por trauma -, grita-se porque se quer agarrar o tempo e mandar embora o gelo dos corpos sempre frios antes de tempo, sempre frios demais, um frio que entra na alma para ficar, antecipando o nosso desprezo e abandono do sol.
A morte é uma estranha que convive connosco, o nosso maior pesadelo, o nosso maior risco e, no entanto, a sua consciência é o sinal grandioso de que estamos vivos e temos um corpo.
A nossa morte, a morte do outro. O outro conhecido e amado, o outro longínquo, lágrimas que chegam pela televisão, pelo computador, por uma vista breve de um acontecimento qualquer, e a vida tão rápida a fazer-nos meter a primeira, pegar na trouxa e zarpar...
Não se vive para trás, não se prevê o futuro, não se preparam mortes. Claro há detalhes jurídicos e administrativos, há conhecimento histórico, estatístico, médico ou experiências mais ou menos próximas, mais ou menos ou muitíssimo pessoais. Nessas alturas precisamos de ser abraçados. E de silêncio.
Complicado mesmo é sobreviver, enfrentar fantasmas todos os dias e noites, revivê-los, sobreviver-lhes, encontrar arco-íris de paz entre as lágrimas que chegam, às vezes, das nuvens que nos ficam nos olhos, e o sol quente e vivo e físico que teimosamente insiste connosco em que acreditemos que a vida é bela...

Procura


Procura a maravilha.
Onde um beijo sabe
a barcos e bruma.
No brilho redondo
e jovem dos joelhos.
Na noite inclinada
de melancolia.
Procura.
Procura a maravilha.

Composição de Jerry Uelsmann, caminho de Eugénio de Andrade, Maria a procurar...

Acessibilidade

"O SNRIPD, no âmbito da sua parceria com o Canal 2: da RTP, pretende associar-se às comemorações do Dia Mundial do Surdo, no próximo Domingo, dia 24, mediante a transmissão de uma edição do Programa CONSIGO inteiramente dedicada à comunidade surda.Como é do conhecimento de todos, o referido Programa CONSIGO é transmitido no Canal 2: da RTP todos os Domingos pelas 11h20.Fonte: http://www.fpas.org.pt/
A administração da Lista da Acessibilidade é da responsabilidade do CERTIC/UTAD www.acessibilidade.net"

Obrigado ao Engenheiro Francisco Godinho, pessoa rara, de grande valor, por mais esta informação, que divulgo, com admiração e respeito pelo seu trabalho de investigação, moderação e humanidade.

sexta-feira, 22 de setembro de 2006

Causas

"É contra mim que luto
Não tenho outro inimigo.
O que penso
O que sinto
O que digo
E o que faço
É que pede castigo
E desespera a lança no meu braço

Absurda aliança
De criança
E de adulto.
O que sou é um insulto
Ao que não sou
E combato esse vulto
Que à traição me invadiu e me ocupou

Infeliz com loucura e sem loucura,
Peco à vida outra vida, outra aventura,
Outro incerto destino.
Não me dou por vencido
Nem convencido
E agrido em mim o homem e o menino"

Miguel Torga

Beijos do céu

Chuva toda a manhã, gotas de água nos cabelos, no chão, na roupa, arrepios que nos fazem sentir vivos e correr porque a vida não parou e voltaram os lagos no chão com reflexos de saltos onde nos vemos sempre com menos uns quantos anos. Os pais agora não ralham mais, molhamo-nos à vontade, o frio que passa pelo corpo é na medida desejada, a chuva acorda e renova(nos). Beijos do céu, claro, nada de lágrimas, o que a natureza dá é sempre uma forma de amor. É bom estar vivo e sentir. É urgente, mais que um barco no mar, estar disponível para navegar pelos anos que não passam e acolher o carinho das nuvens que voltam e fazem bonecos no céu.
O sol aquece - há sempre um abraço do sol - e acarinha, com ou sem arco-íris, é um caso de amor sério entre os raios de sol e as gotas de chuva quando nasce um arco-íris, é sempre um descontrole de beleza. Aprende-se a amar em tudo e em cada coisa, em cada pecinha do mundo, compondo e descompondo emoções. Nunca separar nada nem desperdiçar nada, muito menos todo este amor que escorre do céu e faz os campos férteis, música de xilofone nos vidros e nos telhados ou carícias que escorrem pelos sorrisos que se abrem ao calor que, sempre, vem depois.
Como um projecto, como um sonho, como uma paixão.

