quinta-feira, 31 de agosto de 2006

L46/2006

"Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior."

Bernardo Soares, Livro do Desassossego

Milhares de vozes se têm levantado companheiras, por direitos de ser pessoa, uno e único.

Lei 46/2006 assumida por José Sócrates.

Início de um mundo diferente ou assunto arrumado na teoria e (in)consciências?

quarta-feira, 30 de agosto de 2006

Devagar


Do meu vagar não traço rotas
não tenho trilho que me prenda
não tiro dados nem notas
não encho uma linha de agenda
do meu vagar não chego a Meca
não faço nada num só dia
não corto a fita da meta
não vejo Roma nem Pavia

Do meu vagar
sei que nunca hei-de ir longe
vou aonde for preciso
vou indo do meu vagar
em busca do tempo perdido
e se um dia o encontrar
o longe não faz sentido

Do meu vagar há um nicho
um pico de ilha insubmersa
onde há lugar para o capricho
que dá pelo nome de conversa
do meu vagar a paisagem
ainda tem beleza em bruto
e vale mais uma palavra
que mil imagens por minuto

Carlos Tê

terça-feira, 29 de agosto de 2006

Falamedemusica

As palavras são tão próximas umas das outras como num poema, o projecto arrojado, a partilha um objectivo. Por isso é importante ver, ler e ouvir com os sentidos da alma e a aventura como rumo renovado. No falamedemusica somos bem acolhidos pela mão do Luís e da sua equipa, conduzidos a caminhos de sons, de histórias, de rumos, de ritmos. Ler e enviar poemas, ouvir e arriscar os percursos da música e entender como a música pode ser um percurso para todos. Um favorito a adoptar, uma colaboração aberta e grande como um coração. É de música que se fala, palavras juntas de forma delicada, acordes dedilhados em harmonia.

segunda-feira, 28 de agosto de 2006

Duplicidades



Janus ou Janus?

Há, claro, um tempo, como um significado, para tudo. Imprevisível como um olhar, vigiando portões e inícios, ou longíquo do nosso alcance como um corpo celeste. Tempo para tudo, o que nos falta, o que nos sobra. Tempo até para promover e despromover planetas. Heresias da ciência ou da mitologia, prioridades que se constroem diariamente, elas próprias filhas do tempo e da vontade.

Há um tempo para estudar e um tempo para aprender. Um tempo para trabalhar e um tempo para dar frutos. Sobretudo um tempo para sermos nós, em tempos de sorrir e inevitavelmente de sentir. Alternando entre o longínquo dos céus em que nos sonhamos e a corrida infantil a mitos em que nos revemos.

Tempos fortes como abraços, significados duplos e doces, imprevisíveis como o tempo em que vou publicar este post, antes ou depois de acabar o meu trabalho, no fim de um dia ou no início de outro. A noite é escura fora da minha janela, no tecto onde mora Janus ou Janus habitaria se existisse, afinal, tudo está em tudo o que se sente.

Entrelinhas


Entre linhas andam os comboios e as palavras, caminhantes os que esperam ou seguem, agarrados ao desejo de partir, ficar ou voltar, sobretudo entender ou perseguir. "Tudo o que é evidente, mente. Evidentemente". Pois.
--
Caminhos de ferro, nem sempre são óbvios os destinos ou as paragens, os ritmos e as companhias. Das palavras há a esperar que sejam ditas, ou então não. Pés aparafusados no sonho para que pelo menos o itinerário se renda a uma possibilidade não evidente.
__
É sempre bom que a vida tenha na cortina do dia seguinte mais sorrisos que medos, que os comboios de corda continuem a circular, que as rotundas que invadem as nossas cidades nos permitam dar a volta várias vezes, ver as flores ou os sinais (obrigatório sorrir) que se vão plantando por esta república fora, continuando, estudantes vadios, a procurar a saída para o mar...

domingo, 27 de agosto de 2006

Domingo

Hoje é domingo?
Não e sim,
Para ser dia que se vive
mergulho as mãos em mim
e tiro os domingos que tive.

Luís Veiga Leitão

sábado, 26 de agosto de 2006

Poema original

Auguste Rodin, Poeta e Musa (Hermitage)
--
Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutra espasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema
como se fosse ao abismo
e faz um filho às palavras
na cama do romantismo.
Original é o poeta
capaz de escrever em sismo.

Original é o poeta
de origem clara e comum
que sendo de toda a parte
não é de lugar algum.
O que gera a própria arte
na força de ser só um
por todos a quem a sorte
faz devorar em jejum.
Original é o poeta
que de todos for só um.

Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce à rua
bebe copos quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.

Original é o poeta
que chega ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.

Esse que despe a poesia
como se fosse mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer.

Ary dos Santos

sexta-feira, 25 de agosto de 2006

Catarina ou o sabor da maçã

De repente lembrei-me, de melancólica que estava, de alguém que me faz falta, a minha melhor amiga, Catarina, sabor de maçã e de gargalhada. Conhecemo-nos em outubro de 1988, morreu em março de 1992. Na primavera, na sua ilha - S. Miguel. Despedi-me dela em Lisboa, em Telheiras, tínhamos almoçado juntas, acompanhou-me ao carro, sabíamos que não nos veríamos mais, eu seguia para Coruche, ela, no dia seguinte, para os Açores. Por uma vez não me pediu nem eu me ofereci para a levar ao aeroporto. Em quatro anos deu-me tudo o que alguém amigo pode dar numa vida, em quatro anos viu-me crescer e viver, eu vi-a criar os filhos, ficar doente, divorciar-se, rir-se da vida como ninguém. Descobri caminhos de hospital inimagináveis de cada vez que era operada. Descobri uns pais fabulosos (pensava que eram só os meus). Ensinou-me e aconselhou-me e ouviu-me. Fizémos quilómetros juntas no volkswagem do meu pai. Fizémos loucuras. Saímos juntas do trabalho durante este tempo todo, tanto tempo e tão pouco, sempre, fomos buscar a Ritinha ao infantário, o Zé António à escola. Catarina, Catarina, hoje quem tem filhos sou eu, hoje sou eu que vivo tanto do que me disseste. Fizeram-me falta as tuas lágrimas e os teus risos em tantos momentos e estiveste sempre lá com a tua força, fazes-me falta agora. A única pessoa que me chamou Micas, que conversou comigo até nascer o sol em casa dela, na minha, na rua, no trabalho. A mulher a quem eu li um envelope com o resultado de uma mamografia porque os olhos fugiam e a mão tremia - nunca mais te vi tremer, querida - e era positivo, o resultado, era positivo, e conheciamo-nos há uma semana, e eu não queria ler, queria apagar, podia ter tentado e as letras fugiam e a minha amiga ainda estaria comigo hoje, não acham? Hoje, que estou triste não sei porquê, porque há dias em que não cabemos em lugar nenhum e tudo nos falta e falta-me tanta gente, mas falta-me muito a Catarina, até porque faltaram depois outras pessoas e aconteceram outras coisas e ela não estava ali para me explicar, não está aqui para me explicar como se vive, como se morre, como se luta. Com sabor a vida, linda até ao fim, saíndo da quimioterapia e rebocaram o meu carro e o que vamos dizer ao teu pai, Micas, estamos lixadas... Com a gargalhada rápida em que vieste e foste, que deixou estrelinhas daqui ao infinito e um soluço até hoje por sair aqui tão fundo que voltava mesmo atrás para apagar o positivo e podia ser que não fosse nada e viesses jantar cá hoje e tudo como sempre, única, vou ter saudades do teu sorriso.

