Há dias em que nos aparece a vida desarrumada. O tempo foge, as prioridades baralham-se ou sobrepõem-se, nada está no sítio. Gosto pouco de rotinas, mas fujo de tempestades mais fortes que eu. Trabalhos começados e não acabados (ainda), trabalhos forçados, trabalhos voluntários, trabalhos que aterram em aeroportos pequeninos e ficamos com uma garagem de madeira cheia de carrinhos atirados para o monte da infância que já foi. Não há fugas, alguns caminhos têm mesmo vias únicas e nestes dias desarrumados parecem mesmo a 2ª circular de manhã, agora em princípio de aulas.
Pentear a vida como crinas de um cavalo que nos foge ou como uns cabelos de crianças que brinca não é tarefa fácil, sobretudo porque a vontade tem que ser muita. Hoje, deixei que aviões a mais pousassem na minha mão e não sei que lhes fazer. A escrita é um ponto de fuga, não resolve nada, apenas ajuda - espero - a arrumar ideias.
Desarrumada hoje, em desassossego, a escrever tudo menos o que devo porque enquanto escrevo penso no que quero fazer, como o irei fazer, funciono em multiprocessamento, será da geração, será dos nossos dias, será estrutural? Parece-me que sim, que as corridas são demasiado longas, que há dias demasiado esforçados, que o saber parar antes de recomeçar tarefas que se querem bem feitas e com gosto é por demais urgente.
Arrumar tudo então, mas por onde começar, se tudo é necessário? Fazer escolhas é sempre partir, mesmo as coisas mais simples. Os dias exigem demais de nós e ao mesmo tempo fazem de nós criaturas demasiado fúteis e egoístas, não que entre pela linha de achar que a felicidade se encontra ao ver guerras no telejornal e suspirar de alívio por não serem perto. A isso se chama cinismo. As guerras diárias são outras, o ponto de começo é que tem vantagem. Há problemas (desarrumações) que não temos. Partimos de um estatuto de segurança para os nossos caminhos por muito estreitos que nos pareçam por vezes, por muito cansaço que sintamos em nós ("coitadas das estrelas"). Pois, coitadas das estrelas. O cansaço das rotinas, Pessoa sempre sábio, enorme o Livro do Desassosego, belíssimo, meu livro de cabeceira quase permanente. Escreveu-o em partilha ou para si mesmo? Quando não temos desarrumações interiores ou mais pragmáticas, inventamos sempre algumas, será o homem do século XXI um drogado por stress?
Quando entro em pânicos destes apetece-me sinceramente ir ver o Tejo, deixar fugir os olhos por entre a ondulação macia, pensar no longe e no perto de uma margem e de outra, pensar que a distância das margens é, evidentemente, metafórica, a curta mas cansativa distância que pode ir de um (ou vários) problemas à óbvia, visível, lógica, mas árdua solução.
Estar vivo dá trabalho, vivo realmente, não em limbos apáticos de rotinas seguras. No entanto no caos de vida que escolhi também há linhas rectas, o caos permanente acaba por ter uma ordem, a diferença é que a imprevisibilidade do dia seguinte sufoca, e quando é necessário interromper o caos para disciplinar o rasto - mesmo que de estrelas - tudo fica fora da ordem natural que já era a diversidade.
Desarrumar, por isso, é o que vou fazer depois de escrever. Desarrumar o caos por umas horas, sentir-me mais desconfortável mas mais eficaz e ordenar dolorosamente prioridades menos gloriosas, mais humildes, mais desconfortáveis. Depois, voltar a sorrir, nem que de cansaço.