Dirija-se






Andamos todos a dormir? Goscinny retratou brilhantemente em Astérix Legionário o que se passava (passa) em determinados serviços. Há trabalhos desgastante, sobretudo os de atendimento público. E todas as pessoas têm mais ou menos habilitações e/ou jeito para o seu ofício. Claro. Temos que ser compreensivos. Óbvio. E pacientes. Certo.
Excepto quando se trata de lidar com a mais absoluta das incompetências, amorosamente associada a racismo, xenofobia, estupidez, em suma. Aí vale o pontapé na porta.
Os portugueses têm a memória curta, precisarão porventura de um upgrade. Recordemos as saídas do país durante o Estado Novo, em que refugiados políticos precisavam - e foram, muitas vezes - bem acolhidos noutros países, noutros regimes. Respeitando as suas ideias e dando-lhes a possibilidade de sobreviver em dignidade, não deixando de ser eles mesmos.
Recordemos igualmente as saídas de portugueses que vagaram localidades para sobreviver e fazer sobreviver as suas famílias, as idas a salto para França nos anos 60, as dificuldades na obtenção de documentação, de aprendizagem da língua, as vidas de trabalho duro, os momentos de fome, saudades e desespero.
Pensemos agora, como num exercício, em como somos todos bonzinhos quando nos autopromovemos e reenviamos emails para os nossos 50 contactos para que alguém apoie a criança que precisa de um transplante de fígado há cinco anos e continua com a mesma idade. Como somos todos bonzinhos quando num café enchemos o ego ao comprar um pãozinho (bolos não, que fazem mal, filho) a uma criança que nos aborda. Em público, claro, para contar à família ao jantar enquanto se vê a novela e manda calar os filhos que não querem ouvir autoelogios fúteis mas talvez (talvez) um pequeno abraço, uns minutos a fazer um puzzle no chão.
Somos, pois, todos, fantásticos. É uma casa portuguesa, claro. Todos são bem acolhidos. No entanto...
Continuando o nosso percurso, pensemos numa manhã de arco-íris em que alguém que tem uma certificado de residência legal e trabalha no nosso país se dirige ao Ministério da Educação para solicitar a equivalência a um curso de enfermagem feito fora da Comunidade Europeia.
O percurso é digno de um diagrama de fluxo, eventual tema para doutoramento em Gestão: do Ministério da Educação para a Direcção-Geral do Ensino Superior, de lá para a Ordem dos Enfermeiros, da Ordem para três Escolas de Enfermagem em sequência, seguidas dos Serviços de Recursos Humanos do Ministério da Saúde e voltando a um departamento do Ministério da Educação. Que azar. Só atendem vozes às segundas, quartas e sextas e pessoas às terças e quintas. Que maçada, volte para a semana, aqui, ao Gabinete do Centurião das Calendas.
Claro que se estiver a passar fome entretanto e precisar de trabalhar tem sempre a hipótese de ingressar na função pública portuguesa. Para tal, dirija-se às Informações, eles informam...

quarta-feira, 20 de setembro de 2006

Hoje...


Segredo

Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo tem lá dentro um passarinho
Novo.
Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar...

Miguel Torga, Diário VIII

segunda-feira, 18 de setembro de 2006

Amigos novos


Melhor que amigos novos só mesmo novos amigos...

Conheçam o JP...

http://www.grilices.blogspot.com/

Um abraço e um sorriso para ti e para a mamã, adorei conhecer-vos.

domingo, 17 de setembro de 2006

...e anjos


Ouço Quarteto com Guitarra em Ré Maior de Haydn, leio Germinal de Zola, procuro paz de um fim-de-semana intenso (serão as nossas vidas tão diferentes que não amemos viver anos numa hora sempre que possamos?).

Um anjo trouxe-me paz, cabelos loiros, discreto, num canto da pintura, pintado lá como ilegítimo pela mão de um Leonardo, aprendiz dos deuses, o dos olhares e silêncios e sorrisos mais claros que enigmáticos, afinal, talvez seguros. Pintamos sempre num quadro que não é nosso, aprendemos a arte da intromissão doce no mundo de todos, corremos para um espaço desejado num tempo distraído, caem caracóis loiros de uma cabeça contemplativa de criança serena - não o são todas? - e apetece passar por lá as mãos-cheias de ideais que nos encharcam e desassossegam, este verbo que tanto sinto e que rima com viver e com objectivo e com caminhos.

O meu anjo loiro está quieto no seu quadro, tinta de séculos, olhar de hoje, sabedoria dos velhos, eu olho admirada a sabedoria da visão que tem de uma pintura em que participa, e aprendo a ouvir mais a sua voz doce em Haydn e a ler mais utopias, a amar mais a vida que sorri sempre nos olhos de quem sabe o que quer. Eu, só quero aprender, não sei ser anjo, não sei ser perfeita, ainda preciso de mãos que me ajudem a atravessar ruas, de sonho em sonho, em paz.

Estrelas


Não conheço muitas estrelas, vejo-as à noite, longínquas, sonho-as, admiro-as. O conceito de estrela é muito vasto, existem as de cinema e as de sociedade, para além destas que os astrónomos perseguem, promovendo e despromovendo corpos celestes.

Foi na terra hoje que encontrei algumas, em vasta gama de idades, géneros, formas e cores. Uma brilhava mais que as outras, o sorriso da realização de um sonho cumprido, o Big Bang de um projecto, lindo o sorriso do Pedro Monteiro.

Não tenho muito heróis, aos quarenta anos já cansa acreditar no Pai Natal, já tantas vezes desistimos e outras tantas nos levantámos, crentes e descrentes da vida como de uma igreja qualquer que nos promete felicidade em terra e céu. Mas hoje, almocei com um, da raça dos persistentes, da raça dos Homens que lutam, que acreditam e que vale a pena, creiam, vale a pena, conhecer e apoiar.

Obrigado, Pedro, pelo almoço, pelo sorriso, por deixares o meu filho brincar com os comandos da tua cadeira, por seres tão amigo e tão acolhedor de tanta gente que te procurou, que se reuniu em torno de ti, a quem deste esperança de um super-homem que - às vezes encontram-se - voa de Aveiro a Lisboa para mudar o mundo na direcção certa.

Um abraço amigo, com humildade e admiração.

What a wonderfull world...

"Noventa e seis bebês morreram nos últimos seis meses na fila de espera por leitos de UTI neonatal em hospitais das redes estadual e municipal do Rio de Janeiro." (para quem queira ler o resto...)

Em que estupidez de mundo vivemos? Para quem leu a notícia completa, ou mesmo que não, garanto que ninguém me convence que a troca de seringas é lógica enquanto não se trocarem pacotes de leite vazios por cheios, enquanto crianças continuarem a morrer por falta de assistência e por fome.