Caminhos e atalhos

Somos sempre confrontados com opções, em cada encruzilhada, mal de nós quando os sinais de proibido ou os portões fechados nos tapam os acessos, pobres gaiatos que não trepam mais alto. Caminhar, rumo ao horizonte certo, ao nosso, ao que nos faz sentido, é sempre a direcção a seguir, ao ritmo de cada um, nunca ao imposto, por vezes é preciso esperar por quem tropeça ao lado, por vezes os caminhos mais doces são irregulares ou inexistentes e os atalhos... passam a ser nossos para o melhor e para o pior. Temos individualidade sobretudo para desbravar a vida. É duro e difícil orientarmo-nos pelas estrelas e ter os pés na terra, caminhar para um horizonte que os outros não vislumbram. Talvez não exista mesmo, mas até agora não me tenho dado mal a viver por instinto e por paixão, poucas coisas mais devem valer a pena. Ser rejeitado não é fácil, pior que dizer adeus é ser mandado embora. Mesmo que se entenda a lógica e os princípios, concordando ou não com eles. Mas parar de lutar pelo que se acredita, parar de viver o caminho de um horizonte sonhado, olhar bem para o alto e acreditar que são as estrelas que nos guiam, mesmo correndo o risco de tropeçar na terra e no pragmatismo dos homens... não.

Interrogações ou dúvidas?


A mesma marca, significados bem diferentes, nem sempre reflectidos. Usamos e abusamos das palavras com vulgaridade, com leveza. Interrogar é perguntar, questionar(se), ir à procura de uma resposta (ou não) num caminho conhecido ou desconhecido, voluntário, intuitivo, sem garantias, de qualquer forma. A dúvida essa, está um passo antes, perde aos pontos, é uma forma de consciencialização de ignorância que até pode nem ser. Fica fechada numa caixa dentro de nós, a moer, a doer, não dá frutos. É um círculo que vem dar ao não-resultado de uma não-resposta ou de uma angústia. Interrogar produz sempre um confronto entre o que se tem consciência de existir - mesmo que não sabendo bem onde ou como - e a(s) resposta(s) que nos predispomos a ouvir e analisar. Implica um espírito coerente, filosófico. Qual dúvida metódica... Interrogar é enfrentar o que sabemos, o que não sabemos, o que está no outro, na pessoa, no livro, no horizonte a que apresentamos a dúvida corrosiva. Interrogar é produzir conhecimento.

quinta-feira, 24 de agosto de 2006

Etiquetas 2

Etiqueta

do Fr. étiquette
s. f.

conjunto de cerimónias usadas na corte e no trato social;
trato cerimonioso;
regra;
estilo;
legenda;
rótulo que se põe sobre alguma coisa para indicar o conteúdo, o preço, etc. .


Etiquetar
verbo transitivo
pôr etiqueta, rótulo, legenda em
classificar


Esta palavra ETIQUETA faz-me reflectir sobre algumas coisas:

Começaram por pastilhas elásticas, colaram-se a produtos diversos como livros ou carros, ainda não felizmente a pessoas. São bichinhos engraçados porque úteis, até em termos de acessibilidade à informação, são rectangulozinhos filosóficos porque a informação neles contida não é vista e está lá, o essencial é, de facto, e com toda a tecologia disponível, invisível para os olhos e para o processamento humano...

Falei delas já várias vezes, estudo-as, procuro obviamente a minha - se alguém a encontrar avise, não há tarefa mais difícil e mais incoerente que sermos nós mesmos. Este jogo das etiquetas foi engraçado nesse sentido. Somos muito pelos outros que nos rodeiam.

O que define o ponto do caminho onde se vai, dos olhos ou da ponta dos dedos para as folhas em que nos procuramos. Faço colecção, adoro, é uma forma de criatividade e de identidade, bem como de identificação, quando se mantêm no ponto certo, na palavra pretendida, quando recordam de onde vieram, de tempos e espaços incorporados, de mãos amigas. Com existência própria, compatíveis com reflexões largas pelo que neles cabe de mensagem, de leitura e de mapa para leituras outras.

4. Ficção Científica
No Admirável Mundo Novo ou no 1984, como em tantas obras e contos de ficção científica, mesmo em cinematografia mais recente, uma das questões recorrentes é a possibilidade de controle de localização de corpos por um poder. Foucault explica. Temível. Manter a liberdade de ser e estar é fundamental. Fundamental e prioritário lutar pelo espaço próprio e alheio, pelo espaço de privacidade, equivalente a um conhecimento interior e a uma paz que equilibra, não devassada.

5. Preconceitos
Rotular pessoas por características ou comportamentos é uma das minhas missões de vida - para alguma coisa havia de cá andar, que não só para escrever posts... Impressiona-me e revolta-me o julgamento estético ou comportamental do outro, aquele em que nos revemos e que tememos. Impressiona-me e revolta-me que a liberdade de ser diferente (ou o estado de ser diferente, nem sempre decorrente de opções) seja manipulada, manipulável, socialmente castradora. Esta última reflexão não tem link. Deixo o link directo ao comportamento de cada um ao longo da sua vida. Olhar atentamente, ver o fundamental.

6. Comportamentos
Inevitavelmente as recordações de conselhos maternais sobre a colocação de cotovelos na mesa ou não trepar às arvores e não bater nos irmãos (cinco, gloriosa mãe). Comportamentos em geral, alguns cruelmente ligados a rótulos sociais ou culturais. Que continuamos inevitavelmente a impôr aos nossos filhos. De preferência com uma explicação sobre a relatividade, a mudança, a variedade e a liberdade.

7. Símbolos

Símbolos?
Estou farto de símbolos...
Mas dizem-me que tudo é símbolo,
Todos me dizem nada.
Quais símbolos?
Sonhos. —
Que o sol seja um símbolo, está bem...
Que a lua seja um símbolo, está bem...
Que a terra seja um símbolo, está bem...
Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa,
E ele rompe as nuvens e aponta para trás das costas,
Para o azul do céu?
Mas quem repara na lua senão para achar
Bela a luz que ela espalha, e não bem ela?
Mas quem repara na terra, que é o que pisa?
Chama terra aos campos, às árvores, aos montes,
Por uma diminuição instintiva,
Porque o mar também é terra...
Bem, vá, que tudo isso seja símbolo...
Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,
Mas neste poente precoce e azulando-se
O sol entre farrapos finos de nuvens,
Enquanto a lua é já vista, mística, no outro lado,
E o que fica da luz do dia
Doura a cabeça da costureira que pára vagamente à esquina
Onde se demorava outrora com o namorado que a deixou?
Símbolos? Não quero símbolos...
Queria — pobre figura de miséria e desamparo!
— Que o namorado voltasse para a costureira.

