sábado, 12 de agosto de 2006

O nada que somos




Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

Fernando Pessoa, 1-1931

*****

Fim de tarde, fresco nas ruas de Lisboa, um passeio, um jantar de esplanada, um gato meio pardo a querer festas, a dividir uma salada, meigo no abandono, sem nada esperar, sem nada ter, a dar mais ao dar-se que a receber festas, a ronronar, dócil, a abandonar-se a cada minuto e à sua vontade. Olhos brilhantes ao cair do escuro, sempre bem porque vivo, moldável como não são os homens, tantas prisões, nós. Pode vir um carro depois, pode vir alguém que o leve para casa - maldade das maldades, gato livre não é de jaula - pode continuar com as ruas de Lisboa como mundo ou partir, brigar, ser territorial, chegar-se mais ou menos aos homens, chegar-se mais ou menos aos bichos. Instinto ou sabedoria? Temos sempre a aprender com os animais que somos...

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