Cuidados de saúde, assistência social gratuita, julgo que é para onde todos enviamos os impostos que pagamos, seja no Brasil, em Portugal ou na China, continuam muitas famílias a passar mal, a preferir a morte em paz que a morte em vida.

Estranhos numa terra estranha...

Carta ao futuro

"Meu amigo:

Escrevo-te para daqui a um século, cinco séculos, para daqui a mil anos... É quase certo que esta carta te não chegará às mãos ou que, chegando, a não lerás. Pouco importa. Escrevo pelo prazer de comunicar. Mas se sempre estimei a epistolografia, é porque é ela a forma de comunicação mais directa que suporta uma larga margem de silêncio; porque ela é a forma mais concreta de diálogo que não anula inteiramente o monólogo. Além disso, seduz-me o halo de aventura que rodeia uma carta: papel de acaso, redigido numa hora intervalar, um vento de acaso o leva pelos caminhos, o perde ou não aí, o atira ao cesto dos papéis e do olvido, ou o guarda entre os sinais da memória. Por sobre tudo, porém, agrada-me falar desde o centro deste Inverno e desta cidade mortal que me cercam. Ouço as vozes subterrâneas à alegria mecânica, aos passos cronometrados, à azafama de nervo e esquecimento que adivinho ao longe, numa metrópole-síntese construída em arame e cimento, e é bom que essas vozes ressoem na minha boca."

Vergílio Ferreira

sábado, 16 de setembro de 2006

quarta-feira, 13 de setembro de 2006

Slumberland


Little Nemo, claro, dormir é preciso.
Son(h)os de criança onde realmente se vive...

Michel Foucault


“Como se todas as palavras tivessem guardado o seu sentido, os desejos a sua direcção, as ideias a sua lógica: como se esse mundo de coisas ditas e queridas não tivesse conhecido invasões, lutas, rapinas, disfarces, astúcias. Daí, para a genealogia, um indispensável demorar-se, marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda a finalidade monótona; espreitá-los lá onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuíndo história – os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos; apreender o seu retorno não para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes cenas onde eles desempenharam papéis distintos.” (FOUCAULT)

Este sorridente senhor tem tido um importante papel na minha aprendizagem sobre O Outro, ensinado que as Identidades e as Identificações são sempre relativas. Que os comportamentos e os corpos são controlados e o Poder se exerce de forma económica e suave sobre eles, sobre nós, ontem como hoje. Que é importante construir e descontruir tudo, mundo volátil dos pensamentos, nada é e tudo está em tudo. Que é importante ler, e pensar, e escrever, muito. Demorar-se.

terça-feira, 12 de setembro de 2006

(Des)arrumada

Há dias em que nos aparece a vida desarrumada. O tempo foge, as prioridades baralham-se ou sobrepõem-se, nada está no sítio. Gosto pouco de rotinas, mas fujo de tempestades mais fortes que eu. Trabalhos começados e não acabados (ainda), trabalhos forçados, trabalhos voluntários, trabalhos que aterram em aeroportos pequeninos e ficamos com uma garagem de madeira cheia de carrinhos atirados para o monte da infância que já foi. Não há fugas, alguns caminhos têm mesmo vias únicas e nestes dias desarrumados parecem mesmo a 2ª circular de manhã, agora em princípio de aulas.
Pentear a vida como crinas de um cavalo que nos foge ou como uns cabelos de crianças que brinca não é tarefa fácil, sobretudo porque a vontade tem que ser muita. Hoje, deixei que aviões a mais pousassem na minha mão e não sei que lhes fazer. A escrita é um ponto de fuga, não resolve nada, apenas ajuda - espero - a arrumar ideias.
Desarrumada hoje, em desassossego, a escrever tudo menos o que devo porque enquanto escrevo penso no que quero fazer, como o irei fazer, funciono em multiprocessamento, será da geração, será dos nossos dias, será estrutural? Parece-me que sim, que as corridas são demasiado longas, que há dias demasiado esforçados, que o saber parar antes de recomeçar tarefas que se querem bem feitas e com gosto é por demais urgente.
Arrumar tudo então, mas por onde começar, se tudo é necessário? Fazer escolhas é sempre partir, mesmo as coisas mais simples. Os dias exigem demais de nós e ao mesmo tempo fazem de nós criaturas demasiado fúteis e egoístas, não que entre pela linha de achar que a felicidade se encontra ao ver guerras no telejornal e suspirar de alívio por não serem perto. A isso se chama cinismo. As guerras diárias são outras, o ponto de começo é que tem vantagem. Há problemas (desarrumações) que não temos. Partimos de um estatuto de segurança para os nossos caminhos por muito estreitos que nos pareçam por vezes, por muito cansaço que sintamos em nós ("coitadas das estrelas"). Pois, coitadas das estrelas. O cansaço das rotinas, Pessoa sempre sábio, enorme o Livro do Desassosego, belíssimo, meu livro de cabeceira quase permanente. Escreveu-o em partilha ou para si mesmo? Quando não temos desarrumações interiores ou mais pragmáticas, inventamos sempre algumas, será o homem do século XXI um drogado por stress?
Quando entro em pânicos destes apetece-me sinceramente ir ver o Tejo, deixar fugir os olhos por entre a ondulação macia, pensar no longe e no perto de uma margem e de outra, pensar que a distância das margens é, evidentemente, metafórica, a curta mas cansativa distância que pode ir de um (ou vários) problemas à óbvia, visível, lógica, mas árdua solução.
Estar vivo dá trabalho, vivo realmente, não em limbos apáticos de rotinas seguras. No entanto no caos de vida que escolhi também há linhas rectas, o caos permanente acaba por ter uma ordem, a diferença é que a imprevisibilidade do dia seguinte sufoca, e quando é necessário interromper o caos para disciplinar o rasto - mesmo que de estrelas - tudo fica fora da ordem natural que já era a diversidade.
Desarrumar, por isso, é o que vou fazer depois de escrever. Desarrumar o caos por umas horas, sentir-me mais desconfortável mas mais eficaz e ordenar dolorosamente prioridades menos gloriosas, mais humildes, mais desconfortáveis. Depois, voltar a sorrir, nem que de cansaço.