Álvaro de Campos

Etiquetas

Autoscopia forçada? Vamos a isso...

Obrigado aos meus amigos PRECA e CRT, por me terem pedido seis definições (etiquetas) da minha pessoa e seis casos de pessoas que admiro (é a minha leitura do vosso pedido...)

1. Seis etiquetas pessoais:

amiga (fiel)
apaixonada (muito)
mãe (melga)
criança (sempre)
hiperactiva (desde 13 de Maio de 1966)
bipolar (entre o Ribatejo e o Alentejo divide-se o coração, como as raízes)

2. Seis para desiludirem em definitivo quem leia este blog

leitora compulsiva (defeito de fabrico)
lutadora (direitos humanos são direitos humanos)
amante de música (ninguém normal ouve o Requiem às 6 da manhã...)
amante de fotografia (beleza é beleza, nem sempre a que os homens esperam, nem sempre a que se vê, em definitivo sempre a que se sente)
amante de poesia (três amantes, que sorte, espero ser retribuída)
irreverente (donde a observação anterior e a mudança de carreiro que se segue)

3. Seis convites, cinco respostas directas
Sugiro que conheçam um bocadinho melhor as seguintes pessoas, alguns bloggers, outros não. Porque são grandes amigos, porque são pessoas que me orgulho de conhecer, porque são da equipa que muda o mundo! Os primeiros cinco convites foram respondidos directamente, o sexto aguarda-se...
---
José Manuel David, 50 anos, professor e músico

Etiquetas: sporting, música, ler, passear, teimoso, ansioso

Acrescento ao Zé Manel: tolerante, criativo, brilhante, culto, alegre, amigo paciente

(Pode ser encontrado por aqui, em http://www.gaiteirosdelisboa.com/)

Rui Cruz, 19 anos, informático

Etiquetas: lutador, paciente, desorganizado, amigo do seu amigo, consciente, protector

Acrescento ao Rui Cruz: inteligente, precoce, interessado, dinamizador, fiel, atencioso

(o Rui Cruz é blogger em http://www.ruicruz.com)


Rui Fontes, 46 anos, Gestor de Empresas, Gestor de Projectos da Área da Acessibilidade e Informática

Etiquetas: paciente, calmo, teimoso, honesto, introspectivo, inteligente

Acrescento ao rui fontes: amigo, lúcido, generoso, activo, humano, disponível

(Rui Fontes a encontrar em http://www.tiflotecnia.com)


Rodrigo Santos, 28 anos, locutor de rádio, estudante de direito

Etiquetas: perseverante, bem humorado, indeciso, analítico, honesto, apaixonado por pessoas e causas

Acrescento ao rodrigo: inteligente, vivo, atento, interventivo, lutador, trabalhador

(Rodrigo a ouvir em 92.2 fm, Rádio Ribatejo)


Susana Cordeiro, 25 anos, Psicóloga

Etiquetas: sonhadora, introspectiva, determinada, sensível, teimosa, responsável

Acrescento à Susana: meiga, amiga, maternal, intuitiva, desperta, presente

(Susana em merecido destaque em: http://omelhoranjo.blogspot.com/2004/06/proposta-de-fim-de-semana-domingo.html)

---

Soulshadow, em convite directo: em http://bo-blackorb.blogspot.com, onde se passa a pasta a outra geração...

quarta-feira, 23 de agosto de 2006

Crepúsculo



Um dia, mortos, gastos, voltaremos
A viver livres como animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

O vento leva os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nossos membros lassos
A leve rapidez dos animais.

Sophia de Mello Breyner

Autopsicobiografia

"E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm."

Sem fingimentos nem falsas dores, quando nasceu o meu primeiro filho escrevi poesia durante dois meses. Há deslumbramentos assim, deixemo-nos levar por eles. Releio hoje com ternura a inocência dos meus sentimentos de há doze anos, e a fraca qualidade do que encontro é compensada pela verdade de tudo o que escrevi. As palavras são importantes quando se cruzam com os sentimentos, fundamentais quando a explosão é física, como quando se ama, como quando se dá vida (daremos vida?). Mistérios demasiado latos, "é tão misterioso o país das lágrimas". Sobretudo vale a pena acreditar na felicidade. Ou esperar entre idas e vindas, criatura atarefada, nem sempre nos toca, mas afortunados os que aguardam, mesmo entre lágrimas, por ser cativados.

"Foi então que apareceu a raposa".

(os autores são óbvios, entraram no nosso imaginário colectivo felizmente, abstenho-me de os comentar, só os admiro; como admiro o nascer do sol, daqui a umas horas, presente porque o sei, futuro porque o desejo)

terça-feira, 22 de agosto de 2006

Arrumar a vida


Não é possível, claro. Tudo invade e baralha, tudo está sempre fora do lugar imaginado como ideal, trocado, simples e claro ou violento e intenso. Os nossos dias também podem ser guerras, às vezes com uma flor, às vezes com lágrimas. Os outros podem ser o céu ou o inferno ou nenhuma das coisas, apenas uma forma de entrega que nos faz sair de nós e esquecer a nossa própria estrutura em turbilhão. Arrumar a casa sim, a vida nunca. Nem sei se me sentiria bem, terminada uma tarefa, deixa de fazer sentido continuar nela. No entanto sinto que a diversidade é importante, a confusão não, é o melhor caminho para nos perdermos. Continuar entre os escombros do que já construímos e desbastámos, ceifeiros de nós mesmos, escultores aprendizes, cicatrizes junto ao corpo, é mais fácil de dizer ou de escrever que de viver. Não se medem dores nem vontades nem desejos. Não se tenta mudar o impossível, mas o que faz sentido mudar. Com o cuidado de não estragar o que outros sonharam. Sonhar está acima de tudo, pelo sonho é que tentamos ir, então.

segunda-feira, 21 de agosto de 2006

Falar com o corpo


"O gesto, esta dança de palavras no espaço, é a minha sensibilidade, a minha poesia, o meu eu íntimo, o meu verdadeiro estilo."

