domingo, 13 de agosto de 2006

Pequenos deuses caseiros

Jantar de amigos, manobras diversas, conversas cruzadas, crianças entre os nossos pés, barulho de batatas fritas e de sorrisos. Corridas, jogos, televisão, desenhos animados. Crianças, todos. Numa mudança de dvd, uma entrada num programa - não estou muito familiarizada com a programação em directo, devo confessar, falta de tempo e de interesse. Mas desta vez prendeu todos. Qualquer coisa que tinha a ver com músicas, músicas de que só os pequenos mais velhos se lembravam e contextualizavam. É muito diferente ler poemas, ouvir dizer poemas - cantados ou não - ou ouvir canções anacrónicas, não sentidas, com sabor a música pimba, a sucesso de top barato. Digamos mesmo que é triste ouvir a pedra filosofal gritada por alguém cuja preocupação era mais a roupa que tinha vestida e a imagem que transmitia, em contraste com uma pequena passagem da sua interpretação por Manuel Freire. É uma frustração que as mensagens que se criaram e foram modelando a estados de alma de um país se tenham perdido. Não há como voltar atrás. Perde-se Rómulo de Carvalho nas palavras e Manuel Freire no sentir e na voz porque já ninguém se lembra. Os portugueses têm memória curta? Estou a trabalhar memórias e museus. Precisamente na perpectiva da sua pertinência, contexto e imaterialidade (o lado que se deixa cair mais facilmente).

Continuo a não gostar de ver televisão em directo, agradeço aos deuses ter memória que me permita distinguir as vivências sentidas de remakes dolorosos. Lamento que se assassine desta forma o passado recente, que o povo que lutou prefira ter os filhos anestesiados. Que se desvalorize, esqueça, apague de forma esquizofrénica os fantásticos homens de intervenção, arrumados numa prateleira com pó, num sótão incómodo qualquer.

Deixar de sonhar é grave, seria suposto que o mundo continuasse a avançar, sobretudo pelas mãos das crianças, de forma consciente. Acredito que continuariam a sentir como quem canta ou a cantar como quem empurra bolas coloridas para o futuro, sem ser por acaso, com olhos a brilhar de liberdade contida. Afinal, ainda há muito por mudar.

Vale a pena ler bons comentários ao tema.

Onde li outro poema, mesmo a propósito, letra de Sidónio Muralha, também musicada por Manuel Freire:

Dormi em colchões de pena,
dançai dias inteiros,
comprai os que se vendem,
alteai vossas janelas,
e trancai as vossas portas,
pequenos deuses caseiros,
e reforçai,
reforçai as sentinelas.

Ainda há quem sinta.

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