Elogio da loucura 3

Loucura, Paul Klee (1879-1940)

Elogio da loucura 2

Já alguém sentiu a loucura
vestir de repente o nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos objectos?
Sim.
E acender relâmpagos no pensamento?
Também.
E às vezes parecer ser o fim?
Exactamente.
Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima?
Tal e qual.
E depois mostrar-nos o que há-de vir
muito melhor do que está?
E dar-nos a cheirar uma cor
que nos faz seguir viagem
sem paragem
nem resignação?
E sentirmo-nos empurrados pelos rins
na aula de descer abismos
e fazer dos abismos descidas de recreio
e covas de encher novidade?
E de uns fazer gigantes
e de outros alienados?
E fazer frente ao impossível
atrevidamente
e ganhar-lhe, e ganhar-lhe
a ponto do impossível ficar possível?
E quando tudo parece perfeito
poder-se ir ainda mais além?
E isto de desencantar vidas
aos que julgam que a vida é só uma?
E isto de haver sempre ainda mais uma maneira pra tudo?
Tu Só, loucura, és capaz de transformar

o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias
para olhos individuais
Só tu és capaz de fazer que tenham razão
tantas razões que hão-de viver juntas.
Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta.
Só tu tens asas para dar
a quem tas vier buscar.

José de Almada Negreiros

Elogio da loucura

"Está escrito no primeiro capítulo do Eclesiastes: O número dos loucos é infinito. Ora, esse número infinito compreende todos os homens, com excepção de uns poucos, e duvido que alguma vez se tenha visto esses poucos."

"Eis o retrato fiel de um estóico: surdo à voz dos sentidos, não sente paixão alguma; o amor e a piedade não impressionam absolutamente o seu coração duro como o diamante; nada lhe escapa, nunca se perde, pois tem uma vista de lince; tudo pesa com a máxima exatidão, nada perdoa; encontra em si mesmo toda a felicidade e se julga o único rico da terra, o único sábio, o único livre, numa palavra, pensa que só ele é tudo, e o mais interessante é que é o único a se julgar assim. Amigos. É a sua ultima preocupação, pois não possui nenhum. Sem nenhum escrúpulo, chega a insultar os deuses e a condenar como verdadeira loucura tudo o que se faz no mundo, ridicularizando todas as coisas."

"Duas coisas, sobretudo, impedem que o homem saiba ao certo o que deve fazer: uma é a vergonha, que cega a inteligência e arrefece a coragem; a outra é o medo, que, indicando o perigo, obriga a preferir a inércia à ação. Ora, é próprio da Loucura dirimir todas essas dificuldades. Raros são os que sabem que, para fazer fortuna, é preciso não ter vergonha de nada e arriscar tudo."

Erasmo de Rotterdam (1469-1536), Elogio da Loucura

domingo, 10 de setembro de 2006

Proudhon tinha razão, mas também tinha um ofício

"A mocidade vive nas antecamaras do estado como os antigos poetas do seculo passado nas salas de jantar dos fidalgos ricos. Os velhos são agiotas ou servidores do estado. Os moços são bachareis e querem bacharelar ácerca da coisa publica e á custa da mesma coisa ácerca da qual bacharelam. Dizem-se republicanos, democratas, socialistas, fallam muito na organisação systematica do trabalho e nos destinos das classes laboriosas, mas não nos dão em si proprios o exemplo de que o primeiro dever de todo o cidadão que se quer prezar de democrata e de livre é elle proprio bastar para si mesmo, prover pela sua iniciativa a todas as suas necessidades, descentralisar-se, trabalhar só, viver de si, que é o unico meio de não ser explorado e de não explorar ninguem, affirmar-se finalmente na unica fórma da independencia poderosa e legitima, na unica dignidade verdadeira e segura—o trabalho pessoal e livre. A mocidade tem a mais elevada comprehensão dos destinos sociaes, da moral e da justiça. Unicamente a mocidade tem um defeito que ha de esterilisar a sua iniciativa: ella pensa, mas não trabalha. Assim, se pela sua razão ella caminha para a conquista ideal das coisas justas; pelas necessidades da vida ella fica fatalmente na orbita subalterna das simples coisas conquistadas. Antes de traçarmos o etinerario luminoso da nossa alma pelas espheras transcendentes, temos obrigação de aprender a sustentar a nossa besta na viagem. Proudhon tinha razão, mas tambem tinha um officio. E era depois de ganhar livremente o seu pão como typographo ou como caixeiro que elle ganhava livremente como philosopho e como critico as consciencias dos outros pela justiça."
--
Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, As Farpas, 1873
--
Porquê esta crítica de consciências inertes? Para não responder, que as palavras me faltavam, a quem me perguntou por direitos humanos de integração, nem de propósito, chegada a Lei 46/2006. A ignorância da lei não é argumento pelos utentes, mas também não pode ser cultivada pelos serviços públicos. Não se desliga o telefone a quem precisa, não se remetem cidadãos para serviços de boa vontade sem serem servidos primeiro e dignamente, pelo estado. Deixamos o trabalho para especialistas em ter ideias, em teorizar, em criticar, em argumentar, nada concretizando. Quem espera... à espera continua, que o tempo escasseia, está calor e o trabalho que dá alimentar práticas é muito. Os costumes que se mantenham arrumados a um canto, os consensos tornaram-se fonte de satisfação social. No entanto, da teoria à prática vai um passo de moinho. Contemos, pois, as farpas que nos agridem. E não nos fiquemos pelo debate.