Emmanuelle Laborit, O Grito da Gaivota

Comunicar tem tantas vertentes quanto as vontades que as motivarem. A fala, sentido lato, pode ser uma fonte de mal entendidos. Os olhos podem enganar. O corpo nunca. Por isso é tão autêntica a sua comunicação, é dela que nascemos, é chegados ao final do nosso corpo, no seu último comunicar com o outro, que nos despedimos. O frio da morte, o quente da vida, envoltos uns nos outros, aliança desde que há homens, dar as mãos às crianças guia-as ou guia-nos? Sobretudo liga-nos. Um olhar pode valer ou não mil palavras, mas um abraço vale certamente muitos discursos. Um gesto é tão válido quanto uma palavra, um toque tão autêntico como um poema. Menosprezamo-nos, infelizmente. Fabuloso saber comunicar de várias formas, não necessariamente porque tenha que ser, por não haver alternativas, mas porque a necessidade aguça a sensibilidade e esta passa-nos ao lado, habituados ao comodismo dos sentidos estrutamente necessários. Crescemos frios. Criamos mulheres preparadas para a solidão e para a dor. Criamos homens competitivos e que não choram. Estigmatizamos a diferença. Recusamo-nos a naturalizar aquilo que somos, um corpo rodeado de outros, mais nus e mais expostos que nunca, na multidão que corre e se empurra, sem saber para onde se dirige o carreiro. Ir mais além é importante, tão pouco o tempo que por cá passamos, dois dias, um para nascer outro para partir e vamos deixar de nos abraçar? É sempre tempo de falar com o corpo, é sempre tempo de pedir um outro abraço e sentir. Sem palavras.

sábado, 19 de agosto de 2006

Lendas de lagos

Lancelot, vindo da imaginação feita escrita de Chrétien de Troyes, apropriado por Sir Thomas Mallory, que o introduziu nas lendas da Távola Redonda, recebeu os seus poderes num lago, a água sempre mágica nos nossos imaginários, sensual, calmante, apelativa, vida em horizonte largo, lugar de nascimento e morte. Lagos, lugares de dúvida e serenidade, onde apetece mergulhar a alma mais que o corpo, mergulhar os olhos na beleza, fechá-los para o sonho entrar e trazer as histórias de cavaleiros e fadas que nos elevam a mundos que não o nosso, a dimensões de desejo, de transgressão, de doçura, de coragem mais que humana, a de trespassar com lanças até à morte o que nos força, lutar pelas honras certas, pelo que somos, realmente. E podemos ser tanto...

"Toujours placer amour plus haut qu’honneur Certain
Que la nuit n’est pas longue à cause du matin
Et je saurai baisser le front pour obéir
Sortir nu dans la pluie et craindre le beau temps
Si je suis le plus fort le plus faible paraître"

Lancelot, apropriado como todos os sonhos, para todas as causas.

Saber por onde andamos


Só se lembra dos caminhos velhos
quem tem saudades da terra.


O Instituto Geográfico e Cadastral, de boa memória, era junto à Estrela. Nele trabalhou o meu Pai durante anos, nunca gostou de trabalho de secretária, mas de trabalho de campo, de meter os pés ao caminho e descobrir rotas e trilhos e estrelas, que orientassem ou desorientassem, para outros caminharem com segurança, receio ou certeza. Nunca soube ler mapas, nem os do meu Pai, menos ainda os quadros parietais que eram uma predilecção da Sra. D. Manuela, que desesperou a tentar ensinar-me os nomes dos rios e as linhas de caminho de ferro. Nunca soube dobrar mapas como manda a lei (supostamente têm uma lógica, terão lógica os nossos percursos?). Hoje o meu Pai já não faz mapas, mas continua a enviar os filhos e os netos por caminhos de descoberta. E nós, claro, vamos à procura...

sexta-feira, 18 de agosto de 2006

Le Chat


Philippe Geluck, ícone da banda desenhada belga, é indissociável do seu personagem O Gato. No álbum Sua Excelência, O Gato, encontramos uma fabulosa sequência sobre a Vénus de Milo, intercalada com outros desenhos, cheios de humor subtil e único:


--- --- ---

Crescer



Crescer dói? Não necessariamente. Com os amigos certos por perto, quanto mais melhor. A vida é rápida, passa num ápice, queremos estar no colo outra vez e nem demos por nada. Temos muitos colos que nos acolhem e quando percebemos isso respiramos fundo e, talvez, saia um sorriso. Dias de aniversário começam às 00:00, com telefonemas e mails e entradas no msn, quando se pertence à sociedade da informação. Dias de aniversário passam rápido como vidas e deixam rasto de fitas e papéis de embrulho cada vez com menos cores, velas cada vez mais fáceis de soprar - a primeira exige largos treinos - e depois, novamente, mais difíceis, a luz a ficar eterna como as memórias silenciosas que queremos guardar na alma. Ser crescido não é ser feliz, é estar noutro ponto do caminho. Talvez mais alto, se tivermos sorte ou inteligência, subir devagarinho para não tropeçar, chegar ao topo do monte e ter uma perspectiva nova de tudo, descer e apreciar, saborear a vida como um fruto doce, amarguras de lado, somos nós que temperamos... Quando estamos felizes fazemos anos mais vezes, sorrimos muito, damos as mãos, talvez até gargalhadas. É urgente aproveitar a vida, com tudo o que temos de bom, como as crianças que abraçam os bonecos com urgência para que chegue a luz da manhã e passem os medos. É urgente ser feliz em cada dia, aproveitar o que somos, encarar as quedas como aprendizagens, aproveitar a brisa como um beijo, que pode ser de parabéns...

quinta-feira, 17 de agosto de 2006

Dessins d'écrivains

Fabuloso, éditions du Chêne, livro a saber a livro, não é a primeira vez que dele falo, porque tem as características doces dos livros recorrentes, os que se apanham na estante quando precisamos de uma palavra, de uma companhia, de um qualquer sentir. Livros para usufruir, materiais - cheiro, toque e cor - e imateriais - sonho, compreensão, devaneio. A palavra e a imagem, neste caso, como em tantos, para sorver da persistência de um coleccionador de beleza, empenhado em reconstruir imaginários e trabalhos visuais de quem, muito bem, sempre escreveu. Por acaso, como tantas coisas que a vida traz quando lhe deixamos abertos caminhos...
---
"Collectionner des dessins d'écrivains? Pendant des années, cette douce manie, cet infantillage ont fait sourire. Il y a toujours un peu de condescendance dans ce genre de sourire." Pierre Belfond (o responsável por este sonho, sonho de pessoa, sem medo de ser criança, fossemos todos assim, veríamos mais jibóias e menos chapéus)
---
Associar desenhos (veja-se o da capa, de George Sand), a palavras, como as que seguem, de Charles Baudelaire, é arrojado, no mínimo. Até porque os autores não publicitaram esses seus devaneios, foram sendo recolhidos por Belfond como folhas soltas de um Outono belo que passou na sua vida, acabaram por se tornar terra fértil para quem tenha alma para apreciar. E vale a pena:
---
"Tu contiens dans ton oeil le couchant et l'aurore;
Tu répands des parfums comme um ciel orageux;
Tes baisers sont um philtre et ta bouche une amphore
Qui fait le héros lâche et l'enfant courageux"
---
Les Fleurs du Mal, 1857

quarta-feira, 16 de agosto de 2006

As palavras de Mia Couto

"A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é idimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. Meu anjo-da-guarda, felizmente, nunca me guardou. Nos falta domínio, carecemos de técnica. Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio. No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas. Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Colocámos essoutro português – o nosso português – na travessia dos matos, fizemos com que ele se descalçasse pelos atalhos da savana. Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas – o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente."