1914

"Um círculo é uma recta de raio infinito", assim mesmo, em círculo, citei já esta frase, ensinamento de matemático, geógrafo e filósofo, criador portanto, no meu caso criativo.

Em 1914 nascia em Montemor-o-Novo um filho de amores de Romeu e Julieta, que se apaixonaria 38 anos depois por uma Margarida. Apaixonado também pela terra e pelas estrelas, olhos verdes e silêncios longos, espírito observador, leitor compulsivo, atento ao mundo e tão fora dele (tão fora do tempo, Pai...), mãos fortes e doces, a encaminhar o seu rebanho de forma sempre sábia, com a doçura que ainda encontro quando me sento ao seu colo.

1914 foi um ano cheio de pessoas a nascerem, a morrerem, a fazerem guerras, pelos vistos a fazerem amor também. Lembra-se do século XX como poucas pessoas, mais ou menos assim:



1914 foi o ano em que nasceu Alberto Caeiro, nem de propósito, dois guardadores de rebanhos, a um deles, de 1914, ano tão importante da vida que ainda não era minha (ou já seria?) devo vida toda, alma toda, amor completo:

"O meu olhar é nítido como um girassol.

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de, vez em quando olhando para trás...

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem...

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras...

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo..."

sábado, 9 de setembro de 2006

Onde há fumo...


À laia de justificação, um post sobre o fogo, o que arde sem se ver e o que não nos faz tão bem, mas faz falta, quando a vontade não é muita para tomarmos conta de nós. Outros fumos vi há pouco, de fogos de outros tempos, num belíssimo cenário (são precisos cenários? afinal o mundo é um palco, já dizia quem disso fez a sua vida e herança). Não sei todos nós somos actores, provavelmente sim, mas os de hoje eram dos artistas que trabalham. Há dois tipos de artistas, os que se inspiram com ar intelectual, JL arremessado em gesto devidamente estudado para uma mesa de café, ar preocupado com o nada em que vivem, subsídios a entrar pela gaveta para produções nulas porque falta - quase sempre - a inspiração. Outro tipo de artistas são os que se inspiram no trabalho, esses, hoje, em franco cansaço, nem sempre o suor e o empenho são aplaudidos. Mas, quem olhe e veja, vê o trabalho cuidado, preparado, profissional. Sente as dificuldades e o espírito de grupo que forma a alma de quem não desiste. Viriato morto à traição, numa noite limpa - a chuva foi só ameaça, os casacos pesaram - no castelo de Almourol, tochas ardentes e fumo na noite, um pêssego doce da mesa da boda, muitos sons (comboios, patos, pássaros, água, cavalos, armas, vozes). Não resistir a uma ideia nova nem a um vinho velho? Claro, às vezes nem ao dito cigarro, fumo sem fogo, ou fogo adiado.

sexta-feira, 8 de setembro de 2006

Sonho de uma tarde de verão

Sonhei acordada, enlevada pelo fumo do cigarro, na varanda pequenina que abre o mundo grande ao meu, que a brisa me trazia um outono precoce, reforçado pela dança das folhas de linhas que pequenas mãos desajeitadas colocam num dossier, pasta semeada desde Julho no seu sossego, a bocejar ainda de acordada em brusquidão para tais preparativos. Chegava então o outono e as folhas eram cheias de letras, as do chão dançavam, perdidas de amores pelo vento que as despia das árvores tão verdes ainda hoje. Doce vento apaixonado que não as deixa tocar na calçada quase molhada das lágrimas da estação nova, ameaça de pézinhos que correm pela rua para a escola, o cheiro a lã a aterrar na areia da praia, com o corpo do livro a proteger-nos do vento e ainda bem que as pessoas se foram - quase todas - embora. Levaram o ruído e deixaram o mar mais frio. Cabem os sonhos por aqui, tempo de rodopios e desejos, de deixar cair o torpor do verão quente e pegar na vontade de caminhar com os cabelos a namorar o vento, em volta das folhas doidas de ciúme que giram pelo fim da tarde, já não abafado o ar como hoje, já não o cheiro de flores a secar, sumos de laranja trocados por chás, na minha esplanada amarela, perto de casa, tão perto como tudo o que queremos que seja está. Como agora me apetecia mesmo, mesmo, o Outono que chegasse apressado e me envolvesse.

quinta-feira, 7 de setembro de 2006

P.M.S.