A ler:

Contos do Nascer da Terra
Na Berma de Nenhuma Estrada
O Último Voo do Flamingo
O Gato e o Escuro
Um Rio Chamado Tempo, uma Casa Chamada Terra
A Chuva Pasmada

terça-feira, 15 de agosto de 2006

Santa Maria d'Agosto

Arronches, Campo Maior, Castelo de Vide, Coruche, Covilhã, Leiria, Mangualde, Moita, Monsanto, Óbidos, Portalegre, Vila Real, entre outras localidade portuguesas, viveram hoje a tradicional festa de Santa Maria de Agosto. Feiras francas de outros tempos, actuais mostras de artesanato e gastronomia regional, festas de cariz religioso e profano - indissociáveis - com invocações diversas, algumas medievais - Santa Maria do Castelo - com tradições eternas como as procissões com animais e homens e bençãos de fim de tarde de campos e searas. O sagrado e o profano, a reler, vem a propósito.

Recordações de infância: Agosto, mês de muita gente e de deitar tarde, colchas às janelas, touradas, fogo de artifício visto da varanda, procissão de 15 de Agosto, capas azuis e brancas da irmandade, muitos emigrantes de retorno, largadas de touros, cortejos etnográficos, flores por todo o lado, carrosséis com cavalinhos, cavalinhos maiores a passar com campinos, som dos cascos na terra, bolas de serradura com elásticos que se compravam nas feiras e que se desfaziam num ápice. Palavras soltas, sons e cheiros, o pó sob passos intermináveis dados em dias quentes, sombras escassas, o medo de me perder entre tanta gente crescida. O Sorraia seco, a condizer com o calor, as pontes a dobrar de cheias. Estão a ser restauradas, dizem. Pode ser que a minha infância também.

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer.

Fernando Pessoa

(Re)começar

"Ninguém canta só e fielmente
o veneno sobrante de evidentes
ou escondidas dores que, pelo tempo,
tecem o frio de escassas madrugadas."

João Rui de Sousa

***

É bom acordar de madrugada e, de inseparável chávena de café, vir até aqui ligar as máquinas que servem para trabalhar, para comunicar - no meu caso, durante muitos anos, para o meu filho achar que a mãe tinha certamente portas usb que ligavam os dedos ao teclado.

É bom abrir os mails e encontrar amigos, palavras de apreço, de encorajamento, para os trabalhos que sabem que faço, para os sentimentos que percebem do que escrevo.

E para receber poemas como o acima, lindos, boas leituras de estados de alma.

(Re)começar a vida completa em cada dia, pela mão de amigos, é nascer outra vez, mas sem chorar. Ou com lágrimas felizes de gente.

segunda-feira, 14 de agosto de 2006

Alberto Caeiro

A minha alma é simples e não pensa.
O meu misticismo é não querer saber.
É viver e não pensar nisso.

Alberto Caeiro

O poeta da natureza e da simplicidade fala-nos de uma existência atemporal, de sentimentos corporizados, de fusão com os homens e com o mundo. Fala-nos de paz, de reencontros connosco e com os outros que somos nós. Não de inconsciência, mas de sabedoria, de deixar o baloiço percorrer o espaço onde a criança é sempre, mesmo quando descansa. Não pensar por saber e por sentir. Ser, apenas.

Começar a semana

Julia Margaret Cameron, Paul and Virginia, 1864.
"Thus passed their early childhood, like a beautiful dawn,
the prelude of a bright day."

Como no romance de Bernadin de Saint-Pierre, a inocência preparada para tudo,
salvaguardada pelo eficiente nada que é o sonho.
Comecemos a semana com confiança, mesmo que nada tenhamos connosco.
Sem temer o dia que sucederá à madrugada.

...

Salvador Dali, Boat

Lançar as barcas ao Mar
— De névoa, em rumo de incerto ...
— Pra mim o longe é mais perto
Do que o presente lugar.


Mário de Sá-Carneiro

domingo, 13 de agosto de 2006

Pequenos deuses caseiros

Jantar de amigos, manobras diversas, conversas cruzadas, crianças entre os nossos pés, barulho de batatas fritas e de sorrisos. Corridas, jogos, televisão, desenhos animados. Crianças, todos. Numa mudança de dvd, uma entrada num programa - não estou muito familiarizada com a programação em directo, devo confessar, falta de tempo e de interesse. Mas desta vez prendeu todos. Qualquer coisa que tinha a ver com músicas, músicas de que só os pequenos mais velhos se lembravam e contextualizavam. É muito diferente ler poemas, ouvir dizer poemas - cantados ou não - ou ouvir canções anacrónicas, não sentidas, com sabor a música pimba, a sucesso de top barato. Digamos mesmo que é triste ouvir a pedra filosofal gritada por alguém cuja preocupação era mais a roupa que tinha vestida e a imagem que transmitia, em contraste com uma pequena passagem da sua interpretação por Manuel Freire. É uma frustração que as mensagens que se criaram e foram modelando a estados de alma de um país se tenham perdido. Não há como voltar atrás. Perde-se Rómulo de Carvalho nas palavras e Manuel Freire no sentir e na voz porque já ninguém se lembra. Os portugueses têm memória curta? Estou a trabalhar memórias e museus. Precisamente na perpectiva da sua pertinência, contexto e imaterialidade (o lado que se deixa cair mais facilmente).

Continuo a não gostar de ver televisão em directo, agradeço aos deuses ter memória que me permita distinguir as vivências sentidas de remakes dolorosos. Lamento que se assassine desta forma o passado recente, que o povo que lutou prefira ter os filhos anestesiados. Que se desvalorize, esqueça, apague de forma esquizofrénica os fantásticos homens de intervenção, arrumados numa prateleira com pó, num sótão incómodo qualquer.

Deixar de sonhar é grave, seria suposto que o mundo continuasse a avançar, sobretudo pelas mãos das crianças, de forma consciente. Acredito que continuariam a sentir como quem canta ou a cantar como quem empurra bolas coloridas para o futuro, sem ser por acaso, com olhos a brilhar de liberdade contida. Afinal, ainda há muito por mudar.

Vale a pena ler bons comentários ao tema.

Onde li outro poema, mesmo a propósito, letra de Sidónio Muralha, também musicada por Manuel Freire:

Dormi em colchões de pena,
dançai dias inteiros,
comprai os que se vendem,
alteai vossas janelas,
e trancai as vossas portas,
pequenos deuses caseiros,
e reforçai,
reforçai as sentinelas.

Ainda há quem sinta.