Vulgo "Mujeres al borde de un ataque de nervios" que ser mulher não é facil, óbvio que não. Passam-se doze anos de paz e quando menos se espera o corpo muda e as hormonas deixam qualquer sinapse ameaçada pelos ciclos da lua. Ser mulher é algo de estranho, uma espécie de livro em branco, com páginas cheias de tinta de cores e sorrisos e outras com tinteiros caídos por ali, impetuosos, a darem cabo do mais santo dos juízos próximos.
Não há soluções, a bem dizer, senão sorrir. A vida circula depressa, não nos podemos queixar de um corpo que nos prende ao que há de mais terra na terra que pisamos, como ser férteis ou então não, ter filhos e amores e chorar cinco dias por mês a terra que não foi fecundada.
Mulheres não são ETs, são um género da humanidade com uma história pública e privada por demais conhecida e por isso assumem carinhosamente alguns estereótipos. Mulheres sofrem, homens também choram, claro, somos pessoas, todos nos magoamos. "Há pedras no meu caminho, delas farei um castelo" (frase de mulher, que li hoje, o stress - pré-menstrual ou não - deve ser controlado e encaminhado no caminho da esperança). Para além do género e da definição cromossomática, viver, felizes, o dia a dia, aproveitando o sol, amando a lua, tão próxima de nós, também menina, sempre, mesmo lua cheia, quando parece, por vezes, tão crescida e segura.

quarta-feira, 6 de setembro de 2006

Pedro II

"Meu Rei e meu Senhor é Dom Duarte,
Por isso juro: a minha estrada é esta.
Espada de que fiz usança em arte
E, ao redor dela, há música de festa.
Reconheci nos meus antepassados
(Uns de retrato, outros, talvez, de cor)
O sangue azul que leva os namorados
A amar o amor. Pecados? O maior!
Quero à terra que piso, ao sol que vejo
E ao mar que, no verão, rejuvenesce.

Não foi além de esboço o meu desejo;
Não foi além de sonho a minha prece.
Amo o que é fácil, o que é perto e doce...
Boiar é um triunfo de marítimo.
Como se a dança vitoriosa fosse,
Dedos na harpa, dei um passo mínimo.
Do dia de amanhã, às vezes tento
Falar, como os profetas traiçoeiros:
-Céu, em geral, pouco nublado e vento
De Leste fraco.. Ameaça de aguaceiros..."

Espelho, Pedro Homem de Mello, é dele o dia, a ele a homenagem.

Pedro

Datas são datas, não são, ontem ficou nas palavras que chovia, poeta - um só - tão forte, pensamentos debruçados sobre páginas (nunca em branco, nunca vazias, que tudo era estimado e nada esquecido). Ideias quentes, pessoais e fortes, escrita toda em grandes libertações ou pequenos-grandes pensamentos. Não sei onde escreve agora mas ainda bem que nasceu 100 anos atrás, parabéns lhe são devidos pelo que ensina ainda hoje, pelo que se sente de como queria que tudo fosse sentido: forte. Tenho um livro seu no colo, o que se ama deve-se agarrar.

Pedro Homem de Mello, poeta (por outros caminhos agora, um século não é nada, pode ser presente, pode ser sonho)

Chuva de Verão
"Fácil, tão fácil
Como um espasmo
Pondo os teus dedos
Na minha face,
Nem sei se és água
Ou se o meu sangue
É que incendeias,
Abrindo todas
As minhas veias..."

terça-feira, 5 de setembro de 2006

Fundo do Mar


No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.
Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.
Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.
Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.

Sophia de Mello Breyner

segunda-feira, 4 de setembro de 2006

Aprender

Sempre do início, aprender a ser. Em cada dia nos encontramos com flores de papel de uma colecção sem cor, de um armário com que sonhámos ou em que nos escondemos. Aprender as letras para ler poesia, os números para contar pessoas, as fracções para partilhar. Abraçar nao se aprende, amar também não. Foi numa escola com escadas compridas e altas, de madeira que cheirava a madeira e a cera das casas velhas onde nada deve ser vivo e estamos lá sem saber porquê. Afinal, as letras já eram parte de mim. Idades sem idade, sabedorias ou ignorâncias mal medidas, a verdade é que todos temos que aprender a aprender. O mais importante, que é voltar ao início cada dia, um novo começo sempre. Cada pessoa uma cartilha, convém que se reconheça, quem tiver ouvidos para ouvir que oiça, que quem passa por nós pode não voltar, vidas tão breves, cada dia uma vida, uma aula cada dia. É preciso estar atento. Deve ser a frase mais repetida quando saímos de casa e quando estamos na escola e quando crescemos e os sapatos nos enformam os pés que querem correr livres e parar só para. Atentos, então. Claro. Não se pára ninguém com as mãos, não se param vidas (separam-se vidas), brinca-se, claro, contam-se histórias, joga-se aos dados com letras que já sabemos, e o desenho nunca é o mesmo do reverso, cada vez novo, cada vez diferente. As escadas revisitam-se e tornaram-se pequenas, degraus fáceis de subir, o chão liso cá fora é que ficou cruel, a professora tem cabelos brancos e a dureza caíu em sorriso com cheiro a saudade, a cera, já ninguém a põe nas escadas, podíamos agora descê-las a correr sem cair e sujar o bibe, mas os sapatos que nos calçaram não deixam. O piano já não fecha sobre as nossas mãos, e as notas soam a passado desafinado, descontrolado (D de dado, onde ficaram os meus irmãos que cresceram). D de desatinado, de aprender por nós as letras que agora se ensinam de outra forma, igual mesmo, igualzinha é a vida que passa em revoada, em tempestade séria de meter medo, donde que o problema deduzo, para não sermos felizes, seja já não podermos trepar para a cama dos pais. Aprender com as crianças que fomos e somos e revivemos, com as que têm d de discriminadas, d de desaparecidas, d de deficientes, d de desejo de um abraço e um pão com manteiga em vez de v de violência ou de violetas sobre uma campa, escondidas de qualquer forma, corpos frios vestidos de branco mármore, a aprender que nada é certo, a ensinar que tudo é fútil excepto.

D de dado

D de dado, divertido,
de disperso ou distraído,
D de dar e desejar,
de dominó e dançar,
desespero, danação,
dor, déficit (maldição)

D de cubo e de brincar,
de infância, de atirar,
de viver e de contar
dores de quem brincou com dados;
Cubos de madeira pintados
Cavaleiros nos seus cavalos
Fadas de tempos passados

D, devagar, divagar
D de tempo a passar
D de viver e querer
amigos para partilhar
lengalengas repetidas
vidas que encontram vidas

pilha de cubos destrói-se
a vida é mais do que isto
ABC só antecede
o D de que temos sede
Dê sempre o que vem depois
do que sonhou ou se quis

D de dado, D de cubo
D rolado pela estrada
Ilusão certa de um nada
que vira as faces da vida
e encontra a alma perdida
Despida porque já tarda

Poema da memória

Havia no meu tempo um rio chamado Tejo
que se estendia ao Sol na linha do horizonte.
Ia de ponta a ponta, e aos seus olhos parecia
exactamente um espelho
porque, do que sabia,
só um espelho com isso se parecia.

De joelhos no banco, o busto inteiriçado,
só tinha olhos para o rio distante,
os olhos do animal embalsamado
mas vivo
na vítrea fixidez dos olhos penetrantes.

Diria o rio que havia no seu tempo
um recorte quadrado, ao longe, na linha do horizonte,
onde dois grandes olhos,
grandes e ávidos, fixos e pasmados,
o fitavam sem tréguas nem cansaço.
Eram dois olhos grandes,
olhos de bicho atento
que espera apenas por amor de esperar.

E por que não galgar sobre os telhados,
os telhados vermelhos
das casas baixas com varandas verdes
e nas varandas verdes, sardinheiras?
Ai se fosse o da história que voava
com asas grandes, grandes, flutuantes,
e poisava onde bem lhe apetecia,
e espreitava pelos vidros das janelas
das casas baixas com varandas verdes!
Ai que bom seria!

Espreitar não, que é feio,
mas ir até ao longe e tocar nele,
e nele ver os seus olhos repetidos,
grandes e húmidos, vorazes e inocentes.
Como seria bom!
Descaem-se-me as pálpebras e, com isso,
(tão simples isso)
não há olhos, nem rio, nem varandas, nem nada


António Gedeão (Poemas Póstumos, 1983)

Dia de papoilas 2

Gritos vermelhos, não necessariamente da Festa, formas diversas e irregulares, cor de vida e de morte, tombadas quando não unas, em liberdade nos campos por onde se largam, longe de mãos cruas. Odor tóxico de sonos profundos, a cor impede a torpeza a quem se recusa a parar.

Dia de papoilas, por favor, hoje, porque há trabalho a fazer, sonhos a acordar, gritos a dar, vermelho embriagante e livre que alimenta quem quiser pensar porque é o vermelho tão forte, porque não há duas papoilas iguais, porque se devem deixar nos caminhos que escolheram mesmo que a morte seja o destino de quem se abandona à beira de uma estrada que leva ao nascer do dia que entra.

Dia de papoilas


Ian Britton, Poppies

domingo, 3 de setembro de 2006

São rosas


Nem sempre, misturadas com arroz, podem desejar felicidade e fertilidade. Podem ser pão para a alma, de forma incoerente (as flores pertencem aos campos que somos). Ter espinhos e ser egoístas, como a do Principezinho. Não são necessariamente símbolo de amor, em ramo, ou de prosperidade, em pétalas de dias especiais. Flores são flores, como pessoas são pessoas. Cada flor pode ser um sentir, cada pessoa é sempre uma história única. Como hoje a que ouvi, sempre em universos paralelos, numa situação relativamente formal, de alguém que também já apanhou pétalas e arroz há muito tempo e está fixo a uma condição injusta (ver alguns posts abaixo a discussão sobre a recente lei 44/2006) a tocar o indigno. Lembrando um dos comentários que tive o gosto de ler porque muitíssimo bem preparado, não são as leis causa efeito de justiça social, como não são rosas, Senhores, necessariamente, o pão que desejamos partilhar. Divago cansada depois de um dia cheio de experiências fortes, retendo, como as flores, as gotas da chuva de ideias que não caíu mas que me banhou no calor e na confusão de gentes deste reino onde nada há de novo a não ser que todos os dias nos surpreendemos e encontramos mais uma história de coragem, desta vez de uma rosa chamada Paula. A ela, como a todos os que me fazem ter consciência da necessidade de lutar, a minha admiração e o meu obrigado. As pétalas e o arroz, pão e circo de que nos alimentamos de quando em vez, por motivos de sobrevivência, é preciso acreditar, deve-se acreditar nos sonhos de todos, esse direito não há legislação que nos tire nunca mais. Nunca esquecendo os sonhos que foram cortados como as rosas das pétalas na mão do João, hoje. Esses, para pensar, preparação de agir. Talvez seja por isso que prefiro papoilas.

sábado, 2 de setembro de 2006

A toca do coelho

" It flashed across her mind that she had never before seen a rabbit with either a waistcoat-pocket, or a watch to take out of it, and burning with curiosity, she ran across the field after it, and fortunately was just in time to see it pop down a large rabbit-hole under the hedge. In another moment down went Alice after it, never once considering how in the world she was to get out again. "

Alice e a passividade substituída por Alice desperta por corridas para o interior de si. Charles Dodgson a amar Alice Liddell, a conduzi-la pelo mundo da imaginação e da surpresa ou a deixar-se conduzir e surpreender. Relação cheia de sensualidade e imaginação, enigmas de gatos e ratos, Dodgson era perito em jogos de palavras, Alice curiosa e inquieta. Largou, assim, as margaridas para saltar a pés juntos para o desconhecido, sem achar estranho o que encontrou, pouco tempo para pensar, tantas mudanças, e as rosas brancas pintadas de vermelho, um gato que ri ou talvez não. Conclui Alice que tudo o resto não passa de um castelo de cartas, por isso, certamente que sim, o mesmo tudo que nos ultrapassa, vale a pena.