Escrever a branco



Escrevemos a cor sobre branco, escrevemos contrastado, não escrevemos em três dimensões, cor supérflua. Não, só alguns de nós. Os que lemos com os olhos, que se pode também ler e lê-se com as mãos, com os ouvidos, deve-se sempre ler com o coração (no essencial). Tudo o que é aparentemente óbvio pode mesmo ser invisível e o invisível só e apenas o óbvio. Aprender vale sempre a pena.

Uma mão numa luva e depois voar

Quando o mar está liso e não queremos pensar, é bom nadar contra o horizonte que não sabemos bem onde fica. Talvez por isso goste de nadar sob as ondas. No fim, aragem de fim de tarde, a compensar os dias ardentes que temos sentido. Entre arrepios, areia e sal, pouca gente à volta- as pessoas suficientes para partilhar sonhos que não se perturbam nem se enredam - os olhos saltaram do nada que gosto de percorrer para umas mãos de criança, uma delas nua, redonda como a lua cheia, dedos pequeninos, que bom, a areia dos sonhos não escorre tão depressa, o pouco que agarramos fica. Outra com uma luva de cirurgia. Ecologista em miniatura - não passaria dos dois anos - entretinha-se a apanhar o lixo da areia e a correr, com a pressa de salvar o mundo e os ideiais antes que crescesse numa tarde, num minuto, para depositar cada papel de gelado, cada cigarro, nos grandes baldes de lixo azuis. Que, como todas as coisas da infância, são sempre grandes demais, habitantes dos solos, perspectiva grande do mundo, o que os adultos não perdem por não olhar tudo com humildade... Quando saí da praia o sol baixava já, havia uma camisola enfiada por sima dos calções, a brisa arrefecia mesmo aquele pequeno idealista. A luva tinha sido soprada e era agora um balão com dedinhos, com que jogava sózinho, para o ar, para o mar, o mar devolvia (devolve sempre, coração grande, nós é que nem sempre sabemos aceitar o que é devolvido). Cheguei a casa com sal no corpo e um sonho nos olhos. Podemos usar e ser usados, ser úteis ou banalissimemente inúteis e lindos. Como uma luva que veste uma mão que limpa o mundo dos grandes para depois nele brincar à vontade, bola de criança toda sorriso.

sábado, 12 de agosto de 2006

O nada que somos




Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

Fernando Pessoa, 1-1931

*****

Fim de tarde, fresco nas ruas de Lisboa, um passeio, um jantar de esplanada, um gato meio pardo a querer festas, a dividir uma salada, meigo no abandono, sem nada esperar, sem nada ter, a dar mais ao dar-se que a receber festas, a ronronar, dócil, a abandonar-se a cada minuto e à sua vontade. Olhos brilhantes ao cair do escuro, sempre bem porque vivo, moldável como não são os homens, tantas prisões, nós. Pode vir um carro depois, pode vir alguém que o leve para casa - maldade das maldades, gato livre não é de jaula - pode continuar com as ruas de Lisboa como mundo ou partir, brigar, ser territorial, chegar-se mais ou menos aos homens, chegar-se mais ou menos aos bichos. Instinto ou sabedoria? Temos sempre a aprender com os animais que somos...

sexta-feira, 11 de agosto de 2006

Iqbal

Mais uma criança sem infância, mais uma vida roubada. Não conhecia a sua história, li-a hoje. Sem palavras mais a escrever, 10 anos podem ser tanto tempo. Hoje, Iqbal, já não vê a lua antes de dormir. Mas talvez os homens debaixo da lua não o esqueçam. Nem as crianças por quem lutou, outros tantos meninos violentados. Um em 250.000.000.

quinta-feira, 10 de agosto de 2006

Freacks - um pretexto

"I think she likes you -- but he don't."


Freacks é só mais um filme. Podia falar no Homem Elefante, Filhos de Um Deus Menor, em tantos. Podia falar em livros (julgo que já tenho falado).

Mas prefiro falar do nosso lado preterido, do nosso lado estranho ao outro ou a nós próprios.
O que desconhecemos? O que tememos na diferença?

Tudo por uma discussão pertinente, que se prolonga desde ontem, sobre acesso de pessoas portadoras de deficiência à informação electrónica e a mobilidade em habitações e em edifícios públicos, sem esquecer o nosso maravilhoso urbanismo, inconsciência completa a verificar em Portalegre nas últimas obras que foram realizada com subsídios POLIS e sem qualquer respeito por legislação que devia ser um dado adquirido.

"O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo,
ainda que tenha razão."
Fernando Pessoa

Quando falamos e quando lutamos queremos mostrar que temos razão ou queremos mudar algo? Talvez se começarmos por conhecer as situações, por nos conhecermos e aceitarmos, por educar os nossos filhos fora de redomas e standards artificiais, consigamos dar um passo, por pequeno que seja, assumindo a identidade e os direitos do ser humano, sendo um deles a diferença.

A consultar:

Começar por conhecer, continuar agindo.

Campo de trigo, nós


Van Gogh, Wheat Field Under Clouds

"E depois, quando o trigo tiver brotado,

dê-lhe chuva, dê-lhe chuva,

sem mais saber onde cai do que se fosse sobre o mar."

Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido, 1, No Caminho de Swan

Oiço falar

Oiço falar da minha vocação
mendicante e sorrio.
Porque não sei
se tal vocação não é apenas
uma escolha entre riquezas,
como Keats
diz ser a poesia.
Desci á rua pensando nisto,
atravessei o jardim, um cão
saltava á minha frente,
louco com as folhas do outono
que principiara e doiravamo chão.
A música, digamos assim,
a que toda a alma aspira,
quando a alma
aspira a ter do mundo o melhor dele,
corria á minha frente, subia
por certo aos ouvidos de deus
com a ajuda de um cão,
que nem sequer me pertencia.

Eugénio de Andrade

quarta-feira, 9 de agosto de 2006

Tempo

"In this lecture, I would like to discuss whether time itself has a beginning, and whether it will have an end. All the evidence seems to indicate, that the universe has not existed forever, but that it had a beginning, about 15 billion years ago. This is probably the most remarkable discovery of modern cosmology. Yet it is now taken for granted. We are not yet certain whether the universe will have an end."

Stephen Hawking...

... e o fio do tempo e do espaço, a grande preocupação humana, percebida pelos homens nas vivencias mais simples, o tempo que é curto, o tempo que é demorado, as medidas emocionais do tempo, o espaço que demora a percorrer, físicos de meia tigela, ansiosos pela vida um pouco mais além dos nossos sonhos.

Se ele, grande especialista na matéria, não tem uma conclusão a apresentar, mas questões a colocar, o que diremos nós? Ontem falava com um amigo, no msn, da percepção de sensações que nos são interditas. Genericamente, do conceito de cor. No entanto a cor é uma ilusão. Pode uma ilusão ser assim tão importante para movimentar uma manifestação de semiologistas que trabalhem para a dar a entender esse mesmo conceito a quem tem muito mais acuidade e aproveitamento prático de sentidos que desconhecemos? E depois, o que é um conceito? Outros há complicados, como o de espaço. Mas o tempo - esse grande escultor - persegue-nos a todos, diferenciando apenas na intensidade ou placidez dos homens a sua medida, criança que brinca connosco.

Por exemplo, estive a escrever até tarde e fiz algo que não fazia há muito tempo, estar a conversar online com os meus amigos, a saborear a sua sabedoria e o seu carinho. Mas hoje o tempo cobra-me o cansaço, a vivacidade de ontem pesa tonaladas hoje de manhã, quando quero escrever este post, quando quero pensar em tudo o que li sobre o tempo, todas as situações em o nosso maior inimigo e o nosso maior amor nos alterou o fio da vida.

Existem as cores? Existe o tempo? Serão dúvidas semelhantes? Pairamos, na verdade, num universo que não sabemos bem ao certo de onde vem, para onde se dirige, onde somos uma migalha, e em que somos, na realidade, meninos perdidos em nós e no que nos rodeia.

Solução: apreciar as coisas simples, as que entram directamente no nosso coração, sentir muito, dar muito de nós e receber tudo o que nos deixarem. Ou especializarmo-nos em Física Quântica.

terça-feira, 8 de agosto de 2006

Dias úteis

Dias úteis
às vezes pretextos fúteis
pra encontrar felicidades
no percurso de um só dia.
Dias úteis são tão frágeis, as verdades
que se rompem com a aurora
quem as não remendaria?
Dias úteis mesmo se a dor nos fizer frente
a alegria é de repente
transparente quem a não receberia?
Mesmo por pretextos fúteis a alegria
é o que nos torna os dias úteis
Dias raros
aqueles que por amparos
do bom senso e da imprudência
fazem os prazeres do dia
Dias raros
como os ares, Rarefeitos
amores mais do que perfeitos
quem os recomendaria?
Dias raros
em que os mais dados às rotinas
ouvem sinos, seguem sinas cristalinas
quem as não perseguiria?
Por motivos
talvez claros o prazer
é o que nos torna os dias raros
Por pretextos
talvez fúteis a alegria
é o que nos torna os dias úteis
Por motivos talvez claros
o prazer é o que nos torna os dias raros
Por pretextos talvez fúteis
por motivos talvez claros

Sérgio Godinho

Bom dia, Carlota

Turner, Sunrise, 1797


Bom dia, pequenina. Viste o teu primeiro nascer do sol? Vou-te visitar hoje, se achares bem. Nascer é complicado e doloroso e depois há sempre o choque de não se perceber bem quem são as enormes pessoas que nos agarram e nos tocam e nos levam.

É passar da água ao ar, iniciação de meio, da serenidade ao choro, sentimentos extremos, de fusão com um corpo conhecido para voos impensados em mãos estranhas que nos tocam e agarram e puxam e ferem. E os sons tão mais nítidos cá fora, mundo agressivo, vens preparada?

No dia em que nasceste partiram outras pessoas, estação de comboios estranha, esta que agora começaste a partilhar. Também nasceram outros pequeninos e pequeninas. E há umas guerras por aí, mas isso é uma palavra que só vais perceber mais tarde, se a chegares a perceber (eu ainda tenho dúvidas do que é ao certo, só sei que dói).

Há coisas bonitas no mundo, Carlota, que te posso dizer? Vale a pena estares por cá. As companhias por vezes não são as melhores, no teu caso são fantásticas, tens uma família doce e muitos amigos que te amam, foste muito desejada, inesperada Carlota, vais ser surpreendente. Também eu apareci assim na vida, de repente, não mais que de repente. As cegonhas sentem-se acolhidas em casas cor de paixão. Mas depois falamos de poesia que é algo de belo e saboroso para tardes e madrugadas.

As pessoas, bem, são meio estranhas. Podem ser como as flores, com espinhos, com aroma, com beleza, agressivas, apelativas. Normalmente carentes de água, convém regares com amor. Tem o mesmo efeito e torna tudo muito mais bonito.

O mundo é uma bola, embora andemos todos para a frente, sobretudo as pessoas crescidas que gostam de mapas e de direcções. Acredita, é bom andar em círculos quando precisamos de pensar, virar nos atalhos cobertos de hera, seguir sem fim caminhos tapados com copas de árvores.

Acho que vais gostar disto, por aqui. Pode ser que mudes esta bola azulita para um planeta em forma de sorriso. Cada um de nós pode ser mais inesperado que pensa. Sobretudo é sempre mais inesperado que os outros acreditam.

Conto contigo, Carlota, para me dares uns beijos, para encheres a minha casa de chocolate e gomas e risos, para já, agorinha mesmo, queria muito contar contigo no meu colo, amiga que tarda ver, acabada de chegar ao mundo.

segunda-feira, 7 de agosto de 2006

Recomeça

Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar
E vendo,
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.

Miguel Torga

Na sombra

Cartuxa, Eduardo Gageiro

Quando os homens viram as costas ao mundo, ou quando encontram caminhos de meditação, porque o mundo se torna inabitável.

Quando a solidão é o último reduto de paz.

Faz menos barulho, causa menos lágrimas.

Antes escolher as próprias que as alheias, também há caminhos na sombra e no silêncio.

domingo, 6 de agosto de 2006

Guardador de Rebanhos XXI

Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...

Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...

Alberto Caeiro

sábado, 5 de agosto de 2006

Daqui para a frente

Planeta Terra, séc. XXI

A nossos pés? Não me parece.

Falta o tempo, a coragem e a liberdade de pensar,

em cada encruzilhada

que daí para a frente só há dragões...

E continuar.

Lugares

É que não é fácil. Os fios puxam-nos para onde queremos estar ou para as procuras a que somos levados. As amarras e cercas quebram-nos memórias e sonhos. O mundo dos homens especializou-se maquiavelicamente em nos criar com doçuras de avó num jardim belíssimo de memórias, histórias e afagos. Quando nos começamos a sentir confiantes temos já - desgraça - altura para ver as cercas, o outro lado, as estradas que não se atravessam, os sentidos proibidos.

Do mundo, o espaço de segurança e de aparente liberdade que nos é oferecido é demasiado ténue. Aqui tens o mundo, só para ti, amplo, ajardinado. Cuidadosamente, mostram-nos cada flor, fazem-nos escutar cada canto de pássaro livre. E depois enjaulam-nos. As flores murcham, os pássaros estão numa qualquer gaiola.

As casas, como as coisas, passam a ser menores porque a perspectiva muda. Já não podemos comer os restos da massa do bolo porque a higiene aparece como como um estúpido dever. Nunca mais correr a ver um nascer de sol porque o trabalho é duro e estamos cansados, vê-se na internet, que giro, que giro.

Os espaços ou são de alguém (os caminhos são sempre de alguém...), deve haver poucos sítios no mundo a que chamemos nossos, mundo dos homens com fronteiras por dentro e por fora, fronteira cada um de nós para o próximo.

É preciso libertar, quebrar amarras, deixar as crianças cair quando brincam, deixar o sol queimar a pele, pisar a relva molhada sem medo que constipações do séc. XXI que nos conduzam a aprendizes de farmacêutico esquizofréquinos.

É preciso que cada casa seja um lar (local central, onde o fogo acolhedor reunia os que sabiam partilhar).

É preciso que os caminhos se abram, no mundo dos homens.

Sonhos tresmalhados

"Os amantes sem dinheiro
Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.
Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.
Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços."

Eugénio de Andrade

sexta-feira, 4 de agosto de 2006

Confiança


Paul Gauguin. Harvesting of Grapes at Arles. 1888. Oil on canvas.
Art Museum Ordrupgard, Copenhagen, Denmark.


O que é bonito neste mundo, e anima,
É ver que na vindima
De cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura...
E que a doçura
Que se não prova
Se transfigura
Numa doçura
Muito mais pura
E muito mais nova...


Miguel Torga

quinta-feira, 3 de agosto de 2006

Possivelmente


Possivelmente os nossos dias são feitos de horas a mais, também de horas a menos.

Possivelmente é difícil encontrar um equilíbrio, se é que o queremos.

Possivelmente acabamos por magoar quem menos queríamos ou mesmo a nós próprios.

Possivelmente arriscamos demais, outras vezes de menos.

Possivelmente o amor foi inventado para alguém nos dar a mão nos caminhos difíceis.

Possivelmente é só um segundo até ao nascer do sol seguinte, guarda-chuvas fechados, a chuva é rápida nos nossos dias se os corações e os ideiais forem altos.

Possivelmente vale muito a pena estar vivo e não ter medo do que se sente, dor ou prazer, amor ou ódio, perguntas ou respostas.

Possivelmente valerá sempre a pena procurar a transparência, onde tudo se encontra. Será?

Fios


Lutam os homens por ódio e por amor. Extremos de vida, extremos de sentir. Falta sempre qualquer coisa, asas de cera, queremos todos o sol. As quedas, inevitáveis. Vidas intensas, não sabemos ser de outro modo, os que vivem. Há tempo demais para descansar, no fim. Ter coragem para levantar sem forças e sempre, sempre, retomar o caminho escolhido, virar na curva seguinte, seguir pela relva descalços, pela areia mesmo que explorada, andar ou ficar, as decisões pesam e cortam como espadas. Quando se escolhe algo, algo é preterido, nada é pacífico ou inocente na nossa existência.

Acordei a pensar, fios que nos seguram, fortes e frágeis, vale a pena ver, mesmo que aperte a alma, de tão forte, não é grave, flexíveis, fortes, eternas, as almas saltam nas nossas mãos, batem como corações, mais eternas que estes. Os fios de que precisamos para nos situar. Em relação a nós mesmos, aos que de alguma forma estão presos a nós e que nos prenderam, quem me perguntava ontem pela transparência, não a encontrei ainda, estará no horizonte para que nos dirigimos, mais desfocado que gostaríamos, só um pedaço a revelar-se em cada trajecto? Naquele mundo, só os escravos não tinham fios... No nosso, também qualquer hora de vida pode demorar cinco anos a construir.

quarta-feira, 2 de agosto de 2006

Partilhar


A verdadeira solidão é quando se olha para uma flor maravilhosa
e não se pode dizer: repara como esta flor é bela.
Nisso consiste a verdadeira solidão,
em não poder partilhar essa beleza com alguém.

GINO, um homem que vive na rua.
Os livros são sempre especiais. Têm um toque, um cheiro, uma memória anexa. Locais, comportamentos, datas. Ideias para trocar, ideias para escrever, tudo para questionar o até então estava adormecido. Livros são amigos, amigos partilham livros. Pessoas caminham ao nosso lado pelo mundo sem nada para partilhar, sem nada para perder, excepto a alma. Viver só não é viver longe do mundo, é viver longe do abraço do outro que se procura. Viver na rua não é estar abandonado, mas estar fora das paredes de um lar, ficar à porta de algo que é interdito, interditos nós. Testemunhar é um acto de coragem, de generosidade, de empatia, de carência. Por uns momentos Gino foi necessário a alguém. E é cruel pensar que a sua liberdade insustentável de ter o mundo como casa continua ou terminou já sem as portas do lar e do outro se terem aberto, sem os braços dos homens do outro lado das paredes o terem abraçado e acolhido. Nada pede a não ser que alguém caminhe ao seu lado, nada exige a não ser que aceitem o seu olhar sobre o mundo, varanda diferente de quem vive de forma diferente, de quem talvez já tenha vivido de forma igual. Ele sabe, nós, provavelmente, não. Mas as flores são mesmo mais bonitas quando os olhares passam a palavras e atingem o coração mais próximo.

El Ingenioso Hidalgo...




"O valor que não tem por fundamento a prudência chama-se temeridade, e as façanhas dos temerários devem atribuir-se mais à sorte do que à coragem." Cervantes, 1605.

___

2006. Pelo sonho e pelo engenho se redescobrem os gigantes.

Orson Welles, pelo projecto de filme...



Picasso, pelo esboço eterno...


D. Quixote, pela loucura...


"Encheu-se-lhe a fantasia de tudo aquilo que lia nos livros, tanto de encantamentos como de pendências, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas e disparates impossíveis;e firmou-se de tal modo na imaginação, que era verdade toda aquela máquina daquelas sonhadas invenções que lia, que para ele não havia outra história mais certa no mundo."

Mãos


Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.

Manuel Alegre

terça-feira, 1 de agosto de 2006

Iniciativas

Um post a meio de um dia de trabalho? Justifica-se. A iniciativa nem sempre é premiada, a liberdade de expressão também não (gostamos de esquecer o passado recente). As idades não devem ser penalizadas, não devem ser motivo de classificação, temos uma geração de mérito em crescimento, profissional, lúcida, interveniente. De igual mérito valores cultivados como a pontualidade, precisão e iniciativa - gosto de elogiar os meus amigos, as pessoas que me dão a honra da sua amizade - na abertura de mais um interessante espaço de troca de ideias: http://www.ruicruz.forunsbb.com/

Gui, 1968


Criado em 1968, o irmão de Mafaldinha é, com Liberdade, um dos irreverentes do grupo. Tudo pode porque tudo experimenta pela primeira vez. Tudo lhe é permitido (a tudo se permite), perguntas, intervenções, atitudes. Gui é a ternura e a expontaneidade totais, é o crescimento de Mafalda que se sente obrigada a intervir neste lado da sua vida, como responsável pela integração e segurança desta força de intervenção que lhe foi parar a casa, responsabilidade óbvia da cegonha. Gui é uma reconcilação com o bom humor quase apolítico, com as pequenas questões de educação e de formatação que se impõem portas dentro, com a lógica inabalável de quem ainda não está (estará alguma vez?) formatado. Fantástico, Quino, como sempre, conseguindo supreender até Mafalda.