Tragédia da Rua das Flores



Bdmania é uma de duas livrarias (Lisboa e Coimbra) dedicada a banda desenhada. Hoje visitei a de Lisboa e tive o prazer de encontrar um espaço não exclusivamente comercial mas de encontros e tragédias, que passo a descrever:

  1. Encontro de um público mais ou menos fiel, mais ou menos coincidente em gosto
  2. Encontro de uma boa preparação e conversas interessantes por parte de quem acolhe
  3. Encontro de surpresas boas, antigas ou novas, variadas, com abrangência de público-alvo

Por outro lado:

  1. Tragédia do preço dos livros em geral, fica-se mesmo com água na boca, apetece trazer o mundo para casa quando se sai dali
  2. Tragédia da falta de público
  3. Tragédia da constatação do desinteresse pela leitura em geral, pela BD como arte, em particular
  4. Tragédia de projectos de qualidade que ficam no limbo entre o facilitismo da sociedade de informação e do elitismo de públicos especializados e fiéis que nunca alternam

Em suma, a surpresa foi boa, óptima mesmo. Mas a conversa realista. A falta de leitores é mortal para projectos de qualidade que acabam por ter que ceder espaços e prioridades a consumismos e inevitavelmente baixar os parâmetros iniciais para sobreviver. Não é criticável. É mesmo de louvar a coragem de continuar, de não ter vergonha de marcar a diferença, indiferentes a olhares de desprezo de quem tem pena da aproximação de públicos mais latos, assumindo a luta de ensinar a aprender e cultivar gostos, o que pode ser, no mínimo, divertido e fácil. Peanuts.

sexta-feira, 1 de setembro de 2006

Auto-retratos


Para quem goste de fotografia, o estudo de identidade é recorrente. Identificamo-nos em objectos, em textos, em identidades para além da nossa ou decorrentes da nossa, relações de causa-efeito físicas e emocionais, tudo o que nos toca de bom.

Os filhos são parte de nós e nós parte deles. Indissociáveis. Exigimos mais do que damos, tanto a aprender com quem sai de nós para o mundo ou talvez quem o mundo retire do melhor que haja em nós. Filhos partilham-se, ensinam, emprestam sorrisos, ajudam-nos a crescer, educam-nos, arrastam-nos, páram o tempo e revolucionam-no, piratas que transbordam de ternuram, viram a mesa ou o banco, nos tiram do sério e nos levam a sério, mas sempre a brincar.

Filhos são um privilégio, nossos ou dos nossos (amigos, amores, pessoas) porque nos completam, surpreendem, agridem com carinho em toneladas, formam, refrescam, adoráveis pestes que nos cercam e completam.

Conduzem-nos por caminhos fantásticos, atam os fios que ficaram por atar ou que esquecemos de agarrar melhor na nossa infância, agarram as mãos, abraçam de repente, recusam a sopa mas não o gelado, sabem optar, têm vontade, muita vontade de ser eles e sentimo-nos tão mal quando lhes temos que ensinar a sobreviver de outro modo que não o modo-bicho tão querido com que nos chegaram aos braços.

As crianças são sempre a nossa identidade, não é à toa que as árvores têm raízes para não cair, não é à toa que a prata e a luz fazem imagens de sonho e sonhos de imagens, projecções de filmes ou de futuros, de presentes doces, de beijos cheios de rebuçado, de mãos sujas de brincar, de roupas rotas e joelhos esfolados, apetece-me tanto fugir de triciclo outra vez e já tenho a geração seguinte no carro ao meu lado, cadeirinha arrumada no porta-bagagens para os filhos dos amigos, para os sobrinhos, para a minha lembrança de lhe pegar ao colo para colocar no carro, como se fosse de vidro, ele - o meu filho - que agora me passa - ainda hoje - o braço por cima dos ombros e me guia por caminhos desta Lisboa de descoberta para espaços de partilha de interesses e sentimentos.

Auto-retratos sempre, Matilde ou João ou Teresa ou Francisco ou Pedro ou Maria ou Inês, no segundo caso os olhos idênticos, o sonho maior e mais puro, as aulas tão grandes, os abraços tão doces. Identificação. Reconhecemos orgulhosamente o que devíamos reconhecer agradecidos. O privilégio de nos espantarmos com pedaços de nós que reconhecemos em outrém, como numa história de amor sempre bela porque inacabada.

Rebeldes com causa


Em revoada de gaivotas tontas sobre o mar, embriagadas de espuma e de vento, senti hoje o mundo a acelerar por razões desconhecidas, irracionais. Somos homens e mulheres, uns dias activos, outros a deixar fluir. Talvez demais nos dois casos, talvez muito barulho provoque mesmo um enorme silêncio. É bom entrar em voos descontrolados e subir até onde as asas nos levem, sem medo da força das ondas ou dos ventos contrários, lutar pelo que se quer, entregarmo-nos a causas sim - nossas ou de outrém - sem submissão, outras vezes ser mesmo rebeldes com ou sem causa, voar só por voar, eventualmente alcançaremos algo no fim do caminho sem fim que